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26.9.12

Sobre caiaques e perdas

(pedacinho daquilo que um dia espero, quem sabe, chamar de livro).


(...)Foi nesse ano que elas tiveram a fantástica ideia que eu me declarasse pra minha primeira paixão platônica e, por consequência, levasse o meu primeiro fora. Fernando era um menino loiro e de olhos claros que se sentava na minha frente e torcia pelo grêmio. Conversávamos muito. Eu queria que ele fosse meu namorado, embora pouco soubesse sobre o que é "namorar" e soubesse menos ainda o que é esse tal de "amor". Um dia essas amigas me disseram que se você mandasse seu endereço e telefone pro homem amado, chegaria uma carta de amor. Coloquei meu endereço e telefone na agenda do Fernando que abriu o papel na minha frente e mal pôde disfarçar sua cara de susto. Após o incidente, Fernando nunca mais me dirigiu a palavra. Fiquei pensando se toda vez que alguém ama alguém, mas essa pessoa não o ama de volta, é necessário cortar o contato por completo. Cheguei à conclusão que sim. Eu também não conseguia olhar direito pra cara do Fernando. 

Um dia eu machuquei meu pescoço. Um incidente trágico. Corria por entre barracas recém montadas pra festa junina do colégio e enrosquei o pescoço no arame. Caí de cabeça no chão. Umas pessoas mais velhas me levaram pra enfermaria onde eu só queria que a minha mãe chegasse logo. Quem chegou foi o Fernando, trazendo em mãos uma cartinha que me dizia que eu tinha passado de ano já no terceiro bimestre. Eu agradeci. Nunca descobri se a professora obrigou ele a levar a tal carta lá embaixo, e ele foi, achando cada passo mais perto da enfermaria um passo pro inferno; ou se ele mesmo tinha levantado a mão e se oferecido pra levar a cartinha pra mim, num sinal de compaixão, caridade ou amor reprimido. Seja o que for, esse foi um dos últimos encontros com o Fernando. Ele se mudou pra uma outra cidade que nunca descobri qual era, mas preferi fantasiar que ele tinha voltado pra Porto Alegre e estava torcendo pelo grêmio. "Pelo Fernando eu torceria pelo grêmio". Esse foi o meu primeiro contato com o amor tangível. Pelo Fernando, eu torceria pelo grêmio.


25.9.12

e o que ela quer da gente é: coragem.

Abri o livro do bauman na mesma página umas quinhentas vezes desde o mês passado. Já até decorei. Ele diz que a gente não pode comparar a identidade com um quebra-cabeças. O motivo completo eu não lembro, porque não li. Ando avoada. Leio um parágrafo e paro. Dá vontade de chorar. Uma vontade horrorosa de chorar e sair andando e chorando na rua. Eu quero dizer pra mim mesma, de uma vez por todas que, não, eu não vou conseguir, não vou ser capaz. Não vou terminar pós nenhuma, monografia nenhuma e vou deixar a vida em stand by. Não tenho coragem. Não sei desistir. Nunca tinha descoberto isso sobre mim. Achei que desistia fácil, no primeiro problema. Não sei desistir. Só quando não dá mais. Daí sim, eu levanto com a cara ensanguentada e vou. Eu achei que sabia muito sobre sofrer. Percebo, cada vez mais, que sei muito pouco.

Eu ainda não passei pelas piores coisas da vida, embora tenha passado por muitas delas. Ter visto as escaras da minha vó foi triste, assim como foi a morte dela e a morte do vô. Ter visto meu pai deprimido de cama, quase internado, também foi difícil, mas passou. Passa. O inevitável passa. Ver ele perdendo a visão sim, tem sido uma dessas provas de fogo. Assim como tem sido complicado segurar a barra de ver a minha mãe lidando com todos os problemas do mundo, como se todo mundo sempre achasse que ela é capaz de aguentar mais um pouco. Tem sido difícil. Meu começo do ano foi difícil, também. Foi doído ser despedida. Foi doído depois de achar que tudo tinha dado certo, perceber que não, nã era bem assim. Foi chato deprimir, cair no sofá, foi chato ter vontade de chorar antes de sair de casa de um medo que não era meu. Chupar balas pra disfarçar a ansiedade. Ter crises de pânico no banheiro da pós graduação. Foi difícil ser deixado pelo erro que eu cometi. Foi difícil ser espezinhada pessoalmente, pelo telefone, pelas redes sociais. Tudo isso é difícil e deixou marcas indeléveis em mim. É cada dia mais difícil levantar da cama e lutar por alguma coisa sendo que a vida é, irremediavelmente, injusta. Vai piorar. Esse é só o começo das perdas. Vai ter um dia que meu pai vai ficar mais doente. Vai ter um dia em que a minha mãe vai adoecer também. Tudo isso vai chegar. Outras decepções amorosas, talvez mais cruéis que essa anterior, também chegarão. Eu ainda sei muito pouco sobre sofrer, embora saiba mais do que boa parte das pessoas.

Depois de um tempo a gente anestesia. Anestesia porque tem que ser forte por todo mundo que você ama. Se meu pai chega com os papéis pra fazer uma cirurgia, eu ajo como se fosse parte do processo. O rosto tem que estar limpo pra abraçar a minha mãe e dizer que vai ficar tudo bem, ainda que a gente tenha dúvidas. Hoje minha mãe disse que não sabe o que seria da vida dela sem mim. Foi a prova cabal de que eu deveria estar aqui nesse momento. Sem carreira promissora e perto, porque a barra da vida tá pesada demais pra gente. Evito desabafar. Vez ou outra tenho vontade puxar assunto com uma pessoa qualquer no facebook, mas evito o ato. O problema é meu, a vida é minha, o pai é meu e o inevitável é o inevitável. Há as coisas que eu posso mudar e as que não. Faço o que posso. O que não posso, não faço. Sofro, justamente porque não há nada que se possa fazer. Os médicos fazem o que podem, a gente tenta segurar a barra do jeito que dá e vive. A vida continua a aventura mais injusta que eu já tive notícia.

Hoje um amigo meu me mandou não me abalar tanto, e fazer o que eu posso. Não adiantará, segundo ele, me exigir demais. Se der pra fazer deu, e se não der, que eu descanse no sofá. Acho difícil lidar com as coisas que não posso controlar. Tenho uma mania meio besta de controlar tudo. Estou cercada de gente maravilhosa, mas não aprendi a chorar no colo de ninguém. Segurei as minhas barras, que não foram poucas, todas sozinha e de cabeça erguida. É o que eu sei fazer. Sempre corto a conversa pela metade, me lembro de uma ou duas vezes que eu quase chorei enquanto falava da minha vida, mas me sinto pouco confortável. Eu lembro que eu comia um brownie, e ele me dizia coisas sobre o nosso futuro, daí eu olhava a banquinha na avenida paulista e tinha vontade de chorar. Eu me sentia perdida, mas eu não sabia que eu ainda ia me perder mais, que ainda ia ser pior, que a vida ainda ia ser de mais açoite. Sempre pode piorar. Essa é a grande verdade. Sempre pode piorar, e vai. Morrer a gente não morre, mas olha, não passa. Esse ano ferida nenhuma cicatrizou, tudo continua aí, cheirando sangue velho pra quem quiser ver. Ferida purulenta mesmo, infeccionada, e eu queria poder botar a culpa em alguém, até em mim, mas não é culpa de ninguém.

Às vezes eu fico pedindo baixinho pra deixar de ser resiliente. Ser resiliente significa que você já passou por tanta coisa que aprendeu a se reerguer. Bate na cara e você levanta. A vida te deixa de quatro e você deixa. Tem dia que eu nem choro mais. Tem vez que nem nada. Eu descobri que eu já não faço questão. O amor, se não vier não veio. Eu me dou do jeito que dá. Torta e de corpo nu, mas o coração que caiu no meio da avenida paulista virou carne moída. Não quero mais. É só isso. A vida é injusta demais pra que eu corra o risco de. Eu vou vivendo. Já não espero mais a melhor monografia do ano. Faço o melhor que posso, entretanto. Se eu continuo viva é porque precisam de mim inteira. Eu, eu meu amigo, não preciso de nada. De vez em quando uma cerveja, umas boas risadas, dinheiro pra gastar 50 reais por mês no brechó. Pra mim tá bom. Eu não espero nada.

Eu só sei que eu vou sofrer mais. Na vida, ainda, muito mais. Isso é só o começo de tudo. Ainda vai ser muito pior. Terão outros 2012. Eu sei que um dia ainda vou achar esse ano fácil. Eu sei que ainda vou arrastar a minha cara no asfalto quente. Eu não sei de nada, eu não sei de nada, ainda vai ser muito pior. O pior é saber: eu vou aguentar. Porque eu aprendi.

E agora todas as vezes que me chamam de amarga eu concordo baixinho, resiliente: eles tem razão. Eu fiz o que deu, meu amor. Eu fiz sempre o que pude. Mesmo que doesse, mesmo que eu chorasse sozinha debaixo da minha coberta, dentro do metrô, na rua debaixo dos óculos de sol. Eu fiz o que deu. Eu fiz tudo o que pude. E sofri. Eu me machuquei de agulinha entrando embaixo da unha devagarinho. Às vezes eu reclamo, mas sei que é assim. É a vida, carajos. É a merda da vida. E só.

23.9.12

para depois da arrumação de um quarto

O quarto arrumado
As lembranças do passado bem guardadas
em caixas,
sacos de lixo
e embalagens para reciclagem.

O que será que farão com os restos
das cartas de amor que eu não te enviei?

Novos papéis de carta
Para novas cartas de amor?

Ou uma caixinha de lenços kleenex
para enxugar as lágrimas que lavam
tudo aquilo
que poderia ter sido

e não foi?

eu não sei datilografar poesia

Eu não sei espaçar corretamente
na máquina de escrever.
Fui criada com um windows 95
teclados
botão de delete
espaço infinito de memória ram
terrabytes
informação rápida.

Entretanto, o sentimento, ele,
não se modernizou.
Não colocaram no cérebro
um botão de delete.

Não houve um aplicativo sequer
capaz de evitar o inevitável:
a separação, a dor, a morte
tudo exatamente igual na época
em que os poetas
sabiam espaçar corretamente
na máquina de escrever.

(talvez o barulho do teclado
tec toc tec
silenciasse o coração).

17.9.12

Carta de retratação pública a um nhô-sem-nome.

Hoje eu tirei o vestido de oncinha do armário. Tem algumas coisas que eu evito usar, e o vestido de onça é a mais marcante delas. Ele está intacto no meu armário desde o dia em que cheguei, deixei as malas no chão, e encontrei na minha cama chocolates de páscoa que me fizeram chorar. Eu evito o vestido de onça, nunca mais o usarei com a sapatilha preta, ou com o sapato de salto preto. Eu evito um pouco o anel de coruja que comprei com você na feirinha em frente ao masp. Detesto o cheiro do meu perfume que você gostava. Rezo pra acabar todas as vezes que uso. Acho que lhe restam umas três ou quatro borrifadas, e será, enfim, o fim. Tenho pensado em doar uma camiseta que tem uma estampa de um casal de mãos dadas que lembrava a gente. Por isso, e também porque lembro que usei essa camiseta num dia que você chegou apressado pra me levar no shopping pra te ajudar num trabalho qualquer. Usei bem menos a blusa listrada de azul e branco da zara que eu usei no dia do seu aniversário. O aniversário em que eu meio que estraguei todos os planos. Evito coisas. Evito músicas. Evito toda a cidade de São Paulo. Evito o barulho do metrô, o center 3, e não sei qual seria a minha reação ao entrar de novo na sua padaria preferida. Não gosto do cruzamento da paulista com a hadock lobo. Esses dias tinha um documentário do Chico que mostrava esse cruzamento e eu tive que mudar de canal. Odeio o últmo CD do Chico e espero que ele lance outro logo e fico torcendo pra que esse não tenha sido o último. Detesto me lembrar do hotel em Curitiba porque me lembro de te mandar mensagens dizendo que olha, eu vou ver o Chico. Me lembro também de você respondendo sobre a festa de fim de ano da sua empresa. Eu lembro de muitas coisas.

Fui comer macarrão ao pesto e quase vomitei. De novo. Tenho trauma de vinhos: só tomo cerveja. Procuro sempre por homens que detestem moda. Odeio tudo que me lembra você. Vejo caracteres em russo e não gosto. Queria riscar moscou do mapa. Não quero mais visitar a praça vermelha. Dia desses conversei com um menino russo e falei de você.  Ele me disse de um jeito engraçado que tudo ia passar. Ele queria sair da Rússia e conhecer o mundo. Ele me dizia que existem outras milhares de coisas a mais pra explorar do que o fim traumático de um relacionamento e o fim complicado de uma depressão. Se despediu de mim dizendo que eu não podia, nunca, em hipótese alguma dessitir da vida. Também não podia, nunca, em hipótese alguma me deprimir de novo. Eu prometi. E essa é uma promessa que eu me faço e refaço todos os dias de novo. Não vou desistir porque não posso. Não posso desistir da vida, das futuras ilusões amorosas, de escrever, de ter um emprego, de guardar dinheiro e viajar pra São Paulo de novo pra ver meus melhores amigos. Tem que continuar, todos os dias, continuar.

Hoje resolvi tirar o vestido de oncinha do armário pra sair. Nada de importante, saída com a minha mãe. Peguei o vestido e lembrei dos versos do Chico. "Como? se na desordem do armário embutido, meu paletó enlaça teu vestido, e seu sapato ainda pisa no teu?". Quase devolvi o vestido de volta. Não estava preparada pra nada. Eu lembro de todos os nossos dias numa terrível e quase torturante riqueza de detalhes. Cantarolei os versos da música e lembrei que na primeira conversa que tivemos recitei um poema (horrível) meu em que eu usava esses mesmos versos como citação. Lembrei também que no nosso primeiro encontro houve o seu paletó de veludo cotelê comprado na Marisa. Lembro da camisa preta, da calça jeans, dos óculos escuros, da minha mão seca e da sua gelada. Da água sem gás que eu não gosto (eu nunca gostei de água sem gás), mas aceitei porque você me oferecia. Do meu suco de laranja com cenoura. Do reflexo no vidro do prédio do bradesco, do primeiro beijo, da livraria cultura. Você me mostrou um livro, recitou a primeira página de um livro em espanhol. Mostrou os que você tinha feito. Estragamos uma foto de uma menina que tirava fotos dentro da sessão de discos. Prometemos ir pra Paraty. Eu odiei muito essa feira de Paraty desse ano e xinguei todas aqueles que queria ir a Flip. Lembro da nossa primeira briga no bar, você ameaçando ir-embora, eu com ciúmes das meninas de batom vermelho sorrindo felizes demais enquanto você retribuia a gentileza. Tudo tão rápido. O primeiro ciúme, a primeira briga, o primeiro beijo, a primeira noite juntos. Eu e meu único vestido porque não planejava dormir na sua casa. Eu e meu sapato de salto na bolsa. Eu provando camisas suas e tentando combinar com o vestido sem conseguir e, ai, usando o mesmo vestido só que sem o cinto. Você provando vinte mil sugestões de roupa, até escolher, enfim, uma pólo verde, uma calça jeans e aqueles sapatos frescos que eu sempre esqueço o nome. Nós esperando o ônibus enquanto você cantava pássaro de fogo em loop, e eu te batia - mas achava engraçado. Eu detesto a Paula Fernandes porque até a Paula Fernandes me lembra você.

Eu, tão desajeitada, vomitando no banheiro de nervoso, susto e, sem saber - doença. Eu que derrubei meu bife em cima da bolsa na padaria mais fina de São Paulo. Eu, andando na Oscar Freire tão ridículamente feliz segurando a sua mão que o mundo podia acabar ali mesmo enquanto eu achava perfeitamente aceitável gastar 8 reais num suco de macã, melão e gengibre. Eu, que aos vinte e dois anos, nunca tinha ido no starbucks provava com você um chá cheio de gelo e um brownie horrível. As nossas únicas fotos eternizadas com esse maldito vestido de onça que eu me obriguei a usar de novo porque já faz muito tempo e as pessoas adultas superam os traumas. Não soube. Botei o vestido e foi como estar naquele filme "brilho eterno de uma mente sem lembranças". Todas as nossas lembranças voltando em loop de um jeito tão doente que eu era capaz de sentir falta do seu ronco e de dormir aproximadamente três horas por noite em todo o tempo que passamos juntos. Depois o inferno. Eu lembrava do céu e lembrava também do inferno. Toda a nossa história feito um livro do Mutarelli. Tudo doente, sujo e destrutivo.

Minha infantilidade rabugenta que quase estragou seu aniversário que tinha que ter tido bolo, surpresa, uma velinha de supermercado em cima de um bolo de papel que fosse. E eu, louca, preocupada em ligar pros meus pais pra eles não acharem que eu morri não te deixei nem passar no bar. Depois te acordei, briguei, quase que não te deixo dormir. Attencion whore até no seu dia especial, trouxa e sendo picada por uma legião de pernilongos. Mas teve você quase tocando piano, a gente correndo as escadas numa mania boba de imitar os filmes, e o Radiohead. O maldito Radiohead que você também estragou porque eu ouço e consigo sentir aquela terrível maravilhosa noite em que você completava mais um ano e eu só desajava ter feito tudo certo uma vez na vida. Depois sim, os desastres todos. Minha paranóia, meu medo cego de te perder pra qualquer garota paulistana tatuada que passasse na rua. A doença, a minha doença que você não tinha culpa e eu não sabia. Eu corria doze quilômetros por dia pra me sentir segurando os joelhos e perdendo o ar. O limítrofe. O quase-morte. Minha vida condicionada em pensar em você e arrumar um emprego. Brigas bobas, coisas que eu jogava na sua cara sem necessidade. Paranoia, paranoia, paranoia. Essses dias achei os backups do meu Twitter e não me reconheci. Tanta indireta, tanta doença. Eu te ligava e a minha voz não saia. Eu comia pouco, de vez em quando uma crise aqui e ali. Mas não há de ser nada. A segunda viagem, eu impassível querendo atenção irrestrita, você dizendo que não gostava de mim. Eu querendo te bater na mesa da sua padaria preferida, querendo chorar quando você brigava comigo. Você, intratável resolvendo problemas de gente-adulta. Casa pra morar, pia, quarto, amigos seus que eu nunca tinha ouvido falar. Tanta coisa pra um casal que não era casal ainda, tudo tão rápido, o turbilhão. Eu, cantando valesca alto no quarto de hotel que era pra abafar o choro e o meu medo sempre iminente de te perder no momento seguinte. E eu tinha medo de ter medo e de entrar de novo naquelas loucuras de achar que você não gostava de mim, e aí escarafunchar todas as suas redes sociais a procura das suas "outras namoradas", a brincadeira que eu levei a sério demais. Eu queria fuçar seu celular, eu queria ser a personagem-louca desses romances sanguíneos até que chegou uma hora que eu não sabia mais o que eu estava fazendo e esquecia meu troco do metrô, saia sem rumo pela paulista. O horror, o horror.

Minha vida toda numa esperança que não vinha, num emprego que eu não conseguia, nos currículos que eu nem chegava a mandar. Minha vida toda esperando uma terceira viagem, o show da minha vida, você me cantando palpite no violão. Tudo que eu consegui foi a morte. A minha morte, metafórica. Penso em mim, medrosa, achando que você daria o vinho que comprou pra mim pra sua amiga e beberia com ela e tudo aquilo formando histórias loucas na minha cabeça e não sei quem era aquela pessoa. Também não sei quem foi a pessoa que não limpou as paredes, e que saia pra chorar no quarto em posição fetal. Eu, apática frente a vida, e o mundo inteiro girando ao meu redor. O mundo inteiro, eu te perdendo, uma vida inteira sem perspectiva. Eu ficava em pé na sua sacada e meu mundo inteiro girava. O mundo inteiro desabando e um eixo de equilíbrio flutuante. Você largando a minha mão, eu não conseguindo te explicar o que eu fiz nem pedir desculpas, nem fazer nada minimamente aceitável porque eu também não sabia o que eu estava fazendo. Eu, voltando pelas ruas escuras da cidade que eu não conhecia sem perceber que naquele minuto eu tinha perdido o medo da morte porque eu era a própria morte. Minha primeira crise de pânico foi antes do show da minha vida. O show da minha vida pareceu um surto. Olhando de longe, o show da minha vida parece ter sido alucinação. Não lembro de nada, exceto de pulos histéricos ao som de fluorescent adolescent e uns pensamentos embaralhados. Eu ouvia músicas que eu não sabia cantar e pensava em você contando pra sua mãe a história toda e os dois morrendo de vergonha e decepção comigo. Isso, e flashs da noite anterior, e Londrina, e eu preciso ver de novo o Alex Turner porque dessa vez não valeu. Não valeu porque outra pessoa viu o Alex Turner. Outra pessoa pulou ao som de Suck it and see. Outra, não eu. E depois um telefonema ridículo que eu fiz sem explicar nada direito que só não foi pior que o e-mail que eu, felizmente, não lembro nada.

Cinco meses e alguns dias depois do ocorrido. Eu, quase-completamente curada, vivo uma vida tipo alcóolicos anônimos, um passo de cada vez. As vitórias são ridículas. Conseguir acordar cedo. Conseguir trabalhar. Conseguir entrar num lugar lotado sem crises de ansiedade. Conseguir. Conseguir usar o vestido de onça do dia em que nos conhecemos. Querer matar o ser anterior por ter feito milhares de burradas e ainda mandado um e-mail (que eu não tenho ideia do teor) com uma carta anexa em maio se achando apta pra função. Um monte de merda, arrisco eu. Eu lembro de fevereiro em riqueza de detalhes, mas tenho problemas com os outros meses. Bloqueio, diriam. Talvez, eu rebateria. Não gosto de lembrar de coisas que fiz que não se parecem comigo. Um ano horrível. Uma doença horrível. A constatação que eu não soube lidar com as perdas, que eu não sou a senhora mulher-maravilha que aguenta ficar sem ocupação sem pirar. Pirei, desculpa. Sazonalmente. Não tenho doença crônica, não me tornarei adepta dos remédios controlados. E, estranhamente, não sou louca. Só quando escrevo. O show da minha vida esse ano foi o do Charlie Brown Jr, com o Chorão drogadíssimo e eu com o equilíbrio que tinha buscado o ano todo. O do Zeca Baleiro nem tanto porque você cantou "braço da vênus de milo acenando tchau" no seu aniversário, na saída do metrô, e o Zeca teve o mau gosto de começar o show com essa música. Bandeira. "Eu não quero ver você fumando ópio, pra sarar a dor". Ri dessa parte. Ri do "café pequeno". Ri porque tudo tem-a-ver. E eu derrubei umas lagriminhas tímidas porque não podia te mandar mensagem "vi o Zeca". Nem depois "Meio que entrevistei o Mutarelli".

Pensei em te redigir um memorando-desculpas, mas desisti. O que faríamos? Você deve me detestar e eu não quero ainda fazer planos sérios, ou decidir a minha vida enquanto não tiver certeza absoluta. Depois ia ser uma coisa "é, ok, você insistindo com isso de novo e olha eu aqui, levando a minha vida. Esquece isso, se for pra gente se encontrar um dia a gente se encontra na paulista e se apaixona de novo". Sempre lembro dessa frase. Acho fatalístissima. Meio Paulo Coelho, meio Maktub, meio novela da globo. Além do mais, você nem deve cogitar se apaixonar de novo por mim. Eu, te digo meio assim, que nem superei tudo que devia ainda pra conseguir pensar no amor, essa palavra. Em todo caso:

Desculpa.
Essa é a primeira desculpa sincera que eu te peço, porque essa é a primeira coisa equilibrada que eu escrevo desde. Vai soar mentira, como soa mentira todo-e-qualquer pedido de desculpa. Vai soar brega como um "não era bem aquilo que você estava pensando". Eu não devia ter feito nada daquilo. Tudo aquilo. O que eu fiz no fatídico dia e as coisas anteriores. Em primeiro lugar, eu devia ter confiado. Embora a confiança erre, a des-confiança mata. Nos matou. Não fosse toda a paranóia eu não tinha feito nada daquilo. Nem brigado quando não devia, nem estragado seu aniversário que devia ter sido sua primeira quase-festa de criança, nem sujado sua casa. Desculpa. Eu estava doente. E estar doente da cabeça e de coração ocupado nunca funcionaria. O coração ocupado já descontrola a cabeça de qualquer jeito. É preciso uma cabeça equilibrada que não sucumba aos impropérios do coração. Ter um coração ocupado e uma cabeça previamente descontrolada não podia dar certo. Deu no que deu. Das duas uma: ou eu tivesse tomado umas três taças de vinho a menos, ou eu tivesse limpado toda a sujeira. Mas eu penso naquela pessoa, ela não tomaria nenhuma dessas duas decisões, a não ser o que foi: a apatia e o descontrole. Mal sabe você, mas eu esmurrei aquelas paredes do teu box e chorei de soluçar. Depois, veja, eu lembro que eu queria te dizer um monte de coisas que eu já não lembro. Acabei chorando no seu ombro. Eu lembro de uns flashs e tudo que eu lembro me dá vergonha. Tudo mesmo. Eu queria ter apagado aquela viagem inteira. Exceto pelas partes em que não foram horríveis. O mercado (sim, o mercado), o caetano velloso na cozinha (eu tenho odiado o caetano velloso também), o seu café da manhã e você cozinhando dedicadíssimo. Nem o show me valeu. Nada me valeu. Eu queria ter sabido um pouco antes que eu adoeci de uma doença que não é simples de perceber feito mancha na pele. Eu até lembro de você um dia no telefone dizendo "você tá um pouco depressiva, não tá?" enquanto eu falava que não-guentava-mais-aqui-eu-sinto-falta-de-são-paulo. Eu concordei, mas não levei a sério. Você estava certo, eu não. O que aconteceu algumas outras vezes em que eu não dei o braço a torcer. Mas às vezes é isso, às vezes é preciso cair de cara no chão pra encontrar a verdade. Pelo menos percebi, caí, levantei, e me equilibrei as custas duns troços que tem gosto de álcool e que logo desaparecerão também. Eu queria que você não tivesse passado pela parte ruim. Eu queria que eu não tivesse passado pela parte ruim. Eu queria que a nossa história tivesse sido menos almodovár, com seus corpos dentro de freezers, latina & sanguinolenta e mais woody allen: paranoica, mas bonita. E se tivéssemos nos separado no fim, que fosse sem esse descontrole penélope cruz de quinta que sou. Eu queria ter te conhecido numa outra época. Eu queria não ter raiva desse vestido de oncinha.


Você costumava gostar desses meus "confessionais", mas eu acho que nem lê mais meus textos. Não vou te mandar porque não faz sentido. Esse texto fica como aquele "se encontrar na paulista daqui três anos". Se acontecer bem, se não acontecer ok, se acontecer daqui há dois anos quem sabe. Desculpe qualquer ódio destilado. É meu jeito de internalizar a coisa. A gente bate no amiguinho que quer chamar atenção no colégio. Agora eu admito: eu queria chamar a sua atenção. Odiar tudo que me lembra você é meu jeito de te esquecer. Odeio esse ano, o chico, e o vestido de oncinha. Odeio meu perfume, a rússia e o anel de coruja. Odeio quem toma café no starbucks e todos aqueles que compram roupas de marca. Odeio São Paulo. Odeio aquele quadro do fantástico "phantasmagoria" porque é o nome do jogo que você descobriu que te fez estudar russo. Odeio quem tem mania de limpeza e quem lava as mãos todas as vezes antes de adentrar o recinto. Sinto culpa. Não odeio qualquer uma dessas coisas. Queria, talvez. Mas não, eu até seria sua amiga. Não-te-odeio.

(ufa, falei).

14.9.12

A desconstrução dos mitos

De Chico Buarque à Mutarelli (passando por tom zé e zeca baleiro).

Dois mil e doze, eu já disse e repeti bangalô três vezes, foi o pior ano da minha vida até agora. Na contramão disso, alguns inesperados aconteceram. Não sou fã de ninguém, não corro descontroladamente atrás de autógrafos e admiro pouquíssima gente a ponto de ficar sem ar perto do objeto de admiração. Algumas pessoas, entretanto, dão em mim um friozinho na barriga. Ouço falar e penso: "gênio". Na minha lista de gênios figuram o Thom Yorke, o Chico Buarque, o Tom Zé, o Zeca Baleiro e o Lourenço Mutarelli. É claro que eu admiro o cortázar, bateria uns bons papos com o garcia marquéz, e ficaria sem palavras na frente do bauman, ou do baudrillard. Mas de gente assim, gente mais palpável, são esses que me fariam perder as estribeiras.



O Tom zé eu desmistifiquei logo que comecei a amar um pouco mais. Meu pai sempre foi fã, meu namorado da época também, e foi assim, meio que do nada, que Tom Zé anunciou um show aqui em Londrina. Não só fui como fiquei na grade do palco, ouvindo ele dar bronca na platéia e filosofar sobre as coisas que só ele sabe. O Tom Zé existia, usava sainhas e agradecia os desenhos mandados à ele no palco. O Tom Zé é um desses gênios que se acha pouco genial. Ele se curva frente a Gil e Caetano sem perceber que é tanto-quanto (ou mais) do que eles. De camisetinha do festival ele conta que um de seus filhos é casado com uma Londrinense e se a gente não soubesse que ele-é-ele, a gente confundiria com um outro artista qualquer. Tom Zé, pulando no palco há menos de dois metros de distância de mim era um sonho realizado. Ele existe.



Depois foi o Chico. Chico Buarque de Hollanda, o ídolo de uma vida-toda adentra o palco e senta sóbrio e calmo com a sua roupa inteira preta. Sorri tímido, parece palpável. Canta todas as músicas que eu amo e eu custo a acreditar que ele não é CD nem DVD, é o Chico Buarque em carne, osso e violão. Depois ele passa correndo dando a mão pra platéia e a gente percebe se tratar de um ser humano normal. Não sei como me portaria frente a Chico Buarque. Acho que dele não quereria foto nem autógrafo. Agora que tenho certeza de sua existência no planeta terra eu não quero saber de mais nada. A simples foto tirada da terceira fila com o zoom da câmera em toda a sua potência já me é o bastante. Eu vi o Chico cantar e o Chico estava ali.



Esse ano eu fui no meu terceiro show do Zeca Baleiro da vida. O Zeca, assim como o Chico, me embalou em vários momentos da vida. Tinha uma música do Zeca pra cada amor e pra cada desilusão. Zeca Baleiro também não parece ter noção de sua importância ou da sua genialidade. Canta e conversa com a platéia com a naturalidade de quem faz um show no quintal de casa. Depois que termina o show ele atende os fãs. Solicitamente tira uma foto comigo e autografa a setlist que eu tinha conseguido momentos antes com o rodie que tirava as coisas do palco. Me deseja "Prazer e Poesia" e diz que foi um prazer me conhecer. Zeca Baleiro existe, usa chapéus pra esconder a careca, fica bastante cansado depois do show e é um tico mais alto do que eu pensava. Sorri solicito, e parece ser gentil. Tenho uma foto do Zeca Baleiro no meu Facebook e um autógrafo na parede do meu quarto. Não existe mais mito.

Mas foi ontem que o inacreditável aconteceu. Desde que li lourenço mutarelli pela primeira vez comecei a me achar inapta pra escrever. Só faz sentido escrever se você puder chegar próximo do que Lourenço Mutarelli é. Li quase todos os seus livros. Abdiquei a uma biblioteca inteira de todos os títulos do mundo pra ler "Miguel e seus demônios". Vi todas as entrevistas que ele concedeu. Sempre genial, sempre brilhante, sempre falando todas as coisas que eu espero que alguém que eu admire fale. Mutarelli tem um bom humor involuntário e acha normal escrever um livro como "O cheiro do Ralo" em três dias. Lourenço Mutarelli esteve ontem dando uma palestra na minha frente e eu não soube exatamente como reagir. Era difícil acreditar que o objeto solene da minha admiração estava ocupando o mesmo espaço que eu. Eu levava dois livros na bolsa e uma câmera fotográfica. Não sabia se ia ter coragem de pedir uma foto, ou um autógrafo. Eu tinha um autógrafo dele que meu ex namorado me deu num quadrinho - talvez a surpresa mais bonita que alguém já me fez - e não tinha certeza se queria com ele mais do que aquele autógrafo desenhadinho que ele me fez, dedicado, sem saber quem eu era.



Saí da palestra e fui atrás dele. Ele fuma cigarros, conversa como qualquer outra pessoa, e os alunos da universidade passavam por ele como se ele fosse um cara qualquer. Mutarelli parece mesmo um cara qualquer. Ele me alertou sobre os cadarços desamarrados (estão sempre desamarrados), e se oferece pra tirar fotos num lugar com mais luz. Tira uma foto comigo, ri do fato da câmera demorar pra acertar a foto e me dá um autógrafo (dessa vez sem o desenhinho). Eu não consigo falar nada na presença dele. Encontrar com algo que você admira desde sempre, estar em contato com alguém que você queria ser é, provavelmente, uma das sensações mais estranhas que a vida pode te oferecer.

Hoje escrevi uma matéria sobre ele. Eu, que sempre li entrevistas com ele, era a porta-voz de uma matéria inteirinha sobre o até então mito, Lourenço Mutarelli. Li e reli a matéria várias vezes até perder a sensação que aquilo tinha sido escrito por uma pessoa que não eu. Olho a foto com o Lourenço várias vezes e desacredito que ele sorri espontâneo na foto que tirou comigo. De vez em quando fico pensando se devia mesmo ter tido essa proximidade toda, se eu não devia ter deixado o mito no lugar do mito: mitificado. Conhecer o escritor que mais admirei durante essa breve existência no planeta terra me deu uma sensação estranha de vazio. O meu mito é vivo, e é uma pessoa como outra qualquer. Tudo isso o torna ainda mais admirável. Ter encontrado com Mutarelli tirou de mim aquela sensação de "algo a ser descoberto" e deixou uma estranheza. Uma foto é talvez o máximo que posso chegar perto de quem admiro. Não quero criar relações, fazer perguntas, não quero entrar na vida do mito. Quero que ele permaneça a uma certa distância pra que eu possa admirar debaixo. Tudo isso é bastante louco. Conhecer o alvo da minha admiração me deixou com uma sensação de vazio. Eu não tenho mais ninguém que deseje conhecer.

Hoje fiquei pensando que talvez o woody allen, talvez os irmãos coen, talvez o jude law. Talvez alguma leve histeria ao conhecer eliane brum. Talvez o bauman, o baudrillard, o maffesoli. Talvez tivesse de novo essa sensação de estranheza de estar perto da coisa idolatrada se conhecesse alguns deles. Não sei se quero. Talvez seja bom ter alguns objetivos inatingíveis. Não quero uma foto com o Woody Allen e acho que não saberia lidar com um abraço no jude law. Um autógrafo do bauman, do baudrillard e do maffesoli não faria sentido. Tudo que eu quero deles já está nos livros. Olho pros meus infinitos livros do Drummond, pra antologia poética do Bandeira, pro encontro marcado do Sabino, pra queda do Cammus e fico feliz por eles estarem mortos e não poderem aparecer em feira de faculdade nenhuma. É bom cultivar os mitos. É bom ter contato com coisas inatingíveis. É reconfortante ter algo pra ainda olhar de baixo. Deixa uns ídolos no altar.

10.9.12

true love waits.

Roger, Bruno, Nádia, eu, Alan, Keila, Marcela e Rafael (com Amanda e Felipe presentes no corazón e Hugo e Gustavo entrando pro time de novos membros - só que eu não tenho foto com essa gente toda reunida).

Algumas vezes eu pensei que eu nunca mais falaria com alguns deles. É o curso normal da vida: certos amigos se vão. Já tinha me acostumado com a ideia. No começo do ano, de tão enfadada que estava, pensei em fugir de mais da metade deles. Mudaria para são paulo, faria novos amigos, talvez encontraria um novo amor e todo esse passado de fim de ano seria dizimado de um jeito qualquer. Dois mil e doze foi o pior ano da minha vida. Não houve outro pior. Nem o em que a minha avó morreu, nem aquele em que o meu avô se foi. A razão primordial de eu não ter pirado nesses anos de perdas é o fato de eu ter gente como essas da foto comigo. Quando minha avó morreu eu tinha a mariana, desajeitada, mas sempre ali tentando me animar por entre as aulas de biologia. Quando meu avô morreu tinha um namorado dedicado, e todos esses amigos da foto (e mais alguns que se foram) comemorando comigo o melhor aniversário da minha vida. Não teve porquê sofrer tanto assim porque eles me ensinaram que tem como colocar flor no buraco que forma no peito e continuar vivendo. 

Esse ano eu chorei sem eles. Por vezes chorei no metrô daquela cidade estranha segurando a minha bolsa que a alça sempre caia. Outras vezes senti medo sozinha no ônibus sem saber direito onde descer e sem ter ninguém pra ligar. Depois de todo o desastre emocional que se veio, o dia em que me senti mais acolhida foi o dia em que eles me levaram pro show e me trataram como uma mocinha machucada. Eles entenderam depois a minha depressão, eles trocaram baladas por me ouvir contar repetidamente a mesma história sem pé nem cabeça que me arrancou um pedacinho do peito. Foi com eles que eu pude desabafar e foi por causa deles que de vez em quando eu comia algo mais do que meu almoço leve. Foi uma delas que segurou a minha barra nos trabalhos da pós sem nem saber direito o que tava acontecendo comigo, foram outros dois que me levaram pra sair sem ter ideia do trauma. Foram eles, sempre eles, que me ajudaram a levantar do chão.

Faz alguns meses que a ordem se reestabeleceu. Não muitos, talvez uns dois. Desde então eles tem sido muito próximos, terrivelmente próximos. A maturidade me ensinou que, muitas vezes, eu vou me irritar com a mania deles de chegar atrasado, o jeito de vestir, a estranha responsabilidade perante as coisas, um jeito velho de ver o mundo que contrasta com esse meu eu tão livre. Teremos divergências, brigaremos na mesa do jantar, falaremos mal um do outro de quando em vez. Acontece que, o interessante da amizade, é que todos os clichês sobre ela são verdadeiros. Uma vez que foi construída uma relação verdadeira íntima entre duas pessoas, essa relação não morre. Esse fim de semana voltaram na minha casa duas amigas que eu não via fazia pelo menos seis meses. No começo achei que o estranhamento seria sem fim e que não haveria nenhuma relação estabelecida. Pelo contrário: tudo aconteceu como se fosse a primeira vez. Não existiriam outras pessoas com quem eu consegueria ser o mais "eu" possível. Não existe estranhamento, assunto proibido, jeito de falar que ofende. A gente aprendeu a relevar, a perdoar e a, principalmente, perceber que amizade não acaba assim, de uma hora pra outra.

Atordoada com as comidas, e um pouco chateada com o atraso de um deles que sempre atrasa eu pude perceber que eu não queria estar com outras pessoas. E que eu não queria ter outros amigos que não aqueles. Por vezes chatos, por vezes usando as roupas erradas, por vezes me decepcionando. Mas ali, portando com eles pedaços de mim que eu sei que ainda não mostrei pra ninguém além deles. 

É deles que eu reclamo, mas são eles que eu nunca deixei de amar. Eles são o meu amor de verdade, and true love waits. 


2.9.12

todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite

molho minha camiseta do surfista prateado com as lágrimas que agora tem caído fácil. suspiro as dores de um sábado vazio onde sair de casa não curou a dor. erros sucessivos. as três pessoas dividindo o espaço comigo não me preencheram e tampouco me satisfizeram os croissants de creme de baunilha, porque eu acho que queria o de chocolate. enquanto isso, o dinho ouro preto, em sua horrenda camisa de seda roxa, cantava canções de uma época em que eu sentia amores possíveis. thiago deve se lembrar da nossa primeira discussão ideológica sobre a qualidade musical do capital inicial. ele, deitado no meu colo, me olhando com os olhos verdes e o rosto magro dizia não entender minha predileção por esse pop-rock nacional de quinta, e eu gritava "foda-se, você é que não entende que eu tenho gostos normais". anos depois estaríamos nós dois rindo da queda que quase matou meu ídolo juvenil, que eu não achava mais tão genial assim. dinho ouro preto era então magro, velho, desgastado e dizia ter se livrado das drogas por conta do filho. nós dois pensando em ter filhos e se largaríamos os vícios por conta deles. não tinhamos vícios. ele largou o cigarro por minha causa e eu tinha dito que ok, fumaríamos um, qualquer dia desses em que eu não tivesse mais medo de morrer. ele ria dizendo que "então nunca" e eu retrucava dizendo que ele não sabia nada sobre mim. o meu amor acabou antes dele saber que hoje meu medo da morte tende a zero porque a vida me açoitou antes mesmo de eu figurar ter a mais leve das doenças graves. 

hoje, enfim, um dia vazio cheio de reflexões. todas as horas pareciam trazer em si dias, e eu não queria nada do que tinha me sido apresentado. minha mãe um pouco aflita, achando que eu tinha tido alguma desilusão amorosa e eu prevenindo que não, não mais uma, não agora. meu pai timidamente me convidando pra jantar, mas não era isso também que eu queria. eu não queria nada, bem da verdade, a não ser coragem de dizer tudo isso que entala na garganta da gente e não sai de jeito nenhum. eu queria sentar num bar, numa rede, na cama, no motel, na puta que te pariu e contar qualquer coisa sobre os meus medos, minhas impossibilidades, meu dedo que cala antes que eu disque o número que quero discar e convide pra uma cerveja. eu queria dizer sobre isso, sobre as minhas inseguranças, sobre esse medo que eu tenho de amar e ser amada depois que eu tive essa desilusão enorme. eu queria dizer sobre as minhas escolhas erradas e contar sobre toda a trajetória estúpida que me trouxe aqui onde eu estou, destilando ódio encroado, de camiseta de super-herói e calcinha de algodão furada, querendo chorar no fundinho da cama debaixo da coberta quente pedindo pelo amor de deus pra alguém me dar uma mão, um beijo de boa noite, um peito pra encostar e dizer que "olha, vai ficar tudo bem, não importa, e mesmo que não fique eu fico aqui com você". essas bobagens ridículas, qualquer bobagem ridícula dessas com filme ruim na tv, com cafuné e café porque meu deus a vida açoita e dói. 

a vida açoita e dói em tudo aquilo que a gente cala. eu já calei tanta coisa dentro de mim que agora só me resta chorar às quatro da manhã e quase pegar a garrafa de bebida escondida dentro do meu armário, aquela merda de licor st. remy que ninguém toma e ficou aqui então pra que eu desse um fim ou levasse numa outra festa. mas não pego garrafa alguma, não pego o telefone, não desabafo com ninguém que eu acho que eu errei demais para que eu consiga consertar qualquer coisa que seja, e olha, eu tô triste e fodida. fodida e mal paga num sábado ridículo onde ninguém vai me tirar pra dançar. tudo complicadíssimo dentro desse meu coração que já não bate, fica apanhando, porque eu não sei, não sei mais lidar e não sei dizer nada do que eu quero dizer. e nem são umas coisas enormes, não é amor nem paixão que arrebata é só uma vontade besta de estar junto nesses céus azuis dessa cidade de merda com suas cervejas caras demais e sua gente moderna demais. é só uma vontade grande, quase que infinita de não aguentar mais tudo isso, essas amizades tortas que ora te amam ora te deixam a ver navios. de aparecer e me deixar eu já estou farta, meu coração já apanhou mais do que devia esse ano. esse ano ele apanhou o suficiente pra ficar estirado no ringue e estão fazendo contagem até agora porque ele não levantou. e não vai levantar nem com bolero e nem com samba, não vai levantar com a minha força de vontade, florais, drogas, qualquer merda assim. 

eu me sinto cansado e penso: mea culpa, mea máxima culpa, porque eu devia ter sido mais doce quando era o momento de ser doce, mas como saber? como saber que eu ia correndo pra porta da onde sairia o macaco e ia deixar o presente na porta que eu não quis escolher? como saber que o resto do meu ano estaria fadado à falta de fome, de luz, de vontade, de comida, à falta, falta, falta e toda a falta do mundo reunida? agora eu fico aqui, tentando reparar meus erros e não consigo. daí ensaio qualquer coisa, me enrolo, escrevo um novo texto, boto qualquer música no meu iPod e saio pra correr no parque com a esperança de alguma iluminação espiritual ou que alguém esbarre em mim sem querer e me tire de tudo de uma vez, das dúvidas todas, e me mostre um novo caminho, um novo encantamento, um novo bilhete no meio do livro, um novo coração batendo rápido, um outro medo de perder que não seja esse, velhinho, enferrujadinho que eu nem sei mostrar que tenho. molho a minha camiseta de super herói que já não sou com essas lágrimas que tem gosto de cansaço. o cansaço de lutar contra o crime sozinha, sem liga, sem robin. O cansaço de ser um super herói meio ridículo, como esse surfista prateado que estampa minha camiseta verde e velha. O cansaço de saber que ainda aguenta uma vida toda correndo sozinha, mas queria alguém, só de vez em quando, pra segurar na mão, pra pegar no colo, pra oferecer café, pra ajudar a carregar o mundo. Que pesa, meu deus, como pesa.