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17.9.12

Carta de retratação pública a um nhô-sem-nome.

Hoje eu tirei o vestido de oncinha do armário. Tem algumas coisas que eu evito usar, e o vestido de onça é a mais marcante delas. Ele está intacto no meu armário desde o dia em que cheguei, deixei as malas no chão, e encontrei na minha cama chocolates de páscoa que me fizeram chorar. Eu evito o vestido de onça, nunca mais o usarei com a sapatilha preta, ou com o sapato de salto preto. Eu evito um pouco o anel de coruja que comprei com você na feirinha em frente ao masp. Detesto o cheiro do meu perfume que você gostava. Rezo pra acabar todas as vezes que uso. Acho que lhe restam umas três ou quatro borrifadas, e será, enfim, o fim. Tenho pensado em doar uma camiseta que tem uma estampa de um casal de mãos dadas que lembrava a gente. Por isso, e também porque lembro que usei essa camiseta num dia que você chegou apressado pra me levar no shopping pra te ajudar num trabalho qualquer. Usei bem menos a blusa listrada de azul e branco da zara que eu usei no dia do seu aniversário. O aniversário em que eu meio que estraguei todos os planos. Evito coisas. Evito músicas. Evito toda a cidade de São Paulo. Evito o barulho do metrô, o center 3, e não sei qual seria a minha reação ao entrar de novo na sua padaria preferida. Não gosto do cruzamento da paulista com a hadock lobo. Esses dias tinha um documentário do Chico que mostrava esse cruzamento e eu tive que mudar de canal. Odeio o últmo CD do Chico e espero que ele lance outro logo e fico torcendo pra que esse não tenha sido o último. Detesto me lembrar do hotel em Curitiba porque me lembro de te mandar mensagens dizendo que olha, eu vou ver o Chico. Me lembro também de você respondendo sobre a festa de fim de ano da sua empresa. Eu lembro de muitas coisas.

Fui comer macarrão ao pesto e quase vomitei. De novo. Tenho trauma de vinhos: só tomo cerveja. Procuro sempre por homens que detestem moda. Odeio tudo que me lembra você. Vejo caracteres em russo e não gosto. Queria riscar moscou do mapa. Não quero mais visitar a praça vermelha. Dia desses conversei com um menino russo e falei de você.  Ele me disse de um jeito engraçado que tudo ia passar. Ele queria sair da Rússia e conhecer o mundo. Ele me dizia que existem outras milhares de coisas a mais pra explorar do que o fim traumático de um relacionamento e o fim complicado de uma depressão. Se despediu de mim dizendo que eu não podia, nunca, em hipótese alguma dessitir da vida. Também não podia, nunca, em hipótese alguma me deprimir de novo. Eu prometi. E essa é uma promessa que eu me faço e refaço todos os dias de novo. Não vou desistir porque não posso. Não posso desistir da vida, das futuras ilusões amorosas, de escrever, de ter um emprego, de guardar dinheiro e viajar pra São Paulo de novo pra ver meus melhores amigos. Tem que continuar, todos os dias, continuar.

Hoje resolvi tirar o vestido de oncinha do armário pra sair. Nada de importante, saída com a minha mãe. Peguei o vestido e lembrei dos versos do Chico. "Como? se na desordem do armário embutido, meu paletó enlaça teu vestido, e seu sapato ainda pisa no teu?". Quase devolvi o vestido de volta. Não estava preparada pra nada. Eu lembro de todos os nossos dias numa terrível e quase torturante riqueza de detalhes. Cantarolei os versos da música e lembrei que na primeira conversa que tivemos recitei um poema (horrível) meu em que eu usava esses mesmos versos como citação. Lembrei também que no nosso primeiro encontro houve o seu paletó de veludo cotelê comprado na Marisa. Lembro da camisa preta, da calça jeans, dos óculos escuros, da minha mão seca e da sua gelada. Da água sem gás que eu não gosto (eu nunca gostei de água sem gás), mas aceitei porque você me oferecia. Do meu suco de laranja com cenoura. Do reflexo no vidro do prédio do bradesco, do primeiro beijo, da livraria cultura. Você me mostrou um livro, recitou a primeira página de um livro em espanhol. Mostrou os que você tinha feito. Estragamos uma foto de uma menina que tirava fotos dentro da sessão de discos. Prometemos ir pra Paraty. Eu odiei muito essa feira de Paraty desse ano e xinguei todas aqueles que queria ir a Flip. Lembro da nossa primeira briga no bar, você ameaçando ir-embora, eu com ciúmes das meninas de batom vermelho sorrindo felizes demais enquanto você retribuia a gentileza. Tudo tão rápido. O primeiro ciúme, a primeira briga, o primeiro beijo, a primeira noite juntos. Eu e meu único vestido porque não planejava dormir na sua casa. Eu e meu sapato de salto na bolsa. Eu provando camisas suas e tentando combinar com o vestido sem conseguir e, ai, usando o mesmo vestido só que sem o cinto. Você provando vinte mil sugestões de roupa, até escolher, enfim, uma pólo verde, uma calça jeans e aqueles sapatos frescos que eu sempre esqueço o nome. Nós esperando o ônibus enquanto você cantava pássaro de fogo em loop, e eu te batia - mas achava engraçado. Eu detesto a Paula Fernandes porque até a Paula Fernandes me lembra você.

Eu, tão desajeitada, vomitando no banheiro de nervoso, susto e, sem saber - doença. Eu que derrubei meu bife em cima da bolsa na padaria mais fina de São Paulo. Eu, andando na Oscar Freire tão ridículamente feliz segurando a sua mão que o mundo podia acabar ali mesmo enquanto eu achava perfeitamente aceitável gastar 8 reais num suco de macã, melão e gengibre. Eu, que aos vinte e dois anos, nunca tinha ido no starbucks provava com você um chá cheio de gelo e um brownie horrível. As nossas únicas fotos eternizadas com esse maldito vestido de onça que eu me obriguei a usar de novo porque já faz muito tempo e as pessoas adultas superam os traumas. Não soube. Botei o vestido e foi como estar naquele filme "brilho eterno de uma mente sem lembranças". Todas as nossas lembranças voltando em loop de um jeito tão doente que eu era capaz de sentir falta do seu ronco e de dormir aproximadamente três horas por noite em todo o tempo que passamos juntos. Depois o inferno. Eu lembrava do céu e lembrava também do inferno. Toda a nossa história feito um livro do Mutarelli. Tudo doente, sujo e destrutivo.

Minha infantilidade rabugenta que quase estragou seu aniversário que tinha que ter tido bolo, surpresa, uma velinha de supermercado em cima de um bolo de papel que fosse. E eu, louca, preocupada em ligar pros meus pais pra eles não acharem que eu morri não te deixei nem passar no bar. Depois te acordei, briguei, quase que não te deixo dormir. Attencion whore até no seu dia especial, trouxa e sendo picada por uma legião de pernilongos. Mas teve você quase tocando piano, a gente correndo as escadas numa mania boba de imitar os filmes, e o Radiohead. O maldito Radiohead que você também estragou porque eu ouço e consigo sentir aquela terrível maravilhosa noite em que você completava mais um ano e eu só desajava ter feito tudo certo uma vez na vida. Depois sim, os desastres todos. Minha paranóia, meu medo cego de te perder pra qualquer garota paulistana tatuada que passasse na rua. A doença, a minha doença que você não tinha culpa e eu não sabia. Eu corria doze quilômetros por dia pra me sentir segurando os joelhos e perdendo o ar. O limítrofe. O quase-morte. Minha vida condicionada em pensar em você e arrumar um emprego. Brigas bobas, coisas que eu jogava na sua cara sem necessidade. Paranoia, paranoia, paranoia. Essses dias achei os backups do meu Twitter e não me reconheci. Tanta indireta, tanta doença. Eu te ligava e a minha voz não saia. Eu comia pouco, de vez em quando uma crise aqui e ali. Mas não há de ser nada. A segunda viagem, eu impassível querendo atenção irrestrita, você dizendo que não gostava de mim. Eu querendo te bater na mesa da sua padaria preferida, querendo chorar quando você brigava comigo. Você, intratável resolvendo problemas de gente-adulta. Casa pra morar, pia, quarto, amigos seus que eu nunca tinha ouvido falar. Tanta coisa pra um casal que não era casal ainda, tudo tão rápido, o turbilhão. Eu, cantando valesca alto no quarto de hotel que era pra abafar o choro e o meu medo sempre iminente de te perder no momento seguinte. E eu tinha medo de ter medo e de entrar de novo naquelas loucuras de achar que você não gostava de mim, e aí escarafunchar todas as suas redes sociais a procura das suas "outras namoradas", a brincadeira que eu levei a sério demais. Eu queria fuçar seu celular, eu queria ser a personagem-louca desses romances sanguíneos até que chegou uma hora que eu não sabia mais o que eu estava fazendo e esquecia meu troco do metrô, saia sem rumo pela paulista. O horror, o horror.

Minha vida toda numa esperança que não vinha, num emprego que eu não conseguia, nos currículos que eu nem chegava a mandar. Minha vida toda esperando uma terceira viagem, o show da minha vida, você me cantando palpite no violão. Tudo que eu consegui foi a morte. A minha morte, metafórica. Penso em mim, medrosa, achando que você daria o vinho que comprou pra mim pra sua amiga e beberia com ela e tudo aquilo formando histórias loucas na minha cabeça e não sei quem era aquela pessoa. Também não sei quem foi a pessoa que não limpou as paredes, e que saia pra chorar no quarto em posição fetal. Eu, apática frente a vida, e o mundo inteiro girando ao meu redor. O mundo inteiro, eu te perdendo, uma vida inteira sem perspectiva. Eu ficava em pé na sua sacada e meu mundo inteiro girava. O mundo inteiro desabando e um eixo de equilíbrio flutuante. Você largando a minha mão, eu não conseguindo te explicar o que eu fiz nem pedir desculpas, nem fazer nada minimamente aceitável porque eu também não sabia o que eu estava fazendo. Eu, voltando pelas ruas escuras da cidade que eu não conhecia sem perceber que naquele minuto eu tinha perdido o medo da morte porque eu era a própria morte. Minha primeira crise de pânico foi antes do show da minha vida. O show da minha vida pareceu um surto. Olhando de longe, o show da minha vida parece ter sido alucinação. Não lembro de nada, exceto de pulos histéricos ao som de fluorescent adolescent e uns pensamentos embaralhados. Eu ouvia músicas que eu não sabia cantar e pensava em você contando pra sua mãe a história toda e os dois morrendo de vergonha e decepção comigo. Isso, e flashs da noite anterior, e Londrina, e eu preciso ver de novo o Alex Turner porque dessa vez não valeu. Não valeu porque outra pessoa viu o Alex Turner. Outra pessoa pulou ao som de Suck it and see. Outra, não eu. E depois um telefonema ridículo que eu fiz sem explicar nada direito que só não foi pior que o e-mail que eu, felizmente, não lembro nada.

Cinco meses e alguns dias depois do ocorrido. Eu, quase-completamente curada, vivo uma vida tipo alcóolicos anônimos, um passo de cada vez. As vitórias são ridículas. Conseguir acordar cedo. Conseguir trabalhar. Conseguir entrar num lugar lotado sem crises de ansiedade. Conseguir. Conseguir usar o vestido de onça do dia em que nos conhecemos. Querer matar o ser anterior por ter feito milhares de burradas e ainda mandado um e-mail (que eu não tenho ideia do teor) com uma carta anexa em maio se achando apta pra função. Um monte de merda, arrisco eu. Eu lembro de fevereiro em riqueza de detalhes, mas tenho problemas com os outros meses. Bloqueio, diriam. Talvez, eu rebateria. Não gosto de lembrar de coisas que fiz que não se parecem comigo. Um ano horrível. Uma doença horrível. A constatação que eu não soube lidar com as perdas, que eu não sou a senhora mulher-maravilha que aguenta ficar sem ocupação sem pirar. Pirei, desculpa. Sazonalmente. Não tenho doença crônica, não me tornarei adepta dos remédios controlados. E, estranhamente, não sou louca. Só quando escrevo. O show da minha vida esse ano foi o do Charlie Brown Jr, com o Chorão drogadíssimo e eu com o equilíbrio que tinha buscado o ano todo. O do Zeca Baleiro nem tanto porque você cantou "braço da vênus de milo acenando tchau" no seu aniversário, na saída do metrô, e o Zeca teve o mau gosto de começar o show com essa música. Bandeira. "Eu não quero ver você fumando ópio, pra sarar a dor". Ri dessa parte. Ri do "café pequeno". Ri porque tudo tem-a-ver. E eu derrubei umas lagriminhas tímidas porque não podia te mandar mensagem "vi o Zeca". Nem depois "Meio que entrevistei o Mutarelli".

Pensei em te redigir um memorando-desculpas, mas desisti. O que faríamos? Você deve me detestar e eu não quero ainda fazer planos sérios, ou decidir a minha vida enquanto não tiver certeza absoluta. Depois ia ser uma coisa "é, ok, você insistindo com isso de novo e olha eu aqui, levando a minha vida. Esquece isso, se for pra gente se encontrar um dia a gente se encontra na paulista e se apaixona de novo". Sempre lembro dessa frase. Acho fatalístissima. Meio Paulo Coelho, meio Maktub, meio novela da globo. Além do mais, você nem deve cogitar se apaixonar de novo por mim. Eu, te digo meio assim, que nem superei tudo que devia ainda pra conseguir pensar no amor, essa palavra. Em todo caso:

Desculpa.
Essa é a primeira desculpa sincera que eu te peço, porque essa é a primeira coisa equilibrada que eu escrevo desde. Vai soar mentira, como soa mentira todo-e-qualquer pedido de desculpa. Vai soar brega como um "não era bem aquilo que você estava pensando". Eu não devia ter feito nada daquilo. Tudo aquilo. O que eu fiz no fatídico dia e as coisas anteriores. Em primeiro lugar, eu devia ter confiado. Embora a confiança erre, a des-confiança mata. Nos matou. Não fosse toda a paranóia eu não tinha feito nada daquilo. Nem brigado quando não devia, nem estragado seu aniversário que devia ter sido sua primeira quase-festa de criança, nem sujado sua casa. Desculpa. Eu estava doente. E estar doente da cabeça e de coração ocupado nunca funcionaria. O coração ocupado já descontrola a cabeça de qualquer jeito. É preciso uma cabeça equilibrada que não sucumba aos impropérios do coração. Ter um coração ocupado e uma cabeça previamente descontrolada não podia dar certo. Deu no que deu. Das duas uma: ou eu tivesse tomado umas três taças de vinho a menos, ou eu tivesse limpado toda a sujeira. Mas eu penso naquela pessoa, ela não tomaria nenhuma dessas duas decisões, a não ser o que foi: a apatia e o descontrole. Mal sabe você, mas eu esmurrei aquelas paredes do teu box e chorei de soluçar. Depois, veja, eu lembro que eu queria te dizer um monte de coisas que eu já não lembro. Acabei chorando no seu ombro. Eu lembro de uns flashs e tudo que eu lembro me dá vergonha. Tudo mesmo. Eu queria ter apagado aquela viagem inteira. Exceto pelas partes em que não foram horríveis. O mercado (sim, o mercado), o caetano velloso na cozinha (eu tenho odiado o caetano velloso também), o seu café da manhã e você cozinhando dedicadíssimo. Nem o show me valeu. Nada me valeu. Eu queria ter sabido um pouco antes que eu adoeci de uma doença que não é simples de perceber feito mancha na pele. Eu até lembro de você um dia no telefone dizendo "você tá um pouco depressiva, não tá?" enquanto eu falava que não-guentava-mais-aqui-eu-sinto-falta-de-são-paulo. Eu concordei, mas não levei a sério. Você estava certo, eu não. O que aconteceu algumas outras vezes em que eu não dei o braço a torcer. Mas às vezes é isso, às vezes é preciso cair de cara no chão pra encontrar a verdade. Pelo menos percebi, caí, levantei, e me equilibrei as custas duns troços que tem gosto de álcool e que logo desaparecerão também. Eu queria que você não tivesse passado pela parte ruim. Eu queria que eu não tivesse passado pela parte ruim. Eu queria que a nossa história tivesse sido menos almodovár, com seus corpos dentro de freezers, latina & sanguinolenta e mais woody allen: paranoica, mas bonita. E se tivéssemos nos separado no fim, que fosse sem esse descontrole penélope cruz de quinta que sou. Eu queria ter te conhecido numa outra época. Eu queria não ter raiva desse vestido de oncinha.


Você costumava gostar desses meus "confessionais", mas eu acho que nem lê mais meus textos. Não vou te mandar porque não faz sentido. Esse texto fica como aquele "se encontrar na paulista daqui três anos". Se acontecer bem, se não acontecer ok, se acontecer daqui há dois anos quem sabe. Desculpe qualquer ódio destilado. É meu jeito de internalizar a coisa. A gente bate no amiguinho que quer chamar atenção no colégio. Agora eu admito: eu queria chamar a sua atenção. Odiar tudo que me lembra você é meu jeito de te esquecer. Odeio esse ano, o chico, e o vestido de oncinha. Odeio meu perfume, a rússia e o anel de coruja. Odeio quem toma café no starbucks e todos aqueles que compram roupas de marca. Odeio São Paulo. Odeio aquele quadro do fantástico "phantasmagoria" porque é o nome do jogo que você descobriu que te fez estudar russo. Odeio quem tem mania de limpeza e quem lava as mãos todas as vezes antes de adentrar o recinto. Sinto culpa. Não odeio qualquer uma dessas coisas. Queria, talvez. Mas não, eu até seria sua amiga. Não-te-odeio.

(ufa, falei).

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