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25.9.12

e o que ela quer da gente é: coragem.

Abri o livro do bauman na mesma página umas quinhentas vezes desde o mês passado. Já até decorei. Ele diz que a gente não pode comparar a identidade com um quebra-cabeças. O motivo completo eu não lembro, porque não li. Ando avoada. Leio um parágrafo e paro. Dá vontade de chorar. Uma vontade horrorosa de chorar e sair andando e chorando na rua. Eu quero dizer pra mim mesma, de uma vez por todas que, não, eu não vou conseguir, não vou ser capaz. Não vou terminar pós nenhuma, monografia nenhuma e vou deixar a vida em stand by. Não tenho coragem. Não sei desistir. Nunca tinha descoberto isso sobre mim. Achei que desistia fácil, no primeiro problema. Não sei desistir. Só quando não dá mais. Daí sim, eu levanto com a cara ensanguentada e vou. Eu achei que sabia muito sobre sofrer. Percebo, cada vez mais, que sei muito pouco.

Eu ainda não passei pelas piores coisas da vida, embora tenha passado por muitas delas. Ter visto as escaras da minha vó foi triste, assim como foi a morte dela e a morte do vô. Ter visto meu pai deprimido de cama, quase internado, também foi difícil, mas passou. Passa. O inevitável passa. Ver ele perdendo a visão sim, tem sido uma dessas provas de fogo. Assim como tem sido complicado segurar a barra de ver a minha mãe lidando com todos os problemas do mundo, como se todo mundo sempre achasse que ela é capaz de aguentar mais um pouco. Tem sido difícil. Meu começo do ano foi difícil, também. Foi doído ser despedida. Foi doído depois de achar que tudo tinha dado certo, perceber que não, nã era bem assim. Foi chato deprimir, cair no sofá, foi chato ter vontade de chorar antes de sair de casa de um medo que não era meu. Chupar balas pra disfarçar a ansiedade. Ter crises de pânico no banheiro da pós graduação. Foi difícil ser deixado pelo erro que eu cometi. Foi difícil ser espezinhada pessoalmente, pelo telefone, pelas redes sociais. Tudo isso é difícil e deixou marcas indeléveis em mim. É cada dia mais difícil levantar da cama e lutar por alguma coisa sendo que a vida é, irremediavelmente, injusta. Vai piorar. Esse é só o começo das perdas. Vai ter um dia que meu pai vai ficar mais doente. Vai ter um dia em que a minha mãe vai adoecer também. Tudo isso vai chegar. Outras decepções amorosas, talvez mais cruéis que essa anterior, também chegarão. Eu ainda sei muito pouco sobre sofrer, embora saiba mais do que boa parte das pessoas.

Depois de um tempo a gente anestesia. Anestesia porque tem que ser forte por todo mundo que você ama. Se meu pai chega com os papéis pra fazer uma cirurgia, eu ajo como se fosse parte do processo. O rosto tem que estar limpo pra abraçar a minha mãe e dizer que vai ficar tudo bem, ainda que a gente tenha dúvidas. Hoje minha mãe disse que não sabe o que seria da vida dela sem mim. Foi a prova cabal de que eu deveria estar aqui nesse momento. Sem carreira promissora e perto, porque a barra da vida tá pesada demais pra gente. Evito desabafar. Vez ou outra tenho vontade puxar assunto com uma pessoa qualquer no facebook, mas evito o ato. O problema é meu, a vida é minha, o pai é meu e o inevitável é o inevitável. Há as coisas que eu posso mudar e as que não. Faço o que posso. O que não posso, não faço. Sofro, justamente porque não há nada que se possa fazer. Os médicos fazem o que podem, a gente tenta segurar a barra do jeito que dá e vive. A vida continua a aventura mais injusta que eu já tive notícia.

Hoje um amigo meu me mandou não me abalar tanto, e fazer o que eu posso. Não adiantará, segundo ele, me exigir demais. Se der pra fazer deu, e se não der, que eu descanse no sofá. Acho difícil lidar com as coisas que não posso controlar. Tenho uma mania meio besta de controlar tudo. Estou cercada de gente maravilhosa, mas não aprendi a chorar no colo de ninguém. Segurei as minhas barras, que não foram poucas, todas sozinha e de cabeça erguida. É o que eu sei fazer. Sempre corto a conversa pela metade, me lembro de uma ou duas vezes que eu quase chorei enquanto falava da minha vida, mas me sinto pouco confortável. Eu lembro que eu comia um brownie, e ele me dizia coisas sobre o nosso futuro, daí eu olhava a banquinha na avenida paulista e tinha vontade de chorar. Eu me sentia perdida, mas eu não sabia que eu ainda ia me perder mais, que ainda ia ser pior, que a vida ainda ia ser de mais açoite. Sempre pode piorar. Essa é a grande verdade. Sempre pode piorar, e vai. Morrer a gente não morre, mas olha, não passa. Esse ano ferida nenhuma cicatrizou, tudo continua aí, cheirando sangue velho pra quem quiser ver. Ferida purulenta mesmo, infeccionada, e eu queria poder botar a culpa em alguém, até em mim, mas não é culpa de ninguém.

Às vezes eu fico pedindo baixinho pra deixar de ser resiliente. Ser resiliente significa que você já passou por tanta coisa que aprendeu a se reerguer. Bate na cara e você levanta. A vida te deixa de quatro e você deixa. Tem dia que eu nem choro mais. Tem vez que nem nada. Eu descobri que eu já não faço questão. O amor, se não vier não veio. Eu me dou do jeito que dá. Torta e de corpo nu, mas o coração que caiu no meio da avenida paulista virou carne moída. Não quero mais. É só isso. A vida é injusta demais pra que eu corra o risco de. Eu vou vivendo. Já não espero mais a melhor monografia do ano. Faço o melhor que posso, entretanto. Se eu continuo viva é porque precisam de mim inteira. Eu, eu meu amigo, não preciso de nada. De vez em quando uma cerveja, umas boas risadas, dinheiro pra gastar 50 reais por mês no brechó. Pra mim tá bom. Eu não espero nada.

Eu só sei que eu vou sofrer mais. Na vida, ainda, muito mais. Isso é só o começo de tudo. Ainda vai ser muito pior. Terão outros 2012. Eu sei que um dia ainda vou achar esse ano fácil. Eu sei que ainda vou arrastar a minha cara no asfalto quente. Eu não sei de nada, eu não sei de nada, ainda vai ser muito pior. O pior é saber: eu vou aguentar. Porque eu aprendi.

E agora todas as vezes que me chamam de amarga eu concordo baixinho, resiliente: eles tem razão. Eu fiz o que deu, meu amor. Eu fiz sempre o que pude. Mesmo que doesse, mesmo que eu chorasse sozinha debaixo da minha coberta, dentro do metrô, na rua debaixo dos óculos de sol. Eu fiz o que deu. Eu fiz tudo o que pude. E sofri. Eu me machuquei de agulinha entrando embaixo da unha devagarinho. Às vezes eu reclamo, mas sei que é assim. É a vida, carajos. É a merda da vida. E só.

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