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25.6.12

pequena nota sobre o erro

é que o erro não foi nem tanto meu, nem tanto seu. nada daria certo antes que estivéssemos completamente crescidos. nós, e o sentimento. nada daria certo porque não era a hora certa. eu precisava disso, você talvez não precisasse de mim (não agora), e tudo se configurou do jeito que a vida  devia ser. agora que cresci sei que a culpa nem foi minha, e nem foi sua. foi culpa do tempo. naquele tempo, daquele jeito torto e atropelado nada daria certo. nada daria certo, enfim.

não deu.
suerte, que seja. ao futuro a vida. sempre ao futuro, a vida.
a gente se conforma. e vive. por hoje, pelo menos.
"amanhã, ninguém sabe", já diria o chico. E você sabe, o Chico sempre tem razão.

23.6.12

there's more to give then what you take from me

Eu olhava os barcos e pensava nos filhos. Ainda queria tê-los? O problema não eram os filhos em si, mas todas as certezas que eu um dia tive e agora tinham se tornado dúvidas. Era o pior momento da minha vida. Eu segurava meu cabelo num coque desgrenhado e olhava o horizonte à procura de respostas. Já tinha perdido tudo: o emprego, um grande amor, meus grandes amigos tinham mudado de cidade depois do término da faculdade e naquele momento eu me encontrava juntando os cacos da minha última decepção amorosa. Num dia pensávamos em casar, e no outro ele me odiava de tal maneira que devia cuspir ao dizer meu nome, como quem tira de si uma coisa que tem nojo. "Mas era assim, a vida", eu tentava me consolar. Não funcionava. A resiliência é mais fácil quando se tem entre dezoito e vinte e um anos, mas depois disso é tudo muito pior. Toda aquela tragédia amorosa sinalizava pra mim que eu nunca mais seria capaz de fazer planos com mais ninguém. O peso das escolhas erradas vai batendo no ombro da gente de tal forma que depois não tem mais como carregar. Tudo tinha se bagunçado de um jeito tão estranho que eu me questionava até sobre as minhas certezas mais primordiais. Os filhos, eu não sabia mais se queria ter filhos. E não era só isso, eu não sabia mais de nada. Nada. O não saber de nada te dá, supostamente, um certa liberdade. Quando você não sabe de nada você pode fazer absolutamente qualquer coisa. Mas eu não fazia nada. Permanecia parada olhando o horizonte pensando o que seria de mim aos vinte e três anos. Não tinha resposta nenhuma. E eu precisava de respostas. Mais do que nunca. Qualquer uma delas.

trecho perdido em mais um dos arquivos da madruga que há uma semana nomeei de "livro".

20.6.12

minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos


Pai, eu nunca te disse nada (e nem vou dizer, pois não espero te ver lendo isso nunca-nunquinha) e até pretendia quem-sabe tratar em meio a psicólogos, analistas, freud, jungs e lacans esse nosso problema de comunicação que nos faz falar sobre futebol, construções e clima. O você não saber sobre a minha vida exceto quando doente, quando se dá conta por causa do seu desequilibrio químico, que não somos próximos. Já fomos, talvez. No meio da minha espontaneidade infantil, passava com você manhãs em que me sentia útil, apertando botões no banco e fazendo jogos da mega-sena. Hoje acho essa sua mania de jogos vício e vejo dinheiro escorrendo pelo ralo. Vejo também, uma relação que pouco existiu, escorrendo pelo ralo. Talvez você ache que gosto mais da minha mãe. Talvez. Somos mais próximas porque somos diferentes. Você é igual a mim. Eu me enxergo na sua compulsão e na sua teimosia. Eu sou cada doce que você come apesar da diabetes. Eu sou a sua mania de deixar tudo pra depois. Eu sou seus surtos elétricos de vontade de aprender uma coisa, e depois deixá-la. Eu, assim como você, não sei lidar com amor. Precisamos os dois da mãe, enquanto repetimos pra nós mesmos que não precisamos de ninguém. Eu finjo uma compaixão, você é mais sincero. Precisamos da mãe em meio ao seu rancor por nós e suas vingancinhas de almoço porque ela sabe amar mais que nós. Sabe sim, pai. Sabe deixar as coisas arrumadas, sabe perder noites de sono, sabe acordar cedo pra vigiar nossos horários (nós que não sabemos dormir antes das duas, e acordar antes das dez). Ela sabe tolerar nossos gritos altos nos jogos do são paulo, embora deteste. Às vezes ela cansa de nós. Espeta pequenas agulhas aqui e ali, de rancor reprimido que ela acha que não tem. Você explode. Grita. Fala o que não deve. Eu te odeio nessas horas porque me vejo ali. Espatifando o coração da outra pessoa como se eu não morasse lá dentro. É que eu e você, pai, a gente só sabe demonstrar amor fazendo comida, dando presentes, comprando o doce preferido na padaria do lado. E desajeitamos porque erramos por vezes o doce preferido, porque não prestamos tanta atenção assim nos outros. E não sabemos amar com fervor nada que não seja nós mesmos. Mas eu sei te amar um pouco mais do que eu amo a mim mesma. Eu sei que você sabe me amar um pouco mais do que ama a si mesmo. Mesmo que não admitamos nunca. Eu queria te dizer essas coisas, mas só sei te dar discos dos beatles e comprar chocolates diet, de quando em vez. Eu quis escrever tudo isso porque achei, sempre achei, que tinha virado assim escritora porque minha mãe me incentivou a ler. Depois percebi, agora, ouvindo secos e molhados (coisa que é sua em mim), que o escritor é antes de mais nada feito das experiências que viveu. E metade do que eu experenciei, vem de você. Porque metade (ou mais) do que sou é você, pai. 

(meu sanggue latino, minha alma cativa). 

17.6.12

Packt Like Sardines in a Crushd Tin Box

vocês sabem, a vida fica impossível de ser vivida a partir do momento em que você não tem mais pra quem ligar, na hora que seja e dizer: "vem aqui em casa me salvar". daí tomar coca, jogar cartas, conversar sobre a vida. sem nada mais que o som das nossas próprias conversas salvando a vida dos monstros. não tem ninguém do outro lado da linha. não tem ninguém nessa cidade à distância de dois ônibus ou um táxi. não tem ninguém em casa além dos meus monstros. um foi embora da vida, o outro deixou a cidade. I miss my boys. I miss my boys so much. vazio de presença.

os amigos dos amores

(ou, como é difícil competir com uma possibilidade).

Quando ele me amava, eu não o amava de volta. Não por nada em especial, ele tinha os jeitos certos de me tratar desde a primeira vez em que me viu. Não atrasou no primeiro encontro e, mesmo dizendo que talvez chegaria atrasado, resolveu sair correndo porque ele é quem devia esperar. Confessou ele, alguns meses depois, que tinha medo que eu fosse embora. Ele estava certo mesmo sem saber: sou dessas de ir embora. Por ele - ele também não sabia - eu não iria embora não. Alguma coisa nele tinha me encantado o suficiente pra que eu quisesse ficar. Nem que fosse pra ter certeza que aquela figura que eu tinha imaginado na minha cabeça nada tinha a ver com a personificação do real. No fim das contas tinha sim, mas por alguma razão, não ficamos juntos. Antes eu culpava ele. Achava que ele nunca tinha  se irritado muito com esse meu jeito expansivo e piadas fora de hora quando colocada em situações limite. Depois percebi que nossa não-junção foi muito mais por uma falta de comunicação mútua do que por um não-querer. Agora eu acho que foi coisa da vida mesmo: não era pra ser. Assim, bem fatal.

Eis que, como acontece com toda relação que não funciona não por briga, mas sim por impossibilidade: nos tornamos amigos. Muito amigos. Nossa relação foi sempre pautada numa admiração mútua (e meio louca). Uma vez, conversando com um outro amigo, ele me disse que só se ama aquilo que se admira muito. Quanto maior a admiração, maior o amor. Talvez essa seja uma grande verdade da vida ou, talvez, só tenhamos acreditado nisso porque éramos os dois aquarianos. Eu concordei. Eu admirava aquela outra criatura que fazia parte da minha vida como uma coisa quase-perfeita. Até os defeitos dele eram bonitos. Os jeitos estranhos de se portar, as piadas ruins: tudo nele era passível de ser admirado. E tinha mais: ele nunca me decepcionaria, porque a nossa relação era uma das relações mais puras: a amizade. Ele tinha comigo uma idealização louca. Sempre me achava inteligente demais, muito bem vestida, dona das boas piadas, das boas sacadas, das boas comidas. Levava minha opinião em conta, como uma espécie de guru. Se eu não gostasse da coisa a coisa tinha grandes chances de não prestar. Era assim com as bandas, com os livros e, até, com os amores. Os amores dele (foram muito poucos durante a minha estada em sua vida), tinham que passar pelo meu crivo. O que esperar de uma pessoa que a dona da sua admiração não aprova? Nada, ele supunha. Nada de fascinante, ao menos. E foi assim que concluí aquilo que disse logo no início dessa divagação: quando ele me amava, eu não amava de volta.

Um dia, ele me disse, muito convicto que não podia continuar com uma das meninas com quem estava por uma simples razão: eu não gostava dela. Me envaideci, claro, porque qualquer uma se envaideceria diante dessa constatação, mas me assustei. O gosto era dele, assim como a vida, e eu não tinha nenhum direito de intervir como uma espécie de fantasma, ou até mesmo de modelo, na vida amorosa dele. Não tinha, mas intervi. Imagino que eu ficava ali, na memória dele como um espírito ruim. A toda vez que a menina não se aproximava do que eu era, ela perdia pontos. Imaginei ela tentando fazer as piadas que não eram minhas, ou não derrubando um tico que seja de coca na mesa, ou não sabendo dos livros que ele gostaria que ela soubesse (porque eu sabia). Naquele dia ele me disse que desistiria de vez daquela garota, e que eu não me preocupasse, ele encontraria alguém que tivesse mais a ver comigo. Ele falava dela pouquissimas vezes antes do término. Não me contava as histórias dela, e por vezes omitia a presença dela na vida dele. Era como se ela não existisse mesmo quando havia existido. Tudo que eu soube dela foi o começo - em que reprovei um pouco, e o final. O final pra ele parecia um alívio. Ele finalmente tinha se livrado da pessoa que eu não aprovaria. Ele agora estava livre do meu fantasma.

Qualquer pessoa digna da admiração de alguém se torna um fantasma. Ele também era o meu, eu só não dizia. Todas as vezes que os meus amores não agiam como ele agia comigo eu me sentia mal. Eu quase passava tutoriais pra eles de como eles deviam se portar. "Não conta essa piada boa não, conta essa que é ruim, mas que eu vou achar engraçadinha" "Segure minhas sacolas no mercado, erre as combinações de roupa. Cuide de mim. Qualquer coisa assim. A verdade é que ninguém compete com uma possibilidade, uma idealização. Nenhuma menina nunca competiria comigo, porque a nossa relação era perfeita. Nunca uma briga, nunca um defeito grave, algo que irritasse. Nenhum cara nunca competiria com ele, porque ele era o cara perfeito. Éramos, e não éramos. Éramos porque nos admirávamos e nos gostavamos sem restrições. Não éramos porque uma relação de amizade, por mais estreita que seja, não é um relacionamento. É mais. De um amigo você aguenta coisas que, talvez, em um namorado não suportaria. Os amigos fazem tudo um pelo outro. É um amor irrestrito assim como é um amor que não se vê todo dia, não se cobra jantares, onde não se tem direito de brigar por ciúmes. É um amor sem a obrigação do amor. Nenhuma menina nunca chegaria a ser o que eu era porque a relação é outra. Nenhum cara nunca seria o que ele foi, porque a relação é outra. Eu sou outra. Ele é outro. A verdade é simples: não há como competir com uma idealização. Não tem como competir com a pessoa pra quem você não tem medo de ser exatamente aquilo que é. Não tem como competir com a pessoa com quem você divide a vida, que sabe todos os seus gostos, que entendeu seus traumas de infância e sua visão sobre deus e o diabo. Não terá nunca como competir com quem te livra de você mesmo todas as vezes que seu mundo desaba. Não tem como competir com a possibilidade de uma coisa que ainda não foi. Não tem como competir com o amigo ou a amiga que seria seu namorado perfeito, mas que nunca foi seu namorado (ou namorada).

A gente deixou de ser os fantasmas um do outro quando nos tiramos dos pedestais. Ele foi namorar outra menina (que nada tinha a ver comigo) e se libertou. Eu demorei um pouco mais, mas percebi que uma relação (mesmo se fosse com ele) estaria fadada a fracassos. Porque o amor é isso, é um passo antes do fracasso. Estamos sempre um passo antes do fracasso. Nós podíamos nos odiar se namorássemos. Podíamos nos degladiar em terríveis brigas sobre o jeito errado que ele tem de deixar o copo na pia. É a intimidade que afasta. Todos nós nos decepcionaremos. Resta saber se a decepção é maior ou menor que o amor. Ninguém pode competir com uma possibilidade. Elas não conseguiram, eles não conseguiram, e eu já perdi também pra uma possibilidade. Você nunca vai ganhar de uma idealização. Nem sendo a melhor pessoa do mundo. Nem dando o máximo que conseguir. Eu só percebi quando estive do outro lado. Do lado da menina que foi deixada porque não era ela (e competia com seu fantasma).

Os amigos dos amores sempre ganharão, porque eles querem eles e não a gente. E eles não existem. Ninguém nunca vai ser melhor do que alguém que não existe.

Não há como competir com uma possibilidade.
E sucumbiremos. Até que a possibilidade se torne realidade, e a realidade faça o que sabe fazer de melhor: fustrar-nos.

14.6.12

and anything that makes you, you.

John Fante tem um livro chamado "1933 foi um ano ruim". Meu ano de 2012, excluindo algumas partes, poderiam dar um livro com esse título. Todo momento de crise é, também, um momento de auto descobrimento. Quando sento no meu quarto de paredes beges completamente descascadas (tinha nelas fotografias coladas que arranquei num desses momentos de auto descobrimento e com a fita saiu também a tinta, o que culminou numa parede bastante - mas bastante mesmo - descascada), percebo que cheguei ao fim de um ciclo estranho que poderia ter me levado pra outros caminhos, mas não levou. Não digo isso com pesar. Digo até com um certo alívio. Estive num período de euforia bastante complicado. É muito estranho não saber o que se quer já que, quando não se sabe o que se quer, teoricamente, qualquer coisa serve. O gato da alice já diria que, quando você não sabe pra onde ir, qualquer caminho serve. Quase me enfiei num emprego qualquer, aluguei um apartamento qualquer e fui viver os riscos que a vida podia me oferecer. Eu sei, eu sei, eu não morreria. Meu vô continua certíssimo em dizer que só se morre quando tem que morrer e, talvez, eu pudesse ter usado todo esse erro como aprendizado lá pra frente, e curado minhas crises com um porre ou outro no meu apartamentinho pequeno na grande São Paulo.

Mas daí o emprego não vingou, e quando eu tinha resolvido procurar tudo com um pouco mais de afinco, a vida veio de viés. Por algumas semanas, talvez meses, eu quis maldizer a vida - e a mim mesma - por tudo que aconteceu. Não é justo afinal que, toda vez que a gente pareça ter achado um caminho, ela chegue com os seus caminhos irônicos e nos mande pra longe. Não era a primeira vez que a vida tinha me pregado peças. É claro que eu já caí de cara no chão milhares de vezes, e levantei. De nariz sangrante, mas levantei. Não seria diferente dessa vez. Não seria, mas foi. Tudo foi se acumulando de um jeito meio louco. Perdi o emprego, não sabia mais se era aquilo mesmo que eu queria. Fui pra outra cidade, conheci outras pessoas, ensaiei outras possibilidades. Tudo sem muita certeza. Eu não sabia o que eu realmente gostava e quase sempre aceitava as sugestões dos outros sobre o que comer, ou a que lugar ir. Aceitava, inclusive, sugestões sobre a minha vida. Se me diziam que talvez fosse melhor ir por ali, eu cogitava ir por ali. Decorei poucos caminhos, comi coisas que nem gostava tanto assim, frequentei lugares por hábito e fui indo. Barquinho na correnteza. Desacreditei da minha capacidade milhares de vezes. Tinha dificuldade em listar meus escritores preferidos. Não sabia quem (ou o quê) eu gostava mesmo de ouvir. Meu estilo de roupas acabou ficando uma coisa meio editorial de moda, nada original. Tudo que eu estava sendo eu via nos outros. Não via mais filmes. Lidava com gente que nada tinha a ver comigo porque eu tinha me tornado adaptável. Eu ria de piadas que eu não achava graça e cogitei seriamente parar de esfumar o canto do olho. A maquiagem que eu usava tinha aprendido num tutorial da internet. Eu não falava muito de mim. Eu não pensava muito em mim. Eu corria todas as manhãs ouvindo músicas pop que me distrairiam da vida. Eu corria 10km por dia e não conseguia encontrar nada, nem me livrar de mim mesma. Eu nunca soube que sabor de café do starbucks eu gostava mais. Eu não sabia sequer se eu gostava mesmo de starbucks. Ou das minhas roupas. Ou da padaria. Ou de londrina. Ou da minha pós graduação. Ou do jeito que me tratavam. Eu pintei meu cabelo de loiro e deixei crescer. Eu e as minhas roupinhas do sartorialist. Um copinho de starbucks na mão. Uma identidade paulistana que eu criei.

Em São Paulo, saibam, todo mundo é passível de ser confundido com um morador nativo porque tem tanta gente que ninguém tem cara de nada.

Daí eu perdi a última coisa que eu ainda tinha. Desastrosamente. Eu me distanciei tanto de mim que eu nem sabia mais quando eu estava ou não feliz. Podia ser qualquer coisa. Podia morar em qualquer lugar, comer qualquer comida, apreciar qualquer vinho. Me vestir do jeito que soasse mais interessante. Eu editoraria livros, se fosse o caso. Ou trabalharia no jornal. Ou seria social media. Designer Gráfica, quem sabe? Webdesigner. Assistente de usabilidade. Fazer aplicativos pra dispositivos móveis. Mandar textos para vagas de redatora. Escrever pequenos contos e tentar as revistas femininas. Vomitar uma casa inteira e continuar ouvindo arctic monkeys na sala. Sair no outro dia como se nada tivesse acontecido. Me vestir de hipster em meio aos hipsters. Cantar todas as músicas de uma banda que nunca foi a minha banda preferida. Me portar como se nada nunca tivesse me pertencido. Voltar pra casa e entrar num buraco negro tão profundo que ficava difícil acreditar que fundo do posso tem alguma coisa a mais que subsolo.

O fundo do poço tem muitas casinhas. Inúmeras casinhas. Quartos fechados com monstros que você nunca imaginou que existissem dentro de você. Nas portinhas do fundo do poço tem pânico. Tem compulsão. Tem culpa. No fundo do poço só tem apatia. Mais nada. Amor? Não tem. Raiva? Também não. Arrependimento? Não tem também. Tem só apatia e desespero. Um desespero tão grande que te faz pensar se um dia você vai mesmo sair dali. Você sobe alguns degraus, depois. Nesses as portinhas te assombram com tudo aquilo que te fez mal. A não identidade do sujeito cria um sujeito frankstein. Milhares de pedacinhos remendados. Chega uma hora que os remendos doem. Tudo aquilo que eu passei por cima pra agradar, ou simplesmente por não saber o que fazer me doia. Eu tinha sido mutilada. Ninguém me forçou, ninguém colocou uma arma na minha cabeça. Ninguém me estuprou, mas estupraram. A cada vez que eu fiz algo que não era exatamente meu, eu fui violentada. Chegou uma hora que eu tinha noção que a violência era tanta que o simples fato de me olhar no espelho me deixava estranha. Teve uma vez, num dos meus únicos episódios de bebedeira, em que eu tomei um drink com algumas coisas. Não se sabe que coisas eram essas, mas tudo que eu me lembro era de me olhar no espelho e sentir que a minha cara estava derretendo. Toda vez que eu colocava a mão no meu rosto, ao olhar no espelho, eu me sentia colocando a mão no rosto de outra pessoa. A pessoa que eu via minha mão tocar no espelho não era eu, era outra. Pois bem, eu também não era eu: era outra. Uma outra qualquer.

É claro que essa conclusão não veio assim, tipo foguete. Não se saber é um troço muito dolorido. No começo eu não queria nem sair da minha cama. Depois comecei a me culpar. Eu devia estar bem sucedida, sabe? Todo mundo faz alguma coisa. Todo mundo sabe se portar. Algumas vezes eu pensei em arrumar um emprego qualquer, só pra fazer parte de algo. Outras vezes eu pensava em mudar de vez pra aquele ser centrado e organizado que exigiram que eu fosse. Tinha vezes que eu queria pedir desculpas publicamente por ser uma bagunça. E era aí que eu continuava sentadinha no sofá da minha sala com meu pijama sujo de comida. Nas últimas semanas, eu subi um tanto mais pra borda do poço. Daí percebi que, antes de tudo, eu sou uma pessoa. Ok, isso soa débil. Uma pessoa independente de qualquer outra coisa. Eu tenho gostos que formei, maneiras de me portar, tiques nervosos, traços de personalidade herdados genéticamente, gostos muito próprios, um humor construído ao longo de vinte e poucos anos. Bagagens. Sofrimentos vários. Sonhos. Planos pro resto da vida. Coisas que me fazem sorrir. Gente que eu admiro. Lugares que amo e lugares que detesto. Eu quero ser feliz também, como todo mundo quer.

Só que pra ser feliz a gente não pode ficar sendo estuprada por aí. Os fluidos dos gostos de alguém, ou daquilo que esperam que eu seja, não podem entrar assim, indiscriminadamente, pelo meu corpo. Foi aí que eu descobri que eu nunca soube de verdade se eu queria mesmo mudar pra São Paulo e resolvi me ater ao presente. O presente inclui o que eu tenho que fazer. Eu tenho que fazer uma monografia pra um TCC de pós graduação que, pra uma menina de 23 anos é um avanço bastante grande, obrigada. Eu realmente não sei se eu quero mesmo trabalhar com design. E enquanto eu não souber, eu pretendo ficar quieta. Eu não sou uma fracassada, sabe. Eu sou um pouco espontânea, eu escrevo razoavelmente bem (embora eu erre bastante as vírgulas), as pessoas costumam gostar bastante de mim. Eu posso esperar seis meses pra começar a construir uma carreira, seja ela qual for. Daí eu mudo de cidade. Ano que vem sim, mudarei de cidade. Eu não preciso me vestir igual um ediorialzinho de moda o tempo todo. Eu não sou uma bagunça, e eu tenho todo o direito de ser desajeitada. Todo mundo quebra seus copos de vez em quando e isso não torna ninguém pior ou melhor. Eu ainda gosto muito de cinema. E de literatura. E de futebol. E de redes sociais. E estou muito, mas muito feliz em ser (ainda) essa mulher de ideais feministas que não se submete a qualquer coisa. Eu assisto tv, eu desmembro meus lanches todos ao comer, eu tenho preguiça de ler alguns livros, eu não sei dizer que tenho saudades, eu ainda sou péssima em fazer convites. Eu falo alto demais, rio alto demais, uso gíria de gay demais. Meu escritor preferido continua sendo o mutarelli, meu roteirista preferido continua sendo o kaufman. Minha banda preferida continua sendo o Oasis. Eu ainda amo o chico buarque. Eu sou uma escritorazinha de merda, mas tenho devaneios de grandeza. Isso sou eu, sabe. Precisa de ajustes (porque sempre precisa), mas sou eu. Tudo isso me constrói. Eu tenho 23 anos, e olha, eu não sei exatamente o que eu quero da minha vida. Porque eu acho que ninguém sabe exatamente. Sair correndo louca atrás de um propósito não vai me fazer melhor. Só vai fazer com que eu visite o fundo do poço mais frequência. Eu visitei ele esse ano. Eu estraguei bastante a minha vida, mas podia ter sido pior. Tudo é um ridículo aprendizado. E todo aprendizado, eventualmente, consiste em descascar paredes. O tempo destrói tudo - e reconstrói tudo depois.

Eu podia ter morrido, mas eu continuo aqui. Todos nós sobrevivemos. A grande verdade é que a gente não sabe da gente quando se olha no espelho, o espelho nos mostra invertidos. A gente sabe da gente quando olha pra dentro. No fundo do poço. No silêncio. Mutarelli diria que a vaidade destrói tudo. Eu diria que a vida também destrói. E constrói mais uma vez. O eterno retorno. A leminscata. No meu quarto de paredes sem tinta eu chego à conclusão derradeira: eu estou exatamente onde eu deveria estar agora.


11.6.12

you could see it coming.


Vejo fotos de quando eu tinha o cabelo preto-azulado e lembro que tinha essa foto no finado orkut, com a legenda da música do chico buarque. "ela faz cinema". Não sei por quanto tempo essa música foi "a minha música". O hino da mulher dissimulada. Livre. "Ela faz cinema é tão aquariana, né?", meu amigo dizia. É. Luiza também, sabe? do Tom. Chico buarque entoava "Sob Medida" no show e eu gritava baixinho "minha música". Era mesmo. Foi. Por muito tempo. Sou bandida, sou solta na vida. Sou aquariana. Livre. Rapte-me, Camaleoa. Começou com o Dexter, tudo isso. Sabe, o laboratório? Lembro de um episódio em que transformavam a dee dee na princesa poney puff. As amiguinhas dela todas queriam montar nela, fazê-la de escrava. No fim do episódio ela bradava: "Ninguém pode domar a princesa poney puff porque ela é um espírito livre!". Subnick do meu msn por anos. Ninguém pode domar a princesa poney puff. Eu, princesa poney puff, prazer. E foram vinte anos sendo assim. Vinte anos inteirinhos. Até que a princesa poney puff se apaixonou. "Ninguém pode domar a princesa poney puff porque ela é um espírito livre". Fugi. Fugi por meses. Era livre demais pra essa coisa de paixão, querer casar, imagina só ter uma família, viver pra-sem-pre com a mesma pessoa? Calafrios. Até que ele apareceu. Usava as calças erradas, tinha o corte de cabelo errado, um sorriso torto e as piores piadas do mundo. Não sabia abraçar. Dava um beijo no rosto muito esquisito. Às vezes me cumprimentava com um aperto de mão. Chegou ao cúmulo do aperto de brother. Me passou todos os filmes preferidos dele pra eu ver, sem nem perguntar se eu queria. Me dava inúmeros CDs com as bandas preferidas dele. As piores piadas do mundo. Amava sempre as músicas que eu mais odiava. Não sabia escrever direito, mas se achava bom. Delírios de grandeza. Morar fora do país. Um cinto caramelo horroroso. Comia tudo que visse pela frente. Gostava de vinho barato. Achava graça nas piores esquetes do hermes e renato e depois repetia de um jeito débil. Ele, inteiro débil. Normal. Um cara normal. Livros, filmes, piadas de garotos, reparava nas gostosas da festa. Tímido. Me entendia pelo olho. Me mimava. Tinha o abraço desajeitado mais legal do mundo. A melhor companhia pra todos os eventos. As melhores mensagens de texto. As melhores piores piadas do mundo. O jeito encantador de escolher roupas que nunca combinavam entre si. O all star sujo. O cinto caramelo poído. As calças de lavagem esquisita. Corinthiano. Manias de escolher lugar no cinema. No meio, sempre. Ele cuidava pra que eu não me matasse. Escutava as minhas crises. "Calma, sua vida não é tão ruim assim". Meu leitor mais dedicado. "Todo mundo sabe que você escreve bem". Carregava minha cesta de compras no mercado. Depois as sacolas. Elogiava a minha comida. Soube lidar. "Ninguém pode domar a princesa poney puff porque ela é um espírito livre". Exceto por ele. Ele podia.

Eu quis casar com ele. Construir família. Dividir sobrenome. Morar numa kitnet. Cozinhar todos os dias, almoço e janta. Ele lavava a louça. Morar na puta que pariu. Dividir os eletrodomésticos em dez vezes. Quinze. Ter uma estante de livros. Dividir a estante em vinte e quatro vezes. Andar de ônibus. Ter dois filhos. Tomar vinho ruim pro resto da vida. Ele era o meu caminho. A minha salvação. O amor da minha vida. Não importavam as circunstâncias. Vinho ruim em copo de plástico, tomar chuva, perder os chocolates preferidos da minha caixa de bombons, fazer chocolate quente em todos os fins de semana, ouvir as piores piadas do mundo: e rir. O amor da minha vida. Nenhum defeito. Olhos fechados pro egocentrismo, vista grossa nas manias de grandeza, nisso de querer ser popular, reconhecido, "o funcionário do mês", morar fora do brasil (aqui nada funciona). Tudo ridículo. Tão débil ele. O amor da minha vida. Lindo. Débil e lindo. Sempre lindo. As piores escolhas de roupa do mundo. Lindo. Moletom por baixo da jaqueta de couro. Inaceitável. Lindo. Eu, completamente apaixonada. Pela primeira vez na vida não ligava de ser domada por alguém, estar completamente vulnerável, fazer planos, querer passar juntos todas as festas de família. Declarei-me completamente apaixonada. Integralmente apaixonada. Cantando-lulu-santos-na-cozinha kind of apaixonada. Daí ele se foi. Fiquei numa cadeira, chorando. Eu, meu moletom roxo, meu all star vermelho furado, minha camiseta do surfista prateado (igual a dele), meus cabelos descoloridos. Sem chão. Chorando baixinho na cadeira no meio da festa. O amor da minha vida foi embora levando metade de mim, e todos os meus sonhos. Um ano e meio de sofrimento. Chico Buarque. Ninguém podia mesmo domar a princesa poney puff. Sou bandida sou solta na vida. Festas. Namoros casuais. Desilusão. De novo a cadeira. "Um dia ele se toca e me busca". O amor da minha vida. 

Ele não era o amor da minha vida. Ele era o amor da vida dela. E eles são felizes, embora ele esteja mais magro e mais feio. Ou eu acho isso, porque não amo ele mais. 

Faz uns três meses que descobri que não amo ele mais. Talvez menos. Jurava que eu ia chorar por ele pelo resto da minha vida. Ou um dia ele ia vir me buscar. Eu, solta na vida, fodida, chorando na janela com meu batom vermelho depois de seduzir meio mundo. Esperando por ele. Ele vem, me pega pela mão. Vamos casar-e-construir-família. Não vai acontecer. Não amo ele mais. Ele é o amor da vida dela. Ok. Ninguém pode domar a princesa poney puff porque ela é um espírito livre. Bandida, solta na vida. Nunca será de ninguém. Dessas mulheres que só dizem sim. Don't play that stupid game 'cause I'm a different kind of girl. E sou. Livre. Aquariana. Não tente me prender, eu escapo pelo vão dos seus dedos. Flerto até com os vasos de planta na rua. Finos meninos se inclinam pro lado do sim. Jogos de amor são pra se jogar. Desilusões, desilusões. Vinte e três anos jogando. Estou cansada. É difícil admitir. Estou cansada. Cansada dos jogos, das maquiagens, dos batons vermelhos. Eu sou bem fodida, sabe? Eu chorei por um ano e meio inteiro por ele. Mas ele ia me buscar. Agora eu não amo mais ele e eu sei que ele não vem mais. Me sinto como aquelas putas velhas do bordel que se cansaram de tanto seduzir clientes. Não gosto de admitir que sofri. Fato é que me sinto sempre sentada naquela cadeira onde ele me deixou. Frágil. Apática. Perdi a única coisa pela qual me permiti ser domada. Limpava as minhas lágrimas no meu moletom manchado de água sanitária. Não sei lavar minhas roupas. Não sei brincar de amar. Estou completamente sozinha. Não existe nem ele assim, referencial. Não existe o amor da minha vida. Ele está feliz com ela, e eu estou feliz por ele. Tudo acabou. Eu finalmente parei de sofrer, mas não quero de novo. Não quero de novo amar e não ser amada. Não quero ser deixada na cadeira chorando. Queria estar mais forte. Queria voltar pra tudo aquilo, rapte-me camaleoa, nunca será de ninguém, ser dessas mulheres que só dizem sim. Sempre fui assim. A vida toda assim. Só com ele que não. Um simples deslize na corda bamba da vida. Quis finalmente sossegar e ele me deixou. Porque tinha que deixar, é claro, a vida é assim. Mas meu coração cansou. Está cansado. Não sei mais jogar. Não sei mais lidar com frustração. Meu coração continua sentado naquela cadeira enxugando as lágrimas num moletom sujo de comida. Desajeitado. Frágil. Vulnerável. Quebrado. I'm pretty fucked up. De um jeito que você só percebe quando chega muito perto. Tenho muito medo. Muito medo mesmo. Como aquelas crianças que temem em dar o primeiro passo e se estabacar no chão. Ando pelas estradas do amor com uma bicicleta com rodinhas. Não deixo que tirem as rodinhas. Não sei brincar. Acho que não quero me declarar nunca mais. Não assim, amor de verdade, sinceramente, com planos de casar. Tenho medo. Medo de estarem mentindo. Medo de estar me enganando. O tempo todo, medo. Passei da fase da dissimulação. Preciso de sinceridades. Estou velha e preciso que sejam francos comigo. Não posso mais ser deixada desavisadamente numa cadeira e ver a pessoa que eu amo sair de mãos dadas com o verdadeiro amor da vida. E eu sozinha. Chorando. Com meu all star furado e meu desajeito. Não agüento mais um baque desses. Fico sempre tentada a abandonar tudo antes que aconteça o abandono. Me auto saboto. Tenho medo que meu coração não volte a bater de novo, se acontecer mais uma dessas. Me protejo. Ninguém pode domar a princesa poney puff porque ela é um espírito livre.

Não sei o que aconteceu com essa mulher livre. Queria voltar a ser. Mas estou cansada. Machucada demais. Fico quietinha esperando que verdadeiro amor da vida (se existir), chegue de mansinho, sem forçar demais, sem machucar demais. Não sei comer sem me sujar, erro as vírgulas, meu coração explodiu nos últimos dois anos, ficou só os destroços e daí desaprendi a ser assim, sob medida pros carinhos teus. 

Ninguém pode domar a princesa poney puff porque ela já sofreu o suficiente. 
(mas secretamente ela ainda espera que alguém consiga).

É que no fim, todo mundo espera um amor pra vida inteira. Até a Luiza do tom, a menina que faz cinema do Chico, as bandidas soltas na vida, e as camaleoas. Até eu espero. Alguém. Um dia. 
Que merda. 


(Escrito em 19/03/2012 - Uma profecia; ou: eu sabia que tudo ia dar errado e eu não ia aguentar. Bingo. I was not ready for). 

6.6.12

You're on the road, but you've got no destination

Eu acendo meus cigarros, dizem que o pulmão vai sentir os estragos disso daqui dez ou vinte anos, mas foda-se. Pra quê as pessoas querem viver tanto assim, afinal? Pra verem mais guerras, para serem despedidas de mais empregos, para terem mais desilusões amorosas? Não condeno os fumantes, nem os que abusam do álcool, nem aqueles que correm com seus carros desembestadamente nas rodovias perigosas. Não condeno quem pula de para-quedas, e nem quem sai de moto sem capacete. Não condeno quem anda na chuva sem guarda chuva, nem quem usa drogas. O instinto de auto preservação não serve pra nada, a não ser que você tenha uma família, pessoas que dependem de você, uma perspectiva de vida. Eu não tenho. Acendo um cigarro atrás do outro e espero mesmo que meu pulmão fique preto. Apodreça. Tanto faz. Cinco, dez anos a menos de uma vida besta tipo essa não faz diferença alguma. A vida não é uma ciência exata, tipo matemática, tipo física, tipo qualquer coisa que seja. E mesmo que fosse, mesmo dentro dessas exatidões existe o caos, existe a teoria da improbabilidade, o Gato de Schrödinger - o gato pode estar vivo ou morto, ninguém sabe. É tudo muito relativo. De repente sua vida toda vai se configurando em alguma coisa maravilhosa e, por algum imprevisto, um evento mínimo destrói toda a felicidade. E tudo vai por água abaixo, tudo aquilo que você demorou anos, meses, semanas pra construir. Podem haver universos paralelos, dezenas deles, onde a gente é feliz e bem sucedido, ao contrário dessa merda aqui - onde tudo sempre dá errado; mas hoje a realidade é essa daqui: destrutiva. Não há porque acordar de manhã, não há o que produzir, não há um futuro com que sonhar. Se foram os amores, todos eles, por causa das razões mais bestas possíveis: um desencontro, um sábado desastroso, uma falta de comunicação na hora em que não devia ser. Também, não há nem quem culpar; as coisas seguem seus cursos naturais, sejam eles quais forem. Eu nunca mais tinha ouvido coltrane, me encontro aqui, no segundo maço de cigarro destruindo minha vida com jazz e tabaco: eu não podia ser mais clichê. Eles me deixaram, todos eles que podiam me deixar me deixaram. Os amigos, os grandes amores, as grandes perspectivas, minhas grandes teses. Me sobrou a solidão. A solidão, minhas peças de teatro, meus filmes, minha dezena de livros inacabados. Minha vida é isso, esse projeto sem começo nem fim, sem plot incrível, sem intervenção artística nenhuma. 

Seria mais fácil ser mais uma dessas pessoas que correm do jeito que dá, do jeito que podem, mesmo que tropecem, mesmo que ralem seus joelhos e acabem por dividir garrafas de vinho com gente que nem gostam muito. Pra mim tudo isso não interessa. Achei o caminho do cinema, gosto das paredes do meu quarto, não sinto necessidade de companhias vazias, sejam elas quais forem. Tenho medo, muito medo que a vida se torne essa coisa morna, essas escolhas malfeitas, esse eterno "estou aqui porque não tenho nada melhor". Se não é tão bom assim eu fico na minha. Eu, meus cigarros, meus disco de jazz envelhecidos. Eu, meu cabelo fora de corte, e as unhas sempre por fazer. É que no fim pode ser que tudo isso não tenha sentido algum. Eu tenho medo é das ponderações, de todos aqueles que não comem carne porque pode entupir as veias, dos que morrem de medo de morrer de câncer, de excesso de sódio; tenho odiado quem pratica exercícios regulares e não come carboidrato depois das seis da tarde. E que se fodam também, todos aqueles com suas certezas idiotas, sobre as suas coisas idiotas, sempre apontando dedos nas caras dos outros: "ei, você devia ir por aqui, porque por ali não vai dar tão certo assim". A vida é feita de fracassos. Todos eles, fracassos enormes. Ninguém que não fracassou, que não sentiu vontade chorar no meio fio, que não tomou um litro inteiro de vinho num dia de desespero sabe o que é viver de verdade. A gente pode estar vivendo tudo isso e descobrir que não havia mesmo sentido algum. A questão toda consiste em aceitar o mistério, aceitar que nada é certo - nem o teorema de pitágoras. Não se sabe se o gato dentro da caixa está vivo ou morto, se amanhã tem sol, se acordaremos vivos, se seremos felizes. Nada é tão exato assim. Nem as equações matemáticas, nem a chegada do homem à lua, nem a engenharia, nem os melhores escritores dos melhores livros, nem a língua portuguesa. Ninguém pode dizer que o amor vai durar pra sempre, as suas certezas bobas podem cair por terra amanhã; e eu posso viver 80 anos fumando todos os dias, enquanto alguém morre fazendo cooper depois de uma vida inteirinha dedicada à saúde. Nada dura pra sempre, meu amor. Nem eu, nem você. As vigas que constroem o prédio onde eu moro um dia ficarão carcomidas, minha pele enrrugará, seu cabelo vai cair; não seremos tão bonitos - e nem tão jovens. As paredes do meu quarto vão ter outra cor daqui alguns anos e a grande verdade é que, nada importa tanto assim frente ao todo. Nada. A grande questão é como a gente pretende levar essa vida que leva. O sentido é a gente que cria. O resto é descartável. Inclusive eu - e você. 


4.6.12

but you look so cute when you're frustrated, dear


Às vezes você espera por coisas que nunca vêm.
As pequenas frustrações cotidianas. Os leites mornos que enchem as canecas trincadas. Você esperava leites quentes, em canecas bonitas. Esperava uma vida mais bonita, mais viva. Esperava que alguém te mandasse respostas para as suas perguntas no meio da tarde, em forma de carta em um pombo correio que nunca existiu. Esperava declarações de amor escritas nos postes no caminho do trabalho, e recebe uma torrada meio murcha com a marca da manteiga que você mais detesta. Ninguém te deixou o café pronto logo que você acordou, ninguém te doou minutos do seu dia pra te ouvir contando sobre o filme que você assistiu e achou bonito - embora meio estranho. As pessoas não te olharam nos olhos, e não repararam nas suas botas novas, marrons.