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1.9.13

trecho de um livro que nunca será

Eu não conheci o Matheus. Eu o reconheci. O primeiro grande clichê da minha vida que nunca conheceu essa palavra. Sempre detestei os clichês, os encontros, os filmes de amor. Amor, essa palavra. Amor essa palavra que a gente não sabe muito bem o que é, entende o que é no filme e busca reconhecer na vida. Nunca soube reconhecer amor na vida. Gostei de algumas pessoas, beijei algumas bocas. Disse "eu te amo", sem saber muito bem o que era, como criança que repete as sílabas do hino nacional. Dizia "eu te amo" pros garotos que beijava porque tinham me ensinado assim. Te beijei, você segurou na minha mão, me ensinou um caminho, me mostrou teu livro preferido. Devo te amar. Te amo então. E assim se faziam essas relações sem emoção nem sentimento nas quais eu me meti desde a adolescência. 

Mas quem não sabe o que é amor, não reconhece amor. Tentar reconhecer o amor sem nunca ter amado é tentar reconhecer uma mesa como mesa sem nunca ter visto uma mesa. É preciso ter um primeiro contato com o objeto para poder reconhecê-lo como tal. E eu, até conhecer o matheus, nunca tinha sido apresentada ao amor. Não assim, apresentada ao amor no ato de sentir. Só conhecia amor como palavra, como história de livro, como pedaço de filme. Mas o amor nunca tinha entrado em mim para que eu pudesse reconhecê-lo. Sendo assim, tudo que lembro do meu primeiro encontro com o Matheus, é que ele me despertou os sentidos. Todos os sentidos. Me acordou pra vida de tal forma que as cores se faziam mais vivas, as palavras saltavam com mais facilidade, as sílabas tinham cheiro. Sinestesia. Ele me mostrou que a vida pode ter gosto. 

Foi assim, inesperado. Ele foi o último a me aparecer naquela lista de gente que estudaria comigo na faculdade. Lista de espera da faculdade de publicidade e propaganda. Não soube dizer o que tinha nele, mas tinha. Não soube dizer o que tinha em mim, também, que tive urgência em lhe dar as boas vindas tardias do único jeito que sabia: lhe escrevendo as palavras. Mas fui assim, como quem não espera nada. Um desses recados simples, até meio bobos. Qualquer coisa como "seja bem vindo à essa selva de gente louca que queria ser artista e se contentou em ser publicitário". Ele me sorriu com os dedos respondendo qualquer coisa como "não me contentarei nunca em ser apenas publicitário. É meu projeto paralelo enquanto não me reconhecem como artista. Mas reconhecerão, reconhecerão". E sorri. Sorri com as palavras do primeiro homem que foi capaz de me fazer sorrir logo no primeiro encontro.


Antes dele, é claro, houveram vários. Os mais diversos tipos. Os gordos, os magros, os meio engraçados, os inteligentíssimos e os meio burros. Todos eles com seus encantos atrozes, com seus jeitos de me pegar pela mão. Houveram aventuras, grandes aventuras imensas dançando em seus corpos, em suas bocas, em trechos de livros lidos em voz alta as três da manhã. Houve a poesia dos filmes alternativos clichês que tratam de amor. Houve, houveram. Tudo isso que podia ser reconhecido como amor, mas ainda não o era. 


(Escrito em 2011, nos intervalos do trabalho esse algo qualquer que almejava ser um livro. anos depois acho meio completamente ruim e já não acho que a única maneira de se enterrar um grande amor seja um epitáfio-livro. os amores morrem sozinhos, no tempo em que devem morrer. difícil também elencar as razões de porque não mais escrevo nesse blog. talvez porque seja a confusão que me faça ter de escrever qualquer coisa. talvez por outras razões distintas que eu nem sei. em todo caso, obrigada pelos comentários dizendo que sentem falta dos meus escritos. acho que também sinto, talvez mais que vocês). 

2.6.13

essa não é uma carta de amor

para um nhô

Pensei em te dizer inúmeras coisas antes de partir - porque eu sabia que ia partir, e sabia exatamente o dia e hora em que o faria - mas desisti momentos antes. a conclusão era certeira: você não entenderia. acho que tentei, meio descompassada, te explicar que eu estava indo. que eu ia, sabe? que eu ia e você nunca mais ia falar comigo. nem mostrar um poema, uma crônica, nada. eu queria te deixar ciente das minhas razões, elencando em tópico pra que você entendesse. você não entendeu. eu tentei um pouquinho. lembro que você me disse - meio bravo, até - que então era isso, que eu não queria mais conversar com você caso a gente não pudesse mais ter um envolvimento amoroso (na verdade você usou outros termos, mas há de se manter a qualidade literária da carta). acho que você pensou que eu te tratava, naquele momento, como uma coisa descartável. como essas garrafinhas biodegradáveis de água que a gente amassa e joga no lixo no momento em que termina a água. uma garrafinha tão vagabunda que não serve nem pra guardar água na geladeira depois, ou pra levar suco de pozinho pro trabalho. tentei te explicar que não era, que era outra coisa, que era uma coisa aqui dentro que me machucava e que era melhor pra mim que a gente se afastasse. você continuava sem entender e eu ia ficando pequena. já não tinha mais coragem de falar nada. não falei nada. não tive coragem. disse que era melhor que ficasse assim, então. que fosse indo. um dia a gente descobria o que ia ser da gente. você concordou, mas eu sabia que estava indo embora.

no começo foi difícil. era difícil não querer saber de você. daí eu ficava me distraindo com outra coisa pra não falar com você. se ainda estivéssemos nos tempos do telefone eu teria apagado seu número. não estando, desapareci. desapareci muito mais por mim do que por você. eu gosto muito de conversar com você e era dificílimo lidar com as minhas urgências de te contar as coisas que aconteciam na minha vida - embora não fossem muitas, porque nunca são. as razões de porque eu fui embora eram muito particulares. não porque você era descartável, e muito menos porque eu queria te exterminar da minha vida como coisa que não serve mais. eu só fui embora porque estar com você mexia comigo de um jeito que eu não sabia o que era. e machucava. machucava porque eu não tinha certezas. machucava porque eu lidava mal com todas as outras mulheres que eu sei que fazem parte da sua vida. elas aparecem em fotos, por vezes. em outras é num poema. li com o coração doendo um ou dois poemas que eram dedicados a pessoas que não eram eu. um deles eu li na rodoviária, pouco depois de chegar na cidade que é muito mais sua do que minha. tinha uma foto, uns livros, umas coisas-todas de uma história que me machucava mas eu não queria mexer. era isso: eu não queria mais ser a inquisidora da sua vida. e eu sabia que estando perto, fatalmente eu iria. longe eu podia pelo menos começar a entender o que tudo aquilo queria dizer. 

eu nunca disse que te amava. e se me perguntarem, eu vou dizer que nunca nem cheguei perto de te amar. não sei mais o que o amor faz, e então diria isso muito mais por inexperiência adquirida do que por certeza. pode ser sim, que eu tenha te amado um pouquinho em algum lugar pelo percurso em que você disse alguma coisa bonita ou em que eu deitei no seu ombro acreditando que estava salva de todos os males do mundo. eu sempre te ouvia dizer de um jeito meio debochado que só justificaria eu agir louca daquele jeito se eu estivesse muito apaixonada por você. você tinha uma flexão na frase, como quem diz uma redundância. eu dizia que o louco era você. às vezes eu ficava pensando em responder "e se eu estiver?" só pra que você me respondesse alguma coisa. mas você sempre tinha pressa, me levava pelos corredores da sua universidade apressado, me mandava embora de casa, se irritava com os meus jeitinhos. achei que não compensava. inclusive, da última vez que nos vimos achei que estávamos caminhando pra nos tornar aquele casal que já não deu certo e virou amigo. você não me beijou direito nenhuma vez. mas aquelas alturas eu já não queria questionar nada, e fiquei pensando que são paulo tem um dos por do sol mais feios que já vi na vida. eu prefiro o da sacada lá de casa, mas o da sacada de casa não tem você. 

é difícil te explicar porque eu quis ir embora. faz quase um mês e eu ainda não entendi. tem uns fins de noite que eu acabo cedendo e perguntando como vai você. no último você respondeu bem, hoje você foi seco. você foi seco e eu fiquei pensando que deve ser bem chato ter que lidar com alguém que some e volta assim, sem explicar porquê. quem sabe você ficou se sentindo uma dessas garrafinhas biodegradáveis que a gente joga fora assim que acaba a água, embora você pareça feliz sem mim. qualquer carta de amor soaria muito mais bonita se eu dissesse: fui embora porque te amo. por mais que você não me amasse de volta ia ter um quê de sofrimento que justificaria qualquer um dos meus atos - por mais impensados que eles sejam. não posso te dizer isso, mesmo pra fins literários soaria exagerado. fui embora porque não sei. fui embora por todas as coisas que não sei. fui embora pra nunca mais ter que te perguntar quem é a menina da foto ou quem é a garota que recebe poemas no meu lugar. fui embora porque estive cansada do meu descompasso e porque minha vida com você é um dançar na batida errada sempre sempre. e você sabe, eu fiquei cansada de dançar sozinha e fora do tom. seria bem mais fácil se eu passasse por cima dessas dores todas e continuasse a engolir todas as vezes que eu percebo que além de mim há outras várias e que talvez eu nunca venha ocupar um lugar de destaque - embora nos conheçamos há muito tempo, e meses atrás você parecesse gostar muito de mim. 

eu não sei o que aconteceu com a gente e foi por isso que eu fui embora. pra não te desgastar com perguntas bobas e sem resposta. pra não te exigir estando longe. pra não me doer num contato que vai me mastigando por dentro. eu te deixei pelas coisas que não sei. pelas coisas que eu não sei te explicar. eu resolvi te deixar depois da nossa última briga. ver você com outra me machucou. e outra que eu sei, por conhecimento de causa da sua vida passada, que já existe há muito tempo. bem antes da gente retomar isso que a gente tem - seja lá o que for isso. outra que eu trombei no corredor da sua universidade e você agiu como se eu fosse invisível. o fantasma da outra me deu um embrulho no coração. não soube agir naturalmente, nem te dizer as coisas com clareza. te disse coisas que não sei. e são essas coisas que não sei que você faz nascer em mim que eu não quero mais. doeu tanto. tudo doeu tanto. doeu tanto você me dizendo que você tinha o direito de colocar aquela foto em qualquer lugar. doeu tanto você me dizendo mil e uma coisas. doeu quando lembrei que eu também tenho com você uma foto quase igual. tudo doeu tanto que eu chorei na sacada sem saber porquê. chorei tanto. chorar tanto assim pelo que eu não sabia me fez pensar que só tinha um jeito: ir embora. ao menos de longe, se doesse de novo, eu não ia agir com você de um jeito que não sei. ia ser melhor pra nós dois. 

não está sendo fácil. hoje mesmo quis perguntar como você está, e fui. tem um monte de coisas que às vezes eu quero te contar e não conto. viver sem você sempre foi complicado, tanto que quando estivemos separados eu te escrevia umas cartas que eu achava que você nunca leria (mas leu). eu fui embora porque eu não sei o que sinto por você. e enquanto eu não descubro, ser uma coisa indefinida me dói. a cada vez que eu estou perto eu sei de coisas em você que eu gosto e aí por vezes eu relembro porque é que eu nunca te deixo. eu tento te falar aqui das coisas que eu não sei. com a distância você vai sumindo. tem dias que eu esqueço de pensar em você. depois você aparece me mostrando pedaços da vida da qual não faço parte e eu fico triste. às vezes eu destilo tudo isso em forma de rancor. no fundo eu queria que você fosse mesmo um dessas garrafas que a gente joga no lixo. você ia me odiar um pouco, mas logo ia passar, e eu ia viver bem. eu ia viver longe dessa infinidade de coisas que eu não sei, pelo menos. eu não consigo ser só sua amiga porque me machuca a idéia de você gostar de outra pessoa e essa pessoa não ser eu. também fico pensando e não sei se seria sua namorada. daria certo? todos os seus amigos me odeiam, a gente brigaria infinito pelo meu jeitinho e você ronca. eu sempre consegui ser mais uma no meio de várias, sendo também uma que tem vários. por que com você não? por que você me aperta o coração de um jeito estranho e porque o vislumbre besta de "te perder" me faz chorar na sacada? quanto sentimento mesquinho, eu nunca fui assim. coisas que não sei.

em resumo, eu gostaria que você soubesse que eu gosto muito de você. e muito me encantaria continuar na sua vida, e quem sabe até ser esse arquétipo louco da grande amiga com quem a gente sai pra conversar e dividir impressões sobre livros, e de vez em quando transa,e de vez em quando dorme junto e eu queria muito ser o que eu sempre fui com o resto do mundo com você e ouvir com distanciamento as histórias das suas outras garotas, e aí eu te contaria sobre os meus encontros casuais enquanto dividimos um café. mas com você eu não sei. não te deixei porque você não me serve. eu fui embora porque você desperta em mim coisas que eu não sei. coisas que vão além. essa carta mesmo, não faz o mínimo sentido. quase consigo pensar em você me dizendo qualquer coisa como: isso só se justificaria se você estivesse mesmo muito apaixonada por mim. você diz isso sempre com um ar de deboche meio convencido e eu rio dizendo que até parece. e se for? imagina o estrago? estrago já teve. mas acho que ficaremos melhores sem isso. nós dois. prometo que volto às vezes, quando sentir que posso conviver com você sem enlouquecer dizendo dessas tantas coisas que não sei explicar. espero que você continue escrevendo, que a sua casa nova seja aconchegante, que a faculdade não te mate e que tudo isso que sempre foi continue sendo. tudo isso que você é e eu não sei lidar. por aqui continuo descompassada, meio ansiosa, sempre sofrendo de gripes e sem ter a mínima idéia do que eu faço com a minha vida. desculpe pelas vezes que te ignorei. era preciso. pra que minha vida siga adiante, diriam os los hermanos. 

eu nem gosto de los hermanos, aliás, mas dia desses ouvi essa música aí que eu acho que chama "adeus, você" e acho que posso terminar te dizendo pra que você acalme e te sustente, e não pense que eu fui por não te amar. também não pense que eu fui por te amar. eu fui porque eu tive que entender todas as coisas que você faz nascer em mim e eu não entendo. sigo os seus conselhos, por vezes. em outras percebo que gosto bastante de algumas partes de mim que você detesta. um dia você me disse, convencido, que era difícil achar alguém melhor que você. eu ri achando uma bobagem. não espere que eu diga agora: você tinha razão. não é nada disso. é que eu percebi que quando a gente gosta de alguém, seja lá do jeito que for, ela acaba por ficar única do jeito dela. e então eu te digo que achar alguém como você deve ser mesmo um pouco difícil. razão pela qual eu percebo, depois de quase um mês longe, que eu não quero de novo ser louca, romper contatos abruptamente e esperar que alguém te faça sofrer. espero que você seja feliz e que eu ainda leia alguns dos seus textos e alguns dos seus trabalhos, embora eu saiba que eu conto com várias assistentes pro posto. talvez um dia você ame alguém e me esqueça de vez. talvez aconteça antes comigo e a gente se encontre de vez em quando pra contar as novidades. não sei da vida. pensei em te dizer muitas coisas antes de partir, mas acho que podia ter deixado só um bilhete: "se eu for embora saiba que não foi por não gostar de você, e sim pelo avesso disso". mas eu nunca penso em soluções inteligentes quando o assunto é você. continua sendo feliz, não me odeia, eu sou desajeitada, mas tenho o coração bom.

esperando que você leia isso e mantendo a tradição da comunicação indireta, me despeço como quem deixa uma carta em cima da mesa e parte com as malas. te mandar diretamente exigiria respostas e esse é tipo de coisa que, acredito eu, nem carece de resposta (a não ser que você queira). sinto uma coisa bonita por você, um negócio que me faz querer que todas as suas potencialidades sejam postas em prática logo, uma urgência de te ver bem, feliz e fazendo o que gosta. acho que é recíproco e imagino que esse seja o porquê das suas incontáveis broncas. quando penso na gente se dando bem (o que exclui os meus surtos e suas grossuras) me dá vontade de sorrir. é isso que vale. 
eu volto logo, 
lembra de não me esquecer. 
te gosto muito, sempre, ainda que preferisse não às vezes. não por nada, é que acho chato. só isso, acho chato.  
um beijo, 

eu 
(que sempre assino as cartas egocentricamente). 

27.5.13

eu também sei dançar se não for com você

Foi ele que me fez dançar de novo. Coisa besta dessas, pensei enquanto descia do carro, numas das mil e uma vezes em que ele me deixou em casa. Às vezes as pessoas ficam na vida da gente e a gente não percebe. Custei a perceber que foi ele que me ajudou a encarar aqueles dias horríveis de cinza e medo, enquanto me levava pra passear nos lugares conhecidos da minha cidade velha. Nem sei se ele dançava, antes de mim. Imagino que não, acho que lembro de uma vez em que ele me disse que fazia anos que estava aqui, mas nunca tinha ido em lugar de dançar. Fomos em lugar de dançar, e você dançava esquisito e daí eu podia dançar esquisito também. Não lembro, antes dele, quando é que tinha dançado. Talvez com um outro, um pouco antes dele, é verdade, que me fez dançar na sala. A gente só se beijava quando dançava, coisa esquisita. Mas depois desse veio um outro, que não me fez dançar e não me fez feliz, e aí eu parei de dançar. Parei de gostar de mim, também. E aí ele apareceu e aos poucos foi me fazendo dançar de novo. Foi ele que me fez dançar de novo. 

A vida é cruel. Sentada no meu quarto, depois de uma longa viagem, percebo o mundaréu de coisas que a gente deixa pra trás. Nas gavetas da escrivaninha, o manual da câmera que meu tio me deu logo que eu comecei a tirar fotos. A câmera empoeirada, num canto, com o filme da minha última viagem pra Curitiba. Nunca mais fotografei nada, eu disse assim, baixinho pra mim, como quem conta um segredo triste. Perto das câmeras, meus trinta e poucos livros não lidos. Não lembro quando, exatamente, eu parei de tirar fotos ou de ler livros. Só sei que aconteceu. Aconteceu eu, ali, perdida na vida e de frente pro meu computador querendo achar um sentido qualquer pra existência e falhando miseravelmente. Quietinha embaixo das cobertas, no frio, um ano atrás, eu não tinha vontade de viver. Só sabia escrever. E sei que escrevia porque esse era o meu único jeito de dizer que eu ainda existia. Existência besta, eu sei; mas ainda existência. Depois que tudo aquilo aconteceu eu me perdi de mim. Eu não sabia dançar, eu não sabia ler, e eu nunca mais tirei nenhuma foto. Numa pasta velha no meu computador, encontro fotografias de shows que eu fui. O mundo visto através das lentes ruins da minha câmera ruim. A voz do meu tio me perguntando a quantas anda a fotografia e eu respondendo baixinho, como quem sentencia uma morte: nunca mais fotografei. Nunca mais. 

Foi esse ano que voltei a dançar e que, timidamente, voltei a ler alguns livros. Concentração me falta, e vez ou outra eu prefiro mesmo ficar na internet perdendo tempo com a vida das pessoas que não são eu. A vida dos outros não é melhor que a minha, mas tem como grande qualidade: não ser a minha. Estive bem. Estive tão bem que parei de falar de mim. Não precisava, não tinha o quê e o mundo parecia ter, agora, algumas nuanças. Eu tinha voltado a dançar com ele. Eu, ainda que devagar, ia riscando a lista de livros a ler. Ia vivendo. Não era ainda o melhor jeito de viver, mas era um jeito. Um jeito meu. No meio disso tudo até peguei a câmera de novo e tentei tirar umas fotos, acho que uma orquestra, não lembro bem. O filme deve estar velho e é bem capaz que ao revelar amarele ou queime tudo. Não importa. É um pequeno registro de quando eu voltei a ver. Voltar a ver é importante. Voltar a ser, parece imprescindível.

Uns dois meses atrás - talvez menos, não me lembro bem -  entretanto, as coisas voltaram feito filme de terror. A mesma história. De novo, aquilo, a mesma conversa. Que saco sou eu que não sei viver a vida que nem gente, sempre nos meus tempos estranhos, na minha falta de planejamento e urgência, nos meus livros não terminados. Que saco sou eu, sempre andando em círculos, sendo pouco atraente, com o cabelo estranho, seco, toda fora de compasso e sempre conferindo o sentido certo do metrô. Merda de cidade enorme em que a gente chora no meio da rua e ninguém percebe. De novo eu chorando na rua e me perguntando porque é que eu me maltratava assim? Desci dois pontos antes do que devia de medo de não chegar no lugar certo. Minha ansiedade ainda ia me matar. Um dia ainda mata, essa merda que não sei controlar ainda. Mata também essa urgência besta de querer ser feliz e se atrapalhar, sempre atravancada pela vontade dos outros. Tudo de novo. O quarto escuro, o sono que não passava, uns tremeliques que vinham do nada. Eu, encolhida entre cobertores paraíba, numa cidade que nem frio fazia, chorando de vontade não viver nunca mais. E lá na escrivaninha se formavam de novo pilhas de livros que não lia mais e uma câmera que empoeirava. Eu já não queria que ninguém me tirasse pra dançar. Tudo chato, não adianta, eu sou um desastre. Queria dizer pra todo mundo ir embora de uma vez. Eu não ia dar certo. Não tinha como. Não tinha como alguém descompassada como eu dar certo. Era necessário que todos soubessem logo disso. Eu ia gritar pro mundo: eu sou um fracasso. Era isso, fracasso. Nunca terminarei de ler um livro, que dirá escrever meu próprio, e sou um fracasso.

Os dias iam passando feito assombração. Era tudo lento, tudo triste, tudo cinza. Cinza feito as olheiras imensas que iam se formando embaixo dos meus olhos que agora já tinham voltado a ser tristes. Tudo vai indo porque tem que ir. Eu não queria dançar. Não queria fotografar. Não queria saber o fim dos livros que comecei. Não queria nunca mais aprender alemão. Nem francês. Nem nada. As pontinhas dos meus dedos formigavam e no coração tinha uma espécie de peso que é difícil de explicar. Eu queria que tudo isso desse um conto bonito, mas eu não conseguia escrever. A duras penas ia completando as minhas atividades, até que as coisas foram ficando mais leves. No começo da semana ele tinha me levado pra dançar. Meus coturnos pesados atrapalhavam tudo, mas ele tinha esse jeito torto de me fazer sorrir no meio da tragédia. De vez em quando a gente tinha que perder a hora dos compromissos do outro dia. Fiz tudo que devia. Ia renascendo no meu tempo, mas ia. Sou meio desorientada, mas ia dar conta. Estava dando. Tudo parecia leve. Eu ia suportar. Até que vem tudo de novo. O mesmo inferno. As mesmas brigas. Você é louca você é louca você é louca sendo repetido como um mantra. Eu quase acreditei. Eu era louca mesmo, não era? Por que é que eu me maltratava assim? Não sabia responder. Olhava pra sacada tentando entender tudo aquilo que ele tinha me dito e o mundo rodava esquisito. O mundo não girava. Era isso. O mundo tinha empacado de novo e eu tinha ficado. Besta. Sou cheia de bestagens. Eu era um fracasso. Era isso, eu ia fracassar de novo. Perdida em pensamentos e naquelas mesmas desilusões no dia de começar de vez um projeto. Adeus, mestrado. Adeus. Eu te deixei por conta de uma desilusão. Chorava feio, daqueles choros de criança sentida. Até soluçava. Não era possível. Mais uma vez. A gente cansa de se reerguer. Eu já tinha decidido: nunca terminarei nada e sou um fracasso. 

Ia ser mais uma nas coisas que eu deixei pra trás. Sonhos ali empilhados na estante junto com uma máquina com filme pela metade e uma porção de livros que pouco me interessa o final. Tudo inacabado, feito eu. A única coisa que eu conseguia sentir era dor. Punhal enferrujado no coração devia doer uma dor feito aquela. Desilusão. Mais uma pra botar na estante. De novo. O inferno. Tudo que lembro daquele dia foi ter me enfiado numa cama qualquer com um desses caras de sempre e quase ter chorado baixinho no começo de tudo. Mas depois gozei. Acho, nem lembro. Só lembro dele me dizendo que ia ficar tudo bem enquanto me dava suco pronto de maracujá. Desses de pozinho. Era tudo que eu precisava, no fim das contas. Aí decidi que não dava pra negligenciar a vida por mais um ano. Fui lá e fiz. Chorando, mas terminei tudo que tinha que fazer. De novo estava eu naquela cidade chata carregando documentos e subindo ladeiras. Conferindo no mapa o sentido do metrô. Dóia um pouco ainda. Lá dói um pouco mais. Inferno de cidade empacada. Mas eu ia sobreviver. Ia colocar a desilusão do lado das coisas que eu não uso mais, ali na estante. Estante das desilusões. Era problema de quem esperava demais da vida. Certamente. Depois tudo foi indo. Às vezes doía, mas doer acaba que dói sempre. Não era a primeira vez. Era isso: não era a primeira vez. 

Deve fazer um mês, mais ou menos - talvez menos, não me lembro bem. Sei que faz uma semana que voltei de viagem e percebi o mundaréu de coisas que a gente deixa pra trás. Meus livros, minha paixão pela fotografia, minha mania de dançar, meu gosto pelo futebol e minha vida. Lá estava eu deixando minha vida pra trás mais uma vez. Que perigo. Aí resolvi que não dava. Voltei com os livros, prometi deixar tudo em ordem, acordar cedo. Não dá pra ficar fazendo doer pra sempre. Por que é que eu me maltratava assim? Seja o que for, se um dia valeu, hoje não vale mais a pena. Daí dei de andar na chuva, dar trela pra desconhecido, sair pra dançar sempre que der e ler antes de dormir. Quando tiver tempo volto a fotografar também. Fiquei sabendo de gente que comenta futebol. Voltei a ver futebol. Ouvi que é muito legal que eu saiba sobre diversos assuntos. Começo a achar engraçado o espanto que, de quando em vez, meu cabelo causa. Sei que sou perdida e louca. Aceitei. Gosto de mim assim, mesmo que esse "ser assim" me cause formigamentos nas pontas dos dedos. Dia desses andei na chuva, descabelada, ouvindo música. Sozinha. Sou, primordialmente, uma pessoa sozinha. Sorri baixinho, como quem descobre um grande segredo. Quase chorei de levinho quando me li comentando futebol de novo. Senti leve orgulho de conseguir ler meio livro em dois dias. Volto a ser eu. Dia atrás ele me fez dançar de novo. Sou feliz quando danço com ele, coisa besta dessas pensei descendo do carro e aí quase pensei que talvez, quem sabe, ele fosse a escolha certa a se fazer e que a escolha às vezes está mais perto do que imaginamos, o grande clichê. Mas ele não é a única pessoa que dança no mundo, e talvez essa seja a grande chave de tudo. Tem muita gente pra dançar comigo no mundo. E pensando assim, sei que volto a ser livre, como sempre fui. Percebi o mundaréu de coisas que a gente deixa pra trás. No meio delas, estava eu. E aí eu me fiz dançar de novo. 

19.5.13

janelas da alma


tinha show do raça negra e eu não fui. vontade senti, mas o cansaço foi maior. cansaço físico não digo, sempre acho que cansaço físico acaba curando uma hora ou outra - nada que cinco ou seis horas de sono não resolvam, mas sim o cansaço da alma. estive de alma cansada; triste, melancólica, com medo de ter crise de ansiedade no meio do metrô. portuguesa-tietê não é coisa pra gente com nervos fracos, são paulo menos ainda, são paulo com virada cultural menos ainda. imagina só aquela gente toda indo de um lado pro outro, meio louca, meio histérica. eu tendo que tomar cuidado com a bolsa porque podem vir mendigos, ladrões, gente, gente, gente, gente de todo lado e de todo jeito. eu nem gosto de gente. não gosto de gente tanto assim, não desse tanto. também não queria pegar um ônibus, não queria conversar, não queria nada. absolutamente nada. tudo pesava demais, meu coração tem sessenta quilos desde que a história se repetiu. as histórias se repetem, assim, e eu volto a escrever em primeira pessoa. meus textos em primeira pessoa não são bons. minhas histórias não são interessantes o suficientes. o sentimento me retarda, o sentimento retarda a todos inclusive a mim. queria ficar o mais longe possível de mim e da história. queria ficar mais longe de são paulo. queria ficar longe. longe. 

longe fiquei. angústia é um sentimento estranho de explicar. dá arrepio de choque. um dia pesquisei na internet se ansiedade dava choque. dá sim. dá choque, dá ânsia, dá tremedeira a formigamento nas extremidades. tristeza também é coisa física, concluo. viver é coisa complicada demais, concordamos eu e o guimarães rosa. amar então, deus que nos livre e guarde. e deve guardar mesmo, porque o amor é o diabo. se o diabo fosse um sentimento, seria a paixão. longe estando, resolvi que devo ficar perto das coisas perenes. paixão é o diabo encarnado, amor não. amor é simples. amor de pai e de mãe, dizem, é a única coisa que não perece. deve ser a única coisa que dura muito no mundo, além dessas árvores que vivem milhares e milhares de anos. mas as árvores morrem, acho que o amor fraternal deve permanecer no espaço, quem sabe. no cinema perto do hotel onde estava, meu pai disse, ia passar um filme de dança. sabe-se lá que filme de dança era esse, mas minha mãe não quis ir ver e resolvi ir com ele. ir com ele porque não me lembrava qual a última vez que tínhamos saído juntos pra ver alguma coisa. há tempos meu pai não vê. não enxerga. há tempos o mundo do meu pai é feito de vultos. o mundo do meu pai era feito de memória e sensação. os olhos dos meu pai eram os olhos dos outros, e eu acho que deve ser triste ver com os olhos dos outros. os olhos dos outros não vêem o que a gente quer ver. coisa estranha é o olhar dos outros.

o prédio devia ter uns duzentos anos. engraçado falar que uma coisa tem duzentos anos, porque é tanto tempo que parece que ela existiu desde sempre. casarão de gente rica que hoje é museu. o museu da imagem e do som da cidade de campinas é num antigo casarão. casarão onde devem ter sido açoitados escravos propriedade de velhos senhores de café. senhores de café do oeste paulista. desgraça acontece em lugar bonito. a arte toma conta desses casarões. a arte ou os bancos. mais comumente os bancos, mas nesse, em especial, ia ter filme de dança. o filme de dança era "pina". wim wenders é um dos meus cineastas favoritos, mas ele só fez uns três ou quatro filmes bons, segundo a crítica. dizem que wim wenders começou com grandes sucessos e depois perdeu a mão. ou isso, ou não entenderam ele. não sei dizer, também só vi os filmes aclamados. os outros devem ser tão ruins p'ros outros que a gente nem acha por aí. talvez eu entendesse os filmes ruins do wim wenders porque eu entendo de fracasso, e entendo também de não ser entendida. entendo muito sobre não ser vista direito pelo olhar dos outros. coisa estranhíssima é o olhar dos outros. 

o tal filme de dança conta a história de pina, uma coreógrafa de dança contemporânea que morreu enquanto faziam o filme. ao que consta, ninguém entendeu muito bem a pina. não sabiam se o que ela fazia era dança ou teatro, e ela foi muitas vezes criticada por mostrar coisas muito agressivas. eu não conhecia a pina antes do filme. meu pai também não. fiquei apreensiva ao perceber que o filme tinha falas e que, talvez, meu pai pouco entendesse sobre a pina ou sobre a dança. felizmente, o wim wenders fez um filme com poucas falas e poucas legendas. pra entender pina, era necessário entender a dança. a dança meu pai enxergava, e isso me deixava feliz. feliz porque eu conseguia ver através dos olhos do meu pai que ele conseguia ver de novo. enxergar. há tempos meu pai não enxergava nada do que a gente via. via pelos olhos da gente, via com olhos que não eram os olhos normais. via som. via vulto. via vento. via barulho e via calor e frio. via cheiro. mas ver, ver mesmo, há tempos que não via. daí ele viu a pina, e a dança meio louca da pina. e tudo que o wim wenders queria mostrar sobre a pina. 

o filme tem poucas falas, quase nada de falas. quando tem fala, são os dançarinos da pina tentando explicar a pina. mas a pina não é gente que se explica. o wim wenders, que não emplaca um sucesso a pelo menos vinte anos, sabia que não precisava explicar a pina. precisava mostrar a dança da pina. ninguém entendia direito o que a pina queria dizer com as danças dela. era alguma coisa de angústia, e alguma coisa de felicidade e alguma coisa de medo. a pina dizia p'ros dançarinos, que pra dançar alguma coisa é necessário sentir. todo mundo da companhia de dança da pina achava ela genial. é sempre genial, a gente sabe, alguém que nos faz sentir e transentir alguma coisa. é por transver a dança que o filme da pina não precisa de fala. vendo a dança a gente entende muito sobre ela, e entendendo muito sobre ela entende muito sobre a dança e sobre sentimentos, e entendendo muito sobre sentimentos entende o mundo. e pra entender o mundo não precisa mesmo de legenda. meu pai enxergava o filme. não lembro qual foi a última vez que vimos um filme que ele enxergava com os próprios olhos juntos. da última vez, assistimos santiago. santiago é um documentário que o joão moreira salles fez sobre o seu mordomo, santiago. santiago se expressava através de histórias. era falando que se sabia de santiago. meu pai viu o filme com os ouvidos. não viu uma ruga sequer de santiago, ou as vezes que ele olhava tímido pra câmera. mas entendeu santiago. pra entender o mundo não precisa enxergar com esses olhos físicos. é preciso ver com a alma. 

é com a alma, primordialmente, que se vê pina. ver a dança pela dança não diz nada. se formos ver pina com olhares técnicos, pouco entenderemos. também pouco entenderemos sobre o porquê do wim wenders ter feito o filme daquele jeito, cheio de gente dançando no meio da rua. a dança de pina nada diz se for vista com os olhos de todos. pra enxergar pina, é necessário transver as coisas. pra enxergar pina é preciso de mais. meu pai enxergou pina. com certeza não viu a dança com os mesmos olhos que eu ou que as outras pessoas da sala viram. o wim wenders mesmo uma vez participou de um documentário chamado "janelas da alma" em que a grande coisa era entender como as diferentes pessoas com diferentes problemas de visão enxergam. a conclusão é simples: ninguém vê igual. é impossível prever como o outro vê, mas não é igual ao jeito que eu vejo. meu pai não viu pina com meus olhos, mas enxergou. para enxergar, percebo, não é necessário uma visão perfeita. o jeito que meu pai viu o filme era o mais bonito de todos pra mim, porque ele estava vendo de novo com os olhos dele. e seja lá o que ele tenha visto com os olhos dele, é mais bonito do que qualquer um vendo. porque são os olhos dele vendo de novo. são os olhos dele vendo por si. eu não preciso mais ver por ele. 

pina é um lindo filme porque ninguém entendia muito bem a pina, mas o wim wenders entendeu. ninguém entendeu muito bem o wim wenders por vinte anos, mas pina é um de seus grandes sucessos. talvez porque ele se encontrou com alguém que, como ele, via coisas a mais. via com a alma. e quando se vê com a alma se enxerga o outro. enxerguei a pina com meus olhos e não sei dizer se entendi pina, mas sei que me entendi, e entendi sobre os sentimentos. e vi. alguma coisa eu vi. vi meu pai vendo de novo, o maior presente do meu ano. maior que qualquer show do raça negra. me vi angustiada e triste. me vi. percebi que eu, assim como a pina ou o wim wenders às vezes enxergo tudo tão com os meus olhos que não sou entendida. coisa terrível é o olhar dos outros. o olhar dele não me entendia. era por isso que eu queria estar longe de tudo. longe daqueles metrôs de gente gente gente gente longe dele o mais longe possível. e longe dele estive perto de mim. o mais perto de mim possível. pina dizia que é preciso dançar. dançar, creio eu, é um jeito de enxergar o mundo. parafraseio pina e digo: é preciso enxergar. é estritamente necessário enxergar. me enxerguei, enxerguei a pina, o wim wenders e o meu pai. concluo: pra enxergar não são necessários os olhos, é necessário sentir. pra sentir é necessário querer. pra enxergar é, então, necessário querer sentir. só enxerga quem quer sentir. só sente quem quer enxergar. 

talvez seja também esse texto uma dança não compreendida de pina. um filme sem bilheteria de wim wenders. tipo de coisa muito minha pra ser vista com os olhos dos outros. todos nós às vezes somos nós demais pra ser vistos com os olhos dos outros. eu, meu pai, a pina, e o wim wenders. mas alguém sempre entende. alguém sempre enxerga. bilheteria de um homem só. alguém na platéia sempre sai chorando. olhares que se encontram.  

13.5.13

somos tão jovens?


Eu tinha doze anos quando ouvi legião urbana pela primeira vez. Não foi exatamente por escolha minha. Com essa idade, meus pais colocavam os cds numa altura em que eu conseguisse pegar e eu acabava pegando os que me interessavam ou pela capa, ou pelo nome. "Legião Urbana" não é um nome lá muito atrativo pra uma pré-adolescente de doze anos, e a capa do "dois" (o único cd que meu pai comprou do legião), era bege e pouco atrativa. Eu, nessa idade, me dividia entre ouvir algum rock, as cantoras pops que faziam sucesso e Caetano Veloso. Sempre fui uma criança chata. Crianças chatas ouvem Caetano Veloso e se tornam adultos chatos. Eu sou uma jovem chata.

Mas o legião urbana eu ouvi por causa do Leonardo. Leonardo era um aluno novo que apareceu na minha sala logo no começo do ano. Ele tinha aquele jeito de não se importar com nada e passava a aula toda batucando na carteira, numa espécie de bateria imaginária. Atrapalhava a sala toda, os professores sempre reclamavam, mas o Leonardo não parecia ligar muito. Ele era baixinho, os cabelos meio compridos que sempre caíam em cima do rosto. Eu gostava do Leonardo. Daí, numa dessas conversas de sala descobri que ele gostava de Legião Urbana. Lembrei que meu pai tinha comprado o "dois" não fazia muito tempo e roubei o cd pra mim. Ouvi todas as músicas e achei que, assim, um dia teria assunto com o Leonardo. O que eu não esperava era essa identificação com as músicas do Legião. Ouvir Legião Urbana era como ouvir um amigo que conheça histórias. Renato Russo me entendia. E era muito difícil até pra eu me entender naquela época. O começo da adolescência é uma época chata e eu era uma adolescente chata. Passava muito mais tempo lendo e ouvindo música do que me importando com o que as outras meninas se importavam. Acho que nessa idade já tinha guria na minha sala que já tinha beijado na boca e eu, o máximo que sabia sobre o amor era aquilo que eu sentia sobre o Leonardo, de longe, enquanto ouvia meu primeiro CD do legião urbana. 

O tempo passou, eu pedi pro meu pai outros cds do legião, que ele me deu com certo gosto porque também tinha sido uma banda da juventude dele. Gostava cada vez mais das músicas, e cada vez menos do Leonardo. O Leonardo era meio chato, baixinho demais pra mim e, depois de um tempo, os batuques constantes de caneta em cima da carteira me deixavam irritada. Mas o Renato era genial. Me lembro que uma vez tive um desentendimento sério com umas meninas da minha sala. Cheguei em casa e prestei atenção pela primeira vez na letra de "Andrea Doria". Eta como se o Renato tivesse escrito pra mim. Era essa a sensação que eu tinha com o legião: as músicas tinham sido escritas pra mim. E se essa sensação é importante hoje que tenho vinte e quatro anos, aos doze ela era ainda mais importante. Ser uma pessoa em crescimento nesse mundo louco não é fácil. Se entender é coisa complicada. Achar alguém que diga por você é um dos grandes triunfos da adolescência. O Renato dizia por mim. 

Renato dizia por mim não só nas letras, mas naquele jeito dele. Dei de ver várias entrevistas dele, ler várias coisas e percebi que a gente pensava parecido. Eu não era a única a me sentir daquele jeito. Alguém já tinha sentido antes. Renato era meu amigo. Renato, aos treze anos, era tão meu amigo que eu ficava imaginando que quando eu morresse, eu ia encontrar o Renato no céu e íamos tocar violão. Um pouco mais tarde, alguém me disse que o Renato não ia pro céu porque era gay. Os gays não vão pro céu. Fiquei pensando por um tempo. Não fazia o mínimo sentido. Deus não ia ser tão tonto assim de deixar um cara tão legal quanto o Renato queimar no inferno só porque ele gostava de namorar homens. Ele tinha me ajudado durante uma época duríssima da minha vida, eu pensava. É impossível que não tenha ajudado outras pessoas. Deus deve levar isso em consideração. Uma vez, ouvindo "pais e filhos" fiquei penando que o Renato, por ser gay, nunca tinha sido pai. Imaginei se ele queria ter filhos. Depois descobri que ele teve um menino, que tinha mais ou menos a minha idade. Fiquei um pouco contente. Renato parecia ser do tipo que ia gostar de ter filhos. Devia ser legal ser filho do Renato, eu pensava. 

É até um pouco complicado explicar - e tentar entender - a dimensão das letras da legião urbana durante a minha adolescência. Dos doze aos dezesseis foi a banda que eu mais ouvi. Eu sabia todas as letras. Todas as partes da minha vida tinham sido guiadas por alguma coisa que o Renato tinha escrito. Conheci todos os CDs, até aquele que ele cantou em italiano e é meio chato. Parte do que eu pensava foi formado pelo Legião. Não sei dizer se eu seria tão chata assim se tivesse ouvido só Britney Spears. Foi ouvindo o Legião, por mais clichê que fosse, que eu consegui ter alguma dimensão do quão errado as coisas podiam ser. Viver não era nada fácil. Nadinha. Eu sempre achei isso, mas não tinha quem falasse por mim. Daí o Renato falava, e eu ficava mais tranqüila. Ouvir legião era como ter um irmão mais velho que me explicava as coisas do mundo. Por alguns anos, o Renato foi o meu irmão mais velho. Tinha música pra confusão, pra felicidade, pra fossa, e pra indignação. Eu ia percebendo cada vez uma coisa diferente nas letras. Eu cresci com o Renato. O Renato me ajudou a crescer. 

Essa semana fui ver o filme sobre ele, o "somos tão jovens". O filme é horrível, o Renato é super caricato, tem cenas desnecessárias e é muito mais um filme de comédia do que algo sério sobre esse homem que também não é um mito. É só um homem como qualquer outro. Mas eu descobri coisas interessantes. Renato também estudou no Marista e ganhava medalhas de bom comportamento. Renato também foi um adolescente chato, egocêntrico, dono do próprio nariz. Ele, assim como eu, enfiava o dedo na cara das pessoas e cobrava indignação. O Renato acreditava em alguma coisa e ficava triste porque o mundo tem uma mania bem chata de não ser exatamente como a gente imagina. Eu fui uma adolescente muito parecida com o Renato. Exceto pelo fato de que eu bebia bem menos e não me drogava nada. O filme do Renato é chato. O Renato, convenhamos, também não era nada fácil de se lidar. O legião urbana está longe de ser a melhor coisa do mundo, e eu ouço muito pouco desde que passei dos vinte. Mas existe alguma coisa sobre essa banda que me formou.

Na ultima cena, o Renato canta. E é o Renato mesmo, não é o ator. Canta "será". E nessa cena, parecia que eu tinha doze anos de novo e queria conquistar o Leonardo. O Renato que cantava era aquele mesmo que foi meu amigo. Existe algo sobre o legião que ajudou a formar o que eu sou. Foi segurando naqueles versos que eu passei por essa fase negra que é a adolescência. O filme do Renato é horrível. O legião não tem as melhores letras do mundo. Hoje, eu prefiro Radiohead. Quem segura na mão da minha vida agora é o Thom Yorke. E outros caras. O Renato eu ouço de vez em quando e lembro que existem certas coisas em mim que não mudaram, porque certas coisas permanecem. Foi isso que eu percebi enquanto umas tímidas lágrimas caiam do meu rosto ao ver o Renato cantar. Já não acredito que tenha tanto tempo, que dirá "todo o tempo do mundo". Acredito menos - muito menos - no Renato e em mim. Acho que é porque eu cresci, o Renato morreu já faz quinze anos e o mundo, o mundo piorou muito. O filme do Renato é horrível, mas eu sei que ele sabe quase sem querer que eu vejo o mesmo que você. Aquele ao cantar "será" dançando do jeitinho que eu danço quando ninguém está vendo ainda é meu amigo. Não sei vamos conseguir vencer (e é muito provável que não), mas eu sei que continuo tentando. Eu sei. 

10.5.13

o pior poema das galáxias


Quem te escraviza? 
E pergunta ao coração como quem chora
Suplica uma resposta que não vem
Sabe estar escrevendo o pior poema
Das galáxias.

As constelações mostrariam um nome?
Dariam uma solução?
E se apontasse pro cruzeiro do sul, 
Construísse um dirigível 
Fosse até lá
Então, enfim, encontraria quem te escraviza?

Ouviu-se dizer que ele tem olhos cor de terra
Os pés no chão
Um olhar que não faz festa nem solta foguete
Um coração que não chacoalha 
E nem se entrega 

Ouviu-se dizer que ele se dá, 
Às moças bonitas, 
Às moças feias,
Às que tem coração que cintila,
Às que são ocas

Ouviu-se dizer que ele tem um andar solene
Jeito de homem que sabe das coisas do mundo
Entende as regras gramaticais
Não confunde o lugar das vírgulas 
Mas ainda não entendeu os mistérios da vida 

Ouviu-se dizer que foi ele
Que chegou de mansinho
Não fez barulho, não arrombou a porta
Que prometeu ficar
E que foi embora causando estrago.

As estrelas entendem o mistério do desamor?
E se construísse um foguete, 
Apontasse pra via láctea, 
Fosse até lá
Então, enfim, entenderia como o amor acaba?

Grita, 
Desespera-se 
Pede uma explicação
Se Deus existe, Deus não quer explicar.
Se Deus existe, não inventou esse tal de amor.

Quem te escraviza?
Pergunta ao coração e já sabe a resposta
E os dois então se olham, 
Se entendem
Choram no sofá da sala de estar.

Ouviu-se dizer que ele chegou, 
Tinha o olhar cor de terra, 
Os pés no chão 
Um coração que não chacoalha 
E nem se entrega

Ouviu-se dizer que ele chegou, 
Sorriu
Prometeu-lhe ser gentil
Pegou seu coração 
E amarrou num tronco de árvore.

Ouviu-se dizer que ele chegou, 
Ficou por um tempo
Construiu uma nave,
Apontou pro céu 
E foi devastar outra terra. 

7.5.13

mas quando eu me zango, não sei perdoar


O Roberto Tem Te Traído Você Sabia?

A pergunta veio como um daqueles carros desgovernados que você não vê passando, só sente o impacto. Quando a frase veio, já podia me ver desmembrada em quarenta pedaços diferentes e com sangue espalhado por todo chão. Tinham descoberto, então. O filho da puta não tinha tido nem a decência de esconder direito a outra com quem saía. Alguém viu. Alguém viu, alguém foi espalhando a história até que chegou na boca dela e ela veio me contar. O Roberto Tem Te Traído Você Sabia? E quase esboçava um sorriso cheio de dentes. Sorriso de quem quer mostrar que sabe alguma coisa terrível sobre a sua vida que parece perfeita. Teu namorado tem te traído. O merda do teu namorado não quis nem esconder direito que tem saído com outra menina e aí descobriram e não só descobriram como vieram te contar. Roberto era um canalha tão canalha que não fazia nem questão de esconder, ir em motel podre de beira de estrada. Não queria ser cínico, não queria deixar debaixo dos panos. Roberto deve ter saído do shopping, de mãos dadas com alguma menina dessas de quem ele gosta. O filho da puta dando voltinha em livraria de shopping com essas meninas de sorriso fácil e meio burras de quem ele gosta. O filho da puta esbanjando todo seu conhecimento merda sobre as artes & tudo mais em galeriazinha meia-boca de shopping com fulaninha de curso de humanas de universidade. Tinham descoberto. Tinham descoberto, e fizeram questão de me contar. 

Onde Você Viu Isso? Não que importasse. A verdade é que eu sabia. Sabia que tinha sido no shopping porque ele tem modus operandis. Se não fosse no shopping era num café. O filho da puta não tem nem imaginação. Sempre os mesmos lugares. Os mesmos lugares onde ele me leva, ele leva elas. Elas não se entediam, eu me entedio. Eu sou a chata que não gosta dos lugares frescos onde ele leva todo mundo. Café. Quando não é café é cinema-livraria. Café-livraria. E o desgraçado lá, mostrando todo seu conhecimento raso sobre tudo isso que ele conhece. Roberto é um filho da puta pós-moderno que acha que sabe muito sobre vários assuntos e a grande verdade é que quando se sabe um pouco sobre todos os assuntos, se sabe nada sobre tudo. Ele não sabia de muitas coisas, mas não é como se as meninas que acham ele lindo se importassem. Dava pro gasto. O filho da puta fodendo e presenteando essas meninas que gostam de ganhar presente. O filho da puta dessa vez tinha baixado a guarda e aparecido em público com uma dessas meninas. Tinham descoberto. E vieram me contar. 

Naquele Café Que A Gente Foi Semana Passada, Sabe Qual? Não era shopping, era café. Tudo a mesma coisa. Café, conversas, arte, os problemas do mundo, literatura, as últimas notícias do jornal, Você Leu o Último Livro Daquele Escritor Fantástico? Leram, sempre lêem. Leram, discutem, sorriem, se beijam e acabam na cama. Tinha sido assim comigo e devia ser assim com todas as outras, porque ele não ia se dar ao trabalho. Sei Qual, Aquele Da Avenida Perto da Livraria, Né? Sim. Ele Não Te Viu? Acho Que Não Eu Sai Rápido. Não que se ela visse ele ia disfarçar, ou se sentir culpado. Ia continuar ali, jeito de quem não deve nada a ninguém, as contas pagas em dia, cuidando da própria vida. Eu que sou atarantada. Agora tinham dó de mim. Filha da puta, veio me contar e me olha com esse sorriso meio assim. Então o relacionamento de vocês não era perfeito? Regozijava-se. Por dentro dela devia tocar uma fanfarra. Eu era também uma amélia burra que ficava em casa comendo chocolate e vendo TV enquanto o Roberto fodia outra menina no apartamento de solteiro dele, no outro lado da cidade. Ele que não deve nada a ninguém. As contas pagas em dia, dono da própria vida. E eu, coitada de mim. Virei mulher que faz vista grossa pra traição. Perdida e jogada num apartamento imenso onde dá pra guardar todas as minhas mágoas. Ainda Bem Que Tem Dinheiro Pra Comprar Chocolate Suiço E Pagar Analista, deve ter pensado a ordinária. Um saco inteiro de chocolates belgas, analista sete vezes por semana, se quisesse. Mas nada disso. Nada disso. Eu só ficava lá, meio tristonha, olhando a agenda de contatos e pensando pra quem ligar. Tanta gente no mundo. Grandes bostas. 

Era Uma Menina Que Acho Que Já Vi No Face Dele. Dizia com olhar de quem se perguntava E Como É Que Você Não Notou? Notei, claro que notei. Noto tudo, sei de tudo. Se bobear sei até os dias. Roberto tem umas desculpinhas esfarrapadas pra disfarçar traição. Inventa que não pode sair porque apareceu um trabalho de última hora. Sempre se enrola com as datas, quando você pergunta. Diz duas versões da mesma coisa, depois fala que Desculpa Eu Ando Mesmo Muito Cansado Embaralho As Coisas. Esquece as minhas datas e eu já cheguei a pensar que qualquer dia eu apareço nua na frente dos amigos dele e ele não faz nada. Dia desses esqueceu que a gente tinha marcado um jantar. Aí depois ligou, se desculpou. É Muito Trabalho Você Entende? Entendo, claro que entendo. Sempre entendo. Me faço de sonsa, é sempre melhor. Brigar vem ele com aquela conversinha de Você Leva Tudo A Sério Demais Isso Não É Um Casamento. O que ele não entende é que é questão de respeito. Aí. A filha da puta vê ele com uma qualquer e eu tenho que ouvir que O Roberto Tem Te Traído Você Sabia? Claro que sabia. Sei, sempre soube. Sei de todas elas. Os nomes delas. Os bilhetes que ele escreve pra elas. O jeito que elas acham que ele as acha as únicas do mundo. O jeito com que ele explica que Do Nosso Amor A Gente É Que Sabe. Tudo papinho barato pra todas elas acharem que não precisam de exclusividade. Que o sentimento é algo que paira no ar, muito maior e mais sublime que os rótulos. Rótulos São Para Potes De Maionese, disse um desses caras aí que tem frases espalhadas no facebook. Acho que um filósofo. O Roberto gosta dessas merdas. Nunca leu nem um livro inteiro de um desses caras, mas gosta dessas merdas. Claro que eu sei que o Roberto me traí. Sempre soube. Ele não sabe disfarçar.

Sei Quem É. E disse o nome da menina. Sempre o mesmo tipo. O Roberto escolhe o mesmo tipo de meninas, sempre. E elas não disfarçam. Sempre tem vestígios delas em algum lugar. E olha que eu nem fuço mais nada. Na casa dele nem o computador dele eu uso, porque se a gente fica sabendo de alguma coisa tem que tomar providência e eu desisti. É Essa Mesma. E ela me olhou com dó. Poxa, coitada de mim que tenho um namoro em que me traem. Coitada de mim, em casa, lendo livros e corrigindo trabalhos enquanto o Roberto ia levar outra menina pra tomar café. Só suspirei. Não ia dizer que eu sabia porque ia soar meio ridículo. Aí sim ia ser caso de pena, ela contando pra todas as amigas que Você Ficou Sabendo Da Carolina Ela Tem Sido Traída E Não Faz Nada. Todas iam pensar em mim com dó, iam sorrir um pouco pensando que o meu namoro nem é tão legal assim, mas que sempre desconfiaram. Acho Que Ele Me Dava Umas Olhadas. E quem sabe iam elas também se engraçar com o Roberto. Filho Da Puta Ainda Bem Que Chumbo Trocado Não Dói. Hein? Me olhou com olhos de surpresa.

Traio Ele Também, Ué. Os olhos dela pareciam envergonhados agora. Podia jurar que nesse momento ela preferia não ter contado nada. Queria que eu chorasse, me descabelasse, perguntasse Como É Que Ele Pôde Fazer Isso Comigo? E aí depois ela ligando pra todo mundo que conhecia dizendo que eu chorei num café no shopping quando ela contou que Roberto tem me traído. Tem Me Traído. Uma coisa constante, ainda. Várias. Todo mundo já sabe. Eu, desolada, molhando a blusa toda de lágrima e elas pensando que eu era uma mulher bem sucedida, porém infeliz como todas as outras. Trai? Traio Ué. 

E não era mentira. Traia mesmo. Traía porque me sentia melhor assim, ainda que ele nunca soubesse. Era discreta. Marcava as coisas por telefone, às vezes por mensagem. Os encontros nunca eram um lugares muito públicos. Uma vez por semana, às vezes no meu apartamento. Às vezes no deles. Uma lista fixa. Uns cinco caras. Por um deles eu sabia que podia me apaixonar, mas esse era o que estava menos interessado. Todos eles me comiam melhor que o Roberto. Todos. Um amigo meu dizia que eu gostava é do que não prestava. Concordava. Todos os cinco eram pessoas interessantes. Uma vez marquei encontro com um deles logo depois que o Roberto me deixou em casa. Uma vez lembro que descobri mais um dos casos dele. Ele não escondia. Vi os dois se beijando. Voltei pra casa, liguei pra um deles e trepei chorando. Destruída. Dei uma desculpa qualquer, disse que estava preocupada com o trabalho. Ele me disse que ia ficar tudo bem e me deixou dormir com ele. Eu trepava com outro chorando, mas trepava. Era a minha vingança. Eles existirem em silêncio era a minha vingança. Roberto esfregando na cara de todos os seus casos e eu, resoluta, fingindo que estava em casa trabalhando. Sempre Muita Coisa Pra Fazer. Ele nunca desconfiou. Acha que eu nunca vou largar ele por homem nenhum porque não existem homens melhores que ele. Existem. Vários. Eu continuo com ele por causa de uma dessas razões irracionais. Não faz sentido. Ele não toma cuidado. Eu tomo porque prefiro assim. Queria que ele me pegasse dando pra outro cara quando a gente marcasse um encontro, mas depois despenso. Eu não sou igual a ele. Me vingo em silêncio. Me vingo e sei. Sei que também mando bilhetes e marco encontros com homens que não são ele. Me machuco do mesmo jeito. Finjo que não. Mas agora a filha da puta tinha vindo contar. Era demais. 

Ele Te Traí Porque Te Descobriu? Agora o Roberto era a vítima. O canalha, vítima. Claro Que Não, Eu Comecei a Trair Quando Descobri A Primeira. A questão que pairava no ar era porque então eu continuava com ele? A questão era uma questão que eu não conseguia responder. Não pagava analista, embora tivesse dinheiro. Me enganava pensando que, se eu fazia a mesma coisa, então era porque devia ser assim mesmo. Tenho idade de ser assim, livre. No fim era fácil levar quando eu não ficava sabendo. A primeira eu nunca nem esqueci o nome, se chamava Rafaela. Eu vi os dois andando no shopping. Ele não sabia que eu precisaria pegar um livro pra levar pra uma aula no outro dia. Levou a menina. Eu nunca ia naquele shopping. Ela durou por muito tempo e ele nunca fez questão de esconder direito. Hoje Não Posso Porque Preciso Dormir Cedo. No outro dia a Rafaela colocava uma foto emblemática de um café com uma fatia de torta. Já teve até foto dos dois, porque esconder nunca foi lá uma preocupação do Roberto. Acho que ele nunca soube o que me machucava, ou, o mais provável: ele só pensa nele. Resolvi pensar em mim também. Arrumei uns caras pra sair. No começo pensava em levar eles nos lugares onde a gente ia, mas depois acabei bobagem. Se ele descobrisse o que ia adiantar? Nada. Uma hora eu ia me apaixonar por um dessas caras e ia largar ele. Nunca aconteceu. Ele sempre com aquele ar empoado de quem acha que nunca vai ser deixado. Era fácil antes, eu também gostava dos meus outros caras. Com cada um eu fazia uma coisa diferente. Nunca mais me perguntei porque não largava o Roberto. Ia levando assim. A vida dele não me interessava mais. Sabia de poucas coisas. Quando nos vemos é agradável. Dá pra ser assim. Até que vem um carro desgovernado e te destroça os ossos. Você Sabia Que o Roberto Vem Te Traindo? Sabia, mas eu tinha esquecido. 

Faz Tempo Tudo Isso? Acho que Faz Acho Que Sempre Foi Assim. Eu tinha relembrado. Antes a coisa corria, era mais fácil, ele era mais um no meio de vários. Agora aparece ela, me lembra de tudo isso. O filho da puta não faz questão de esconder, aparece em café com as outras. Na frente das minhas amigas. Elas vem me contar. Vem Te Traindo. Todo mundo já sabe. Eu, trouxa. Trouxa, comendo chocolates belgas. Bem sucedida, mas tristíssima. Se sujeitando às traições de um namorado. Se sujeitando. Por que? Não sabia responder. Olhava pra ela que me olhava num misto de pena e espanto e não sabia o que dizer. Eu tinha esquecido. Dele, do descaso, da mania de sempre pensar primeiro nele e nunca no fato de eu também ter um coração. Você Tem Que Entender Que A Vida É Assim, ele dizia toda vez que eu questionava qualquer coisa que seja. A Vida Não Tem Que Ser De Jeito Nenhum, eu pensava. A vida a gente faz. Não tem pré-requisitos, viver. Não existem as coisas que são assim e pronto. Talvez a morte. O resto, o resto é pura invenção. Acontece que o Roberto era fatalista e eu era cheia de invenção. Por Que Você Continua Com Ele Então? Pela primeira vez ela fazia uma pergunta que fazia sentido. Por que? Eu olhava para os destroços de tudo aquilo e também não sabia responder. A essas alturas ela já estava encharcada de pena de mim. Eu também tinha um pouco. Queria me colocar na minha frente e me estapear dizendo Você Não Precisa Disso. Não precisava que alguém viesse me dizer que ele vem me traindo. Não precisava aceitar coisa alguma porque nada tem que acontecer de jeito algum. Meu coração destroçado em cima da mesa daquele café no centro e eu pesando quando foi que eu deixei que ele me destruísse assim. Nada está bem, nunca esteve. Ele, elas, nada disso eu mereço. Não mereço as condolências da estranha que vem me dizer que O Roberto Vem Te Traindo, porque ele nem faz questão de esconder. A Vida É Assim, e se eu me machucar, eu que lide com isso. A culpa é minha. 

Por Que você Continua Com Ele Então? Eu tinha que responder a pergunta sem resposta cabível. Nenhuma resposta cabia nessa pergunta. Respondi a única coisa plausível. É Que Não Estamos Mais Juntos Você Não Ficou Sabendo? Ela me olhou com espanto. Mas É Que Eu Achei Que… Não Faz Muito Tempo Mesmo. Ela me olhou com olhos de alívio. É Que O Roberto Tem Me Traído E Eu Não Mereço Isso. Chumbo trocado também dói. Tinha cansado. A resposta da pergunta era simples: não havia porque continuar com ele. Meu coração destroçado ainda descansava em cima da mesa daquele café no centro de onde eu podia ver a cidade. Já podia me ver desmembrada em quarenta pedaços diferentes. Era como se tivesse passado um daqueles carros desgovernados que você não vê passando, só sente o impacto. Tinha sangue espalhado por todo o chão, mas eu ia sobreviver. 

25.4.13

it's friday and I'm in love


os últimos dois anos me envelheceram quinze anos.

você me olhava e sorria. 

o seu sorriso me irrita porque você tem os dentes certinhos. dente de quem usou aparelho na infância. eu nunca usei aparelho na infância, não tenho os dentes certinhos e detesto sorrir em foto. sempre saio feia. você evita as fotos sempre que pode. mania besta, já pensei. hoje entendo. também não gosto muito de fotos. pelo menos comigo você tira. depois guarda. tenho uma pasta no computador com o seu nome. gosto das nossas fotos, mas o seu sorriso me irrita. me irrita porque você tem os dentes certinhos de quem usou aparelho na infância. eu não usei aparelho na infância e raras vezes sorrio. você diz que não tem porque, que o meu sorriso é bonito. na pasta das nossas fotos tem fotos minhas sorrindo. tem uma, em especial que gosto muito em que eu estou sorrindo pra você. você tirou quando disse que gostava muito do jeito que eu te olhava. a gente nunca sabe o jeito que olha pra uma pessoa, só tem uma noçãozinha. aí você tirou a foto. eu te olho de um jeito bonito. deve ser parecido com o jeito que você me olha. eu só gosto do meu sorriso quando ele sorri pra você. eu não tenho os dentes certinhos. 

você me olhava e sorria e quando você sorri se formam rugas do lado dos seus olhos. 

acho que você está ficando velho, mas pode ser só uma impressão. 

acho que todos nós ficamos velhos dia a dia. os últimos dois anos me envelheceram quinze anos.
quando eu digo isso você sorri e diz que é bobagem. eu não fiquei velha coisa alguma, eu amadureci. acho engraçado quando você diz que eu amadureci porque você não me conhecia antes pra saber se eu era mais ou menos infantil. em todo caso, você tem razão. não sei se o amadurecimento envelhece a gente, mas acho que envelheci. me sinto cansada. você me diz o tempo todo que a vida cansa a gente. você tem seis anos a mais do que eu, e nem parece. quando a gente anda na rua ninguém pergunta. da primeira vez que você conheceu meus pais eles se assustaram porque você já tinha casa, carro, um gato e planos de investimento. ninguém percebe que você é velho, ninguém nota as rugas que já se formam quando você sorri. só eu sei das suas rugas. eu gosto delas porque elas aparecem quando você sorri pra mim. 

você não é velho. eu sempre te digo isso e aí você desanda a contar episódios que não participei. as diretas já. o fato de você ter nascido num brasil ainda não democrático. toda uma história que existe e eu não vivi. você lembra de quando os ramones ainda não haviam acabado. nessa época, se muito, eu sabia uma letra inteira do sandy e jr. talvez nem isso. você ri e diz que eu sou uma criança. você também é, só que nem parece. 

estamos sentados na sua cama e não assistimos tv porque isso nos distraí. 

eu gosto muito mais de tv do que você, muito mais de livros do que você, e você entende mais de cinema do que eu. vemos muitos filmes e às vezes você assiste filmes na tv enquanto deitada no seu colo eu leio livros. eu não ligo quando você para a minha leitura pra contar uma cena, e você não liga quando eu paro suas cenas pra te ler um pedaço do livro. às vezes você desiste do filme e me ouve contar histórias. às vezes eu desisto do livro e vejo o filme com você. somos um casal besta como qualquer outro casal besta que pode acabar um dia porque não concordamos mais com a marca de leite que devemos comprar. eu sei que um dia você não vai mais achar meu café genial e eu não vou mais achar que o seu beijo é o melhor beijo de todos. você sempre me disse isso: que nada é eterno. eu concordei com você que eu não acredito em certezas. "uma escolha nunca é definitiva, ela está sempre sendo feita; razão pela qual o casamento é imoral". gostava dessa frase da simone de beauvoir antes de te conhecer, e quando te conheci me encontrei comigo mesma. achamos o casamento imoral mas cogitamos morar juntos. a vida é feita de ironias. 

estamos sentados na sua cama e conversamos sobre a vida, desse jeito que fazemos sempre. 

anos de diferença nos separam, mas eu sei que eu já sou você, só que mais nova. eu sei que de algum jeito já sou tudo isso que você pensa, já sou a moradora de um apartamento pequeno, mas bem decorado. já sou sozinha com meus gatos e não tenho sonhos de casar. eu olho no fundo dos seus olhos castanhos e enxergo os meus. quando eu te conheci e eu enxerguei coisas em mim que eu sempre soube que existiam, mas eu nunca tinha percebido. é como se você soubesse coisas sobre mim que eu já sabia, mas não tinha exteriorizado. 

o nietzsche diz que o amor é uma espécie de egoísmo. eu amo tudo que você faz em mim, mas não te amo. 

eu acho que te amo desde a primeira vez que eu te vi. lembro com exatidão de certas coisas sobre você. a roupa que usava, as músicas que tocaram no seu carro. posso narrar feito história de filme tudo isso que aconteceu com a gente. eu fingi que não te amei porque te amar não estava nos meus planos. você foi uma curva da vida, um acidente, uma pedra no meio do caminho. no meio do caminho havia você. no meu do teu caminho havia eu, pedra. foi você que me perguntou sobre paixão quando nos vimos pela segunda vez. eu não sabia o que te responder. você dizia que as coisas ou eram, ou não eram. eu te respondi que então era. era paixão. você me disse que vinha sentindo a mesma coisa, só que não podia ser naquela hora. era estranho. as coisas não tem hora certa pra acontecer, mas acontecem. eu era uma pedra no meio do seu caminho. no nosso caminho havia seu outro relacionamento. "eu gosto dela também, você entende?". entendo. entendo mesmo, sinto a mesma coisa. 

você é tão pragmático que até seus dentes são certinhos. te imagino pensando que se os dentes eram tortos, é porque precisavam de aparelhos. aí usou o aparelho. eu pensei nas várias variáveis e acabei não usando. deixei pra depois. deixo tudo pra depois. até você eu deixei.

pragmático, segundo o dicionário, é "aquele que contém considerações de ordem prática". foi assim que você me quis e teve, foi assim que você decidiu em conversa rápida que me amava e não amava a outra, e aí eu concordei com você que eu te amava e ficamos juntos. você não me deixou relativizar e foi melhor assim.

hoje estamos deitados na sua cama e você encosta no meu ombro dizendo o quanto o seu trabalho é idiota, mas que não tem problema porque ele te dá dinheiro. eu sorrio dizendo que nunca pensei que além de gostar de um trabalho ele pudesse ganhar dinheiro. você me diz que a vida tem lá seus jeitos estranhos. 

você me olha e sorri e eu acho que envelheci quinze anos nos últimos dois anos. 

eu já tenho a sua idade e você não sabe. 

você morde o meu pescoço enquanto eu falo e eu percebo que somos um casal besta como qualquer outro casal besta que divide a cama numa quarta feira à noite depois de um dia cansativo de trabalho. podemos acabar semana que vem, quando eu começar a achar essa sua mania de morder meu pescoço enquanto eu falo bem irritante. talvez ainda duremos dois ou dez anos e casemos, mesmo acreditando que o casamento é imoral. 

confesso que já pensei que se eu tivesse que refazer a escolha, a escolha sempre seria você, mas acho isso um pensamento besta. acho que somos meio bestas quando estamos apaixonados, você me disse isso uma vez que me ligou no meio da tarde pra ouvir minha voz. você diz que eu tenho uma voz diferente quando falo com você, mas eu não sei que voz é essa. às vezes suas mensagens não fazem sentido algum, como aquela que pergunta se dostoiévski é um clássico porque tinham te perguntado se você gosta de clássicos. te respondi que era. você me replicou que não queria ser um desses caras que gostam de clássicos, mas certas coisas são inevitáveis.

nós dois somos tão diferentes do resto do mundo, mas fazemos compras juntos e cantamos em uníssono as músicas que amamos nos shows das nossas bandas preferidas. nós dois viramos um clichê enorme todas as vezes que não queremos ser clichês. 

você tem um jeito de me olhar que só acontece quando você me olha e eu te olho e sorrio de um jeito que só faço com você. eu só gosto de sorrir quando te sorrio e isso já faz de nós mais um casal besta no meio de um emaranhado de outros casais bestas, embora você nunca diga que quer ficar comigo pra sempre porque considera isso sem sentido. eu também considero então a gente não diz isso, mas diz 
toda vez que diz que "você é a única pessoa com quem eu gostaria de estar agora". 

você me olha e sorri e eu acho de um jeito besta que você é uma versão estranha de mim vivendo em outro corpo. 

quando discordamos e eu gosto, penso de um jeito besta que você me complementa. 

"eu gosto muito de conversar com você", foi nosso primeiro "eu te amo" não dito, depois de nove horas ininterruptas de conversa. 

Eu odeio clichês, mas soube que eu te amaria da primeira vez que percebi que seus olhos formam rugas quando você sorri. Seu jeito de não acreditar na vida combina com o meu e me faz suspirar doído. Amor dói. Amor dói e eu odeio seus dentes certinhos.

Me olho no espelho do seu banheiro e te vejo me olhando de volta.

Sei que envelheci quinze anos nos últimos dois anos, mas você me olha e sorri com seus dentes certinhos e eu quase acho, besta, que eu envelheci tanto foi pra te encontrar. 

Mas nós podemos acabar depois de amanhã, quando você detestar o fato de eu cantar sempre a mesma música. E então eu aproveito enquanto você ainda me sorri de um jeito diferente do que sorri pro resto do mundo. Você me olha e sorri. Por hoje, estamos a salvo.

20.4.13

Canção pra quando você voltar


"E quando a noite passa por mim
Eu rego o seu jardim
Você já vai voltar"
(Canção pra quando você voltar - Leoni) 


Seu avatar permanece na coluna esquerda mesmo em sua ausência. Jeito estranho que você tem de ser lembrado sem saber. Não precisava ter foto pra que eu me lembre que faz uns dias que você não aparece. Uns dias que você não me conta da sua vida e que eu não sumo. Eu reapareço, você some. Balé desencontrado das nossas pernas compridas. A vida tem poucos denominadores comuns. Longe de mim você tem seus afazeres, toda uma vida, uma casa, um quarto com uma janela que dá pra uma escola onde eu ainda lembro que as crianças usam calças vermelhas. Um dia presta atenção que o uniforme é feio. Todos os uniformes de colégio são um pouco feios, imagino que o seu também era, embora pouco saiba sobre você-criança que nasceu dois anos depois de mim, depois que nem existia mais muro de berlim e divisão das Alemanhas. Quando você nasceu o Pedro Bial já tinha voltado pro brasil e você tinha três anos na copa de 94, razão pela qual não deve ter imitado meio besta o galvão gritar "tafarel" (só se tiver memória falsa). Eu já tinha cinco anos e já sabia ler gibis da turma da Mônica, porque aprendi a ler muito cedo, porque aprendi várias coisas cedo demais e outras tarde demais. Você trabalha, e eu não. É por isso que às vezes penso se você tem muito o que fazer, quantos trabalhos pra entregar até segunda feira, quantas noites em claro, quantas olheiras, a quantas aulas você chegou atrasado? Quantos cigarros você teve que acender pra aplacar a tensão? Alguns vários, imagino, e às vezes ao ver fumantes lembro que você voltou a fumar e acho uma mania besta porque se você se visse fumando de longe ia perceber que não combina tanto assim com você, por mais que você tenha um ar descolado (que todos tentam ter, diga-se de passagem), ao acender e tragar essas milhares de substâncias tóxicas. 

Os cigarros, assim como as garrafas de bebida as quais recorro semanalmente pouco podem fazer para melhorar a vida, que é, te digo, completamente inevitável e imprevisível. Não acho que você tenha paciência pros meus arroubos filosóficos. Não agora. Sei, que você tem muito a fazer, sempre muitos trabalhos e talvez nem tenha tempo de ler esse texto e todos os outros que vieram antes desse, mas é que eu sei - e você deve saber também - que os textos são feitos de intenção e pouco importa o tempo em que vão ser lidos, desde que eles sejam lidos. Em distância, essas palavras são sempre o que posso fazer por você. Talvez, e digo talvez como quem encara uma possibilidade (porque podia ser que sim, e podia ser também que não), se não houvesse distância entre nós eu soubesse mais dos seus trabalhos, dos seus textos, visse as suas olheiras e olhasse com ar de enfado todas as vezes que você acendesse um cigarro. Talvez também você não tivesse tempo pra sair, ou pra visitar a minha casa. Eu, que te faria um bolo, que sei fazer café coado, que ficaria te contando bobagens pra ver se te distraio e te ouviria, sempre atenta, contar das suas aulas intermináveis, dos seus projetos que terão de ser refeitos, dos seus trabalhos de prazos curtos. Ia até gostar da função de ouvir desabafos oferecendo bolo e café, talvez uma janta (e saiba que eu sei cozinhar, embora você nunca tenha provado da minha comida), talvez até contasse feliz os minutos antes de ouvir o interfone tocar já antevendo que era você a visita a aparecer cansado e com olheiras de quem não dorme direito faz dias, porque a vida nos açoita com o chicote das obrigações. 

Eu também teria meus problemas pra contar, porque os trabalhos são chatos mesmo quando são bons e os professores de mestrado são desinteressantes mesmo quando são maravilhosos, porque a vida é chata na maioria das vezes. Passaríamos muito mais tempo no metrô e nos livrando de obrigações corriqueiras do que sendo felizes, mas há de se saber, depois de certo tempo vivido, que ser feliz é coisa que se faz nos intervalos e, às vezes, quando estamos distraídos. "Sentir é estar distraído", já dizia o Alberto Caeiro, o heterônimo campestre de Fernando Pessoa, que não sei se você gosta ou prefere o Álvaro de Campos, ou quem sabe o Ricardo Reis. Ainda há coisas que eu não sei sobre você, porque na verdade ainda guardamos a mania de nos encontrar corridos ou em lugares cheios de gente. Não que eu precise saber tudo, você também não sabe tanta coisa assim, mas às vezes fico pensando pequenas coisinhas sobre você. Essas pequenas coisinhas que às vezes pensava enquanto te via dormir porque seu ronco não me deixava adormecer. Onde será que estaremos daqui dois, cinco ou dez anos? Será que seremos escritores de sucesso, ou será que teremos vida besta de todo mundo, essa vida de acordar às sete da manhã e chegar em casa perto da hora do jornal nacional? Estaríamos juntos? Nos falando com regularidade? Nos odiaremos? Casaria eu com um homem que nunca nem havia aparecido na história e que cursa economia e que pouco lê? Estaria você com alguém otimista, sorridente, sem arroubos de desalento com a vida e que acredita em Deus e te pediria pra casar na igreja, ou pelo menos em presença de um padre? Invento histórias. Essa é a minha ocupação. Invento histórias pra mim e pra você, invento histórias bonitas e trágicas, invento você me fazendo feliz e me fazendo sofrer. Invento porque essa é a minha ocupação.

E penso, o que será que você está a fazer quando some, e aí te imagino cansado, olhando com a mão segurando o queixo pro computador, limpando os óculos de quando em vez, saindo pra cozinha de vez em quando pra tomar água e comentando qualquer coisa com seu colega de casa que me odeia tanto quanto as pessoas de bem odeiam o marco feliciano. Leio as colunas do pondé e me pergunto se você gostou. Às vezes rio porque sei que sim. Guardo trechos de livros que leio pra comentar com você mais tarde. Guardo as minhas novidades pra te dizer mais tarde. Sei que logo também não vou ter tempo porque tenho um mestrado pra entrar, concursos pra fazer, uma vida inteira pra resolver. Aprendi a ler na copa de 94, mas sou lerda com o mundo. O mundo não me representa, você se dá bem melhor do que eu com ele. Ao menos você trabalha, e eu não. Trabalha e acende cigarros cuja fumaça não me incomoda porque estamos longe demais. Quilômetros e quilômetros, é como se houvesse um muro de berlim e cada um de nós estivesse numa parte da Alemanha. Um dia, eu sei, logo, parece, o muro cai. Não que isso seja parte determinante da história toda. É só um muro, afinal de contas. Estamos os dois dividindo a mesma Alemanha. Próximos, de alguma forma sempre estivemos assim meio perto. O resto todo é isso, é você que faz falta quando some porque de certas pessoas a gente tarda a esquecer. Saiba que fico aqui, de longe torcendo para que seus afazeres sejam cumpridos e que seu cansaço não te esgote demasiado. Fico escrevendo um livro que já odeio e que acho que continuo só porque você disse que um dia queria ler e mostrar pra todo mundo. Gosto de você, você sabe, é tudo que tenho a dizer por hora. E se você me pergunta "gosta como?" eu te replico com "gosto, ué" e fico assim achando chato às vezes não poder te chamar pra um café e depois te levar na livraria pra você me contar dos livros que gosta e eu ficar quietinha porque gosto de ouvir você falar. Fico achando chato não poder rir quando você olha no espelho e fica triste porque está ficando careca e vai ficar careca e daí quem sabe deixe de ser tão atraente para as mulheres - uma de suas grandes preocupações. Acho chato, e só.

Seu avatar permanece na coluna esquerda e eu sei que um dia você volta querendo que eu leia qualquer coisa pra saber se "ficou bom mesmo", e eu sempre acabo dizendo que ficou sim, exceto quando resolvo desgostar dos seus poemas e você diz, convencido e trouxa, que é ciúme e a verdade é que de repente percebo que parei de querer te guardar numa caixa ou num vasilhame ou seja lá onde eu queria te guardar pra que você não se fosse porque percebi que, assim como eu, você é um bicho chato e solto que só fica quando quer e vai embora quando a gente quer-que-fique. Então que seja, espero que seu dente do siso tenha parado de doer. Sei que dói porque te li, sei que você sabe de várias coisas sobre mim porque me lê e então deixo esse texto meio ruim aqui pra quando você voltar, que eu sei que você volta, que eu sei que a gente se sente as ausências mas não admite nada porque a gente é chato e solto, porque a gente gosta de inventar histórias, e que mesmo com olheiras fundas e afazeres a gente se torce e se admira, em meio a essa vida imprevisível e esse balé desencontrado das nossas pernas compridas. 

18.4.13

canção de amor clichê para se cantar bêbado


Eu sabia que o diabo era a paixão. Diabo forte, demônio mesmo; encosto. A paixão devia ser exorcizada de todos nós antes que tomasse conta do corpo, fizesse o coração disparar, permitisse que a gente lembrasse da pessoa ao ouvir uma música ou ao ver alguém que anda de um jeito parecido com o dela. O diabo, se fosse um sentimento, seria a paixão. Paixão é ruína, é dor, é morte. Tudo vai bem antes dela, e se tudo der certo, tudo irá bem depois dela também. Amor é mais brando. Amor é calma, é tomar café da manhã junto, é ter certeza do estar. Paixão é urgência, é chato, é o coração pulando feito bateria de escola de samba, é um eterno olhar no celular pra ver se chegou notícia. A paixão é uma mensagem mal escrita que grita desesperada e cheia de erros de ortografia: "estou aqui!". A paixão é desajeitada, corrói, pede por cigarros, por mais chocolates, por uma dose de pinga antes dele chegar e você não saber o que dizer. A paixão é tonta, fica bêbada, tropeça nos próprios pés e descobre, sem ele ter dito, qual é o bolo preferido dele pra fazer numa ocasião descompassada. A paixão tem ciúmes, é muito amostrada, não traz paz e, se não descamba em amor, acaba na sua própria ruína. Eu sabia muito bem o que era a paixão. Tinha acabado de passar por ela e não queria mais. A paixão era o Diabo. E eu andava com uma cruz e sal grosso dentro da bolsa pro caso dela resolver atracar em mim de novo. "Paixão é coisa que mata", já dizia a minha vó, sábia e perspicaz, quando percebeu meu primeiro arroubo de paixão. Matar não matou, mas me deixou de cama por uns quatro dias enquanto ela me tratava a chá e bolo de fubá. "Essas coisas destrói com o coração da gente, fia". Ela tinha razão. Nunca soube se ela tinha sido apaixonada pelo meu vô ou se ela falava isso de alguma outra paixão que não pode viver pra que virasse amor. Em todo caso, seja lá como ela tinha aprendido isso, ela tinha razão: essas coisas destrói com o coração da gente.

Não vou em festas, não gosto de festas, evito festas, mas naquela eu fui. Fui enquanto repetia pra mim mesma durante todo o trajeto do táxi que não deveria ir. Torcia pra algum evento inesperado acontecer e eu poder enfim me convencer que eu não podia ir, era o universo que tinha dito que não. Pedia baixinho por acidentes, trânsito horroroso, chuva torrencial no meio do caminho, blitz, acabar a gasolina do táxi. Qualquer impropério servia. Não aconteceu. O taxista foi pelo caminho mais curto e não houve trânsito, blitz, acidentes e nem ao menos uma chuvinha dessas de fim de tarde. Tudo maravilhoso. Detesto ir em lugar que conheço pouca gente, eessa era uma daquelas festas em que eu não ia conhecer nem cinco pessoas. O porteiro atendeu simpático, acho que também um pouco cansado, porque imagino que deva ser um saco explicar pra todo mundo que "você entra naquela segunda porta lá, aí sobe o elevador, é o sexto andar, pode ir, ela tá esperando". Chega uma hora que você deve querer escrever num papel e mostrar pras pessoas ao invés de repetir pausadamente a mesma frase. Agradeci, entrei na segunda porta, abri o elevador, me olhei no espelho. Sempre me olho no espelho em elevadores, e raríssimas vezes me encontro sem essas olheiras profundas, sem a maquiagem um pouco borrada, sem o cabelo estranho. Também, não podiam esperar muita coisa de mim. Eu, fodida, conciliando mestrado e emprego, nada de tempo pra sair, um emprego de bosta desses que sugam a alma da gente e dão olheira. Tinha vindo direto, não dava pra esperar que eu estivesse deslumbrante. Além do mais, não gosto de festas, evito festas, nunca tem ninguém interessante e eu sempre acabo com aquele intelectual esquisitão meio bêbado que acaba te agarrando num canto depois de perguntar se é verdade mesmo que você viu "cenas de um casamento" inteiro. Vi sim, claro que vi, vi a versão estendida, dois dvds, quase cinco horas de filme. Sou mesmo genial, superculta, superlegal, e vi um filme enorme do Bergman inteiro. Se ainda fôssemos crianças, eu sempre replicaria esse povo que se acha melhor do que os outros porque viu tal filme com "grandes bosta". Era isso que eu falava toda vez que uma menina aparecia com a nova sandalhinha melissa antes das outras meninas. "Grandes bostas". Se vangloriar de ter visto um filme e lido alguns clássicos não é lá muito diferente de se achar legal porque comprou a nova sandália melissinha antes das outras meninas do colégio. Aliás, talvez a sandália melissinha tenha mais status-quo.

Sexto andar, avisto a porta: apartamento 606. Quase penso que devia dar meia volta e ir embora, mas daí também não, né? Já tinham me anunciado, já tinha gastado vinte conto de táxi pra chegar até ali. Agora que estava ali, ia. Toquei a campainha e Fernanda me atendeu solicita. "Ai, você veio, que legal!". Era sempre assim, sempre surpreendente quando eu ia mesmo numa dessas festas, e mais surpreendente quando eu não chegava quase no fim, bêbada e segurando outros três desconhecidos que eu encontrei no bar pelo braço. Fernanda era sempre a Fernanda. Receptiva, meio burra, mas cheia de amigos intelectuais. Nos conhecemos na faculdade, eu sou fodida e ela é jornalista de moda numa dessas revistas legais. A Fernanda mora num apartamento grande, desses que tem duas portas e que o porteiro tem que explicar como que faz pra chegar no elevador. Eu não vivo tão pior que ela, só que eu não gosto de apartamentos legais e gasto todo o meu dinheiro em livros que ficam empilhados pelo apartamento todo e em viagens para lugares que ninguém faz muita questão de ir. Eu e a Fernanda somos muito amigas, embora eu deteste bastante as festas dela e os amigos dela, principalmente os que mexem com moda. É um povo pedante. E sempre tem um, ou vários intelectuais esquisitos que acabam se atracando comigo no canto da festa ou no quarto da Fernanda depois de eu vomitar cinco ou seis referências interessantes que eu tenho porque tenho. A Fernanda inveja um pouco minha vida, mas sempre fica falando que eu devia ter um namorado e, não raro, ela me apresenta uns caras amigos dela que "tem tudo a ver com você". Nunca tem, sempre uns caras péssimos, uns caras que usam chapéu ou suspensório e aí eu acabo ouvindo deles sobre uma peça "ma-ra-vi-lho-sa" que estreiou em um desses espaços culturais meio alternativos, ou senão sobre uma nova poetisa "en-can-ta-do-ra" que tem uma "literatura fortíssima" e que é sempre uma merda, essas poetas da nova geração são todas horrorosas, eles que não sabem. Mas daí não falo nada, até concordo, cito uns versos e a gente acaba se agarrando, indo pra minha casa e depois eu nunca mais ligo pro cara. Fernanda me dá bronca posterior dizendo que "ai, poxa, ele tinha gostado de você". Não tinha. Eu nunca gostaria da literatura fortíssima de poeta contemporânea nenhuma, e ele tinha gostado dessa menina, mas a vida é sobre fingir um pouco, também. 

Fernanda me oferece uma bebida, me bota pra sentar no sofá, aquele monte de gente. Deviam ter umas quinze ou vinte, e eu só conhecia o de sempre. O marcelo, que era gay e os amigos do marcelo, sempre um pouco chatos, mas engraçadinhos. Acontece que dessa vez tinha um elemento estranho na festa chata da Fernanda. Um cara, lá do outro lado da sala tinha uma rodinha de gente perto dele. Imaginei logo que devia ser algum papo chato sobre um novo escritor que eles tinham descoberto, ou sobre um novo conceito de moda, que é sempre um cara que diz que vai fazer moda sustentável e contrata uns bolivianos pra costurar os tecidos orgânicos pra ele no fundo de fábrica, mas as pessoas acham incrível. Não era. Cheguei perto e o tal menino falava sobre a pec das empregadas. Dizia meio alterado que é uma bobagem que se ache que elas não precisam de direitos. Daí ele tava explicando que pagava junto com os pais dele a aposentadoria da empregada dele. Eles contribuíam lá com uma quantia x pra que ela tivesse direito a se aposentar, até porque ela já vinha ficando velha e não ia ter condições de trabalhar tanto tempo mais. Ele parecia o único lampejo de vida inteligente na festa da Fernanda nos últimos sei lá, cinco anos. Suspirei fundo. Não queria ouvir mais nada porque das duas uma: ou aquele era o único lampejo de sobriedade dele e, minutos depois, ele começaria num papo sobre o quanto os artistas contemporâneos são maravilhosos, ou eu me encantaria por ele e minha vó já tinha alertado que "paixão é coisa que mata". O diabo era se apaixonar. Não dava, não podia, e eu nem acreditava nisso de destino. A vida é um negócio inevitável que quanto mais você tenta controlar, mais a lógica escapa pelas mãos. Através desse raciocínio, não fazia o mínimo sentido a sensação que eu tive quando ele cruzou seus olhos castanhos nos meus. Era uma terrível sensação de inevitabilidade: se eu conversasse com aquele cara, fatalmente eu me apaixonaria por ele. Apaixonaria de um jeito terrível, de ruína mesmo. Me apaixonaria sem volta e sem escape. E não podia: essas coisa destrói com o coração da gente. 

Resolvo que vou ficar sentada no sofá e que não vou puxar assunto, não vou oferecer bebida, não vou perguntar pra ele se ele já provou aquele salgadinho de queijo porque eu queria muito provar, mas vai que não é bom, a gente nunca sabe esses salgadinhos de festa, né? Não ia. Além do mais, ele era um desses caras bonitos, sabe? A barba grande, ruivo, a camisa xadrez, o tênis estilosinho. Ainda vinha com essas idéias meio intelectuais, meio de esquerda e então já tinham pelo menos umas sete meninas na fila inevitavelmente apaixonadas por ele, aquela altura do campeonato. Peguei uma cerveja, uns salgadinhos estranhos que acho que eram de tomate seco. Eu nem gosto de tomate seco, mas festa tem mania de tomate seco. Tomate seco e rúcula, péssima combinação. Peguei o salgadinho, a cerveja, sentei perto da sacada e resolvi que ia ficar lá pra sempre, até algum chato vir puxar conversa comigo e eu ter que concordar que, realmente, bela poetisa essa da nova coletânea de novos poetas, "poemas fortíssimos". Ele não viria conversar comigo, e eu estaria a salvo. Ou ele viria conversar comigo e falaria qualquer asneira e eu não me apaixonaria mais por ele. Ia ser somente uma impressão falsa e tola de uma pessoa que no alto de seus vinte e cinco anos, já deveria ter parado de acreditar em coisas vagas como "sexto sentido" "sentimento ruim" "inevitabilidade das coisas". Olhava São Paulo da sacada da Fernanda. De cima parece a cidade mais habitável do planeta, apesar da gente não ver estrela nenhuma. de cima não tem trânsito, não tem mendigo te pedindo dinheiro na rua, não tem gente alternativa fazendo protesto no vão do masp. De cima é calma, luz, e um ar gostoso de comecinho de noite - sempre um pouco frio. 

Penso que estar sozinha do meio de um monte de gente é uma das formas mais genuínas de solidão. Penso e suspiro, olhando São Paulo, mais de cinco anos que moro aqui, desde que vim cheia de esperança do interior fazer faculdade de jornalismo. A vida é mesmo inevitável e acho que eu nunca ia pensar que acabaria como jornalista de economia num dos jornais mais caretas do país. Eu esperava coisas mais emocionantes, ser correspondente internacional, cobrir o caderno de cultura, fazer crítica de cinema, crítica literária, roteiro gastronômico. Nada disso. Sexta feira à noite e eu tinha acabado de fechar uma matéria sobre a alta de juros. Tudo sempre em tom fatalista. Os leitores ainda acreditam em esquerda e a gente nunca pode deixar de lado o caráter fatalista das decisões de um governo de "esquerda". O jornal careta, eu e todo mundo sabe (ou devia saber) que nem existe isso de esquerda, mas a gente tem que fingir. Aos vinte cinco anos, fingir era o que eu sabia fazer de melhor. 

"Tem alguém sentado aqui?". Saco, já tinha vindo um pentelho acabar com a minha solidão. A Fernanda, a Fernanda bem que podia chamar menos homem solteiro pra essas festas. Eu que não devia ter vindo. Devia estar em casa pedindo pizza e vendo filme na tv. Mas não, quis vir. Lá vai eu me atracar de novo com um intelectual de suspensório. Podia pelo menos esse não gostar de literatura contemporânea. Prefiro os que gostam de cinema nacional. Cinema nacional é quase sempre ruim, mas a gente sempre consegue conversar sobre o eduardo coutinho, se tiver alguma sorte. Daí é melhor do que falar sobre as novas caras de literatura contemporânea. Se bem que às vezes eles querem falar daquele tal de matheus, que faz uns filmes ruins e aí eu prefiro a literatura contemporânea. "Barba ensopada de sangue". A gente vive num país em que esse é o livro mais aclamado pela crítica. E pelos intelectuais da festa da Fernanda. Virei pro lado já psicologicamente preparada pra aturar uma conversa chata sobre intelectualidades diversas, quando olho pro lado e é ele. Ele, aquele dos olhos castanhos, que pagava aposentadoria pra empregada. Ele era mais bonito de perto. Saco. Eu acho que eu podia me apaixonar por ele, se eu não evitasse ao máximo.

"Não tem ninguém sentado aí, não". Ele sorriu. Tinha os dentes certinhos. Daqueles dentes de aparelho. De perto ele era uns dois centímetros mais baixo que eu, e tinha umas ruguinhas de expressão do lado dos olhos. Acho que é porque ele era muito branco. Velho ele não aparentava ser. No máximo uns trinta e dois, mas isso já não era velho quando se tem vinte e cinco. Engraçado isso, quando chega essa idade em que gente com mais-de-trinta não é mais velho. "Por que você tá sentada aí? Toda a festa tá acontecendo pra lá". Bem, ele ainda podia ser desses caras que gostam de festa e que não gostam de gente sozinha. Devia ser uma impressão tola, eu não ia me apaixonar por ele. "Não gosto de festas, não venho a festas e prefiro estar onde a festa não está acontecendo". Ele sorriu. Sorriu como quem sorri pra aquelas crianças que dizem bobagem. Sorriu como quem sorri pra uma criança que não sabe nada da vida e jura de pés juntos que as nuvens ainda são feitas de algodão. Sorriu com um jeito de quem faria um cafuné na minha cabeça e depois diria "vocês crianças tem cada idéia". Não disse isso, mas foi quase. "Então você ainda está naquela idade de odiar festas, convenções sociais, os papos das pessoas e prefere se isolar no seu mundo, esse, extremamente mais interessante?". Disse e levantou a sobrancelha. Os olhos eram bem castanhos mesmo e ele tinha um sorriso certinho de aparelho. O diabo mostrava seu tridente e eu sabia que qualquer resposta que eu desse a ele ia soar estúpida. Eu, perto dele, era estúpida. Visivelmente estava lidando com um daqueles caras terríveis que não só parecem, mas são mais inteligentes que você. Ele era. Dois passos pra frente e era o abismo. Eu podia me apaixonar por ele. "Não é exatamente isso, mas também pode ser. Os vinte e cinco anos trazem consigo alguma prepotência, talvez uma certa enjoança. Mas eu gosto de ficar sozinha". Ele sorriu baixinho. 

"Te entendo, também gosto". Sorri também, mas preferi parar de olhar pra ele, pros tais olhos castanhos. Melhor assim. Quem sabe ele enjoava do assunto, levantava, ia pra "onde a festa está acontecendo" e tudo bem. A vida é imprevisível e não acontecer nada entre nós era tão possível naquele momento quanto casarmos três anos depois e ter um filho. Tudo pode. Só que ele não parou.

"Já percebeu que São Paulo aqui de cima parece uma cidade extremamente habitável?"

"A cidade mais habitável do mundo, talvez, estive pensando antes de você chegar"

"Daqui de cima não tem trânsito, nem mendigo pedindo dinheiro, nem taxista louco que anda na contramão. Nem tanto barulho. O chato é que não tem estrela. Lá no interior, onde a minha vó mora, dá pra ver as estrelas. Mas eu nasci aqui. Pra mim, ver estrela é um luxo de férias. Quando será que foi que a gente achou aceitável ver estrela no céu como luxo de férias?"

Pra essa gente de São Paulo, todas as outras cidades são interior. Lá da onde eu venho a gente fala "cidadezinha" "outra cidade", mas interior mesmo é lugar que tem vaca, boi. Ele era paulistano. Paulistano que doía o sotaque. O jeitinho, todo paulistano. Devia morar em moema. Esses paulistanos assim sempre moram em moema. Quem vem de fora não sabe pra onde ir e vai morar em perdizes onde tudo é caro e as padarias cobram cinco reais por um pão de queijo. Mas é perto do metrô. Eu já morei em perdizes, agora morava perto da paulista porque era perto do trabalho. Morar perto do trabalho é uma exigência pros paulistanos sem carro e eu era uma interiorana sem carro. Da onde eu venho dá pra ver estrela. Queria eu sentir saudades das estrelas de lá.

"Não sei quando foi. Da onde eu venho dá pra ver estrela. Acho que devo ser do interior, também"

Ele sorriu com os dentes certinhos e chegou com a cadeira mais perto. Quando ele sorri, aparecem umas ruguinhas do lado do olho, mas não acho que ele seja velho. Deve ter no máximo uns trinta e dois anos. Também não convém perguntar.

"Deve ser bom não ter estrela como luxo de férias, acredito eu. Mas deve ser chato não ter mercado vinte e quatro horas. A gente paga o preço das coisas, você não acha?"

"O preço da cidade onde tudo acontece é não ter estrela"

"É um preço meio caro, se você for ver. Mas o preço de tudo é um pouco caro. A gente paga o preço das escolhas que faz, as coisas tem conseqüências. Tudo tem"

Agora eu já olhava pros olhos castanhos dele e ficava bastante receosa. Ele dizia as coisas com uma certeza estranha. Uma certeza de quem sabia do que estava falando. Os olhos castanhos eram mais castanhos que os meus, quase pretos. E no meio da barba ruiva dava pra ver uns pelos loiros, perdidos. Podia ouvir o diabo chegando e a minha vó dizendo que paixão é coisa que mata. Talvez eu só estivesse acreditando num desses sentimentos vagos que a gente acredita de vez em quando. Talvez eu devesse ter evitado mesmo aqueles olhos castanhos.

"Por exemplo, você ter sentado aqui ao invés de continuar na festa tem o preço de você não estar aproveitando a festa e acabar ficando com os salgadinhos ruins e a cerveja quente"

"Mas tem a vantagem de ter te conhecido. A vantagem de não aguentar gente chata. A vantagem de olhar esse céu sem estrela"

Sorri, mas eu não tinha os dentes certinhos. Certamente ele não me achava genial, ou coisa assim. Eu era mais uma. Ele deve conhecer várias meninas interessantes todos os dias. Tem esse jeitinho dele de paulistano, de quem sabe puxar conversa. As frases, todas as frases bem colocadas. As ruguinhas do lado do olho quando ele ri achando graça de verdade. O diabo. O diabo era ruivo. 

Na sacada da Fernanda faz frio, e eu sempre insisto em ir às festas de vestido. Ele colocou a mão na minha coxa numa tentativa esperta de aproximação. Devia estar acostumado. Deve ser uma cilada sem fim.

"Você parece estar com frio"

"Tenho essa mania besta de vir de vestido em todas as festas e esquecer que faz frio em São Paulo de noite"

"Gosto de mulheres de vestido"

"Não uso vestido porque os homens gostam, uso porque não gosto de sair de calça de noite. Frescura minha"

"Não sei porquê, mas desconfiei que você ia me dar uma resposta dessas. Divide a conta do motel também?"

"E a do restaurante"

"Mais um exemplar dessas horrorosas mulheres feministas que acham que tem o direito de ser donas da própria vida"

Eu fiz um olhar de indignação, mas eu sabia que ele não era machista. Era piada, uma dessas piadas bem feitas. Ele me sorriu com as ruguinhas do lado do olho. Eu gostava das ruguinhas. Colocou a mão na minha coxa mais uma vez e passou a mão no meu cabelo.

"Você sabe que eu fui canalha só pra provocar, né? Gosto desses exemplares horrorosos que acham que tem o direito de ser donas da própria vida. Tem que ter coragem pra ser mulher e ser assim, não sei se eu teria"

Eu sabia. Sorri.

"Desconfiei que tinha sido piada, e é bom que tenha sido. Caso contrário levantaria e iria embora"

"Não esperaria outra postura. Gosto de você"

Ele era rápido. Provavelmente nem tinha gostado tanto assim de mim. Eu gostava dele. Dos olhos castanhos, da ruga do lado do olho, do jeito de sorrir com os dentes certinhos. Gostava da barba que tinha fios ruivos e do jeito dele de pegar no meu cabelo. O diabo. Aquilo era o diabo.

"Também gosto de você"

Sorrimos.

"Tenho una proposta estranha pra você e você tem todo direito de não aceitar ou de sugerir outra coisa, mas é que eu acho que você é o tipo de pessoa que aceitaria esse tipo de coisa, e não entenda tipo aqui como "tipinho", mas, enfim. Essa festa tá chata, essas pessoas são insuportáveis, a comida já acabou. Eu gostei de você, você gostou de mim. Eu moro sozinho e acho que você também, mas escolher a casa de um dos dois é deixar um território conhecido pra uma das partes. E se a gente fosse agora pro motel, pagasse uma pernoite e fizesse o que a gente tivesse vontade? Eu quero dizer, ao chegar lá a gente conversa, ou a gente faz sexo, ou a gente faz sexo e depois conversa, ou a gente faz sexo e não conversa nada, ou a gente só conversa. Eu gostei de você, eu tô com meu carro. Eu deixo você pagar metade"

Pronto. Não pode aparecer um cara legal que ele vem com proposta estranhona. Motel. Agora o cara quer me levar pro motel e diz que a gente pode ficar a noite inteira conversando. Nada faz sentido. Se bem que, ele podia ter me mandado pra casa dele e na casa dele sim ele podia fazer o que bem entendesse comigo. No motel dá pra gritar, né? Esmurrar a porta. Além do mais, a Fernanda só chama gente que ela conhece pra casa dela porque morre de medo de assalto. Ela não ia chamar um louco que estupra meninas no motel e rouba as carteiras delas. Não ia ter como. Ele parece ser o último lampejo de vida inteligente, eu sou uma mulher livre. Sou? Não sou? Livre? Será? Ir parar no motel com um cara desconhecido só porque ele tem essas rugas bonitinhas do lado dos olhos e por causa desse sentimento besta de que eu ia me apaixonar por ele? Diabo, já está acontecendo. Eu tô cogitando ir. Ninguém em sã consciência faz uma coisa dessas. Imagina a manchete? Jornalista de economia do jornal careta de São Paulo é encontrada morta em motel. Minha mãe ia ficar louca. Coitada. Acha que a filha tá trabalhando sério em São Paulo e ela tá indo pro motel com desconhecidos. Dane-se, vou. O número da polícia tá na discagem de emergência. Morro de medo de estupro. Eu não ia morrer.

"Tudo bem, eu vou confiar em você. Vamos"

Ele sorriu e dessa vez as rugas apareciam mais. Acho que ele parecia feliz de fato. Demos tchau pra Fernanda, que me olhou com aquela cara de "espero que dessa vez dê certo". Eu não sabia dizer. Entramos no carro dele e ele comentou que eu parecia assustada. "Acho que nunca fiz isso antes". "Se te tranqüiliza, eu também não". Sorrimos. A rádio do carro tocava Smiths. Eu gosto de Smiths, ele também. Nós dois gostamos muito do Thom Yorke, e ele não gosta muito de literatura, menos ainda da contemporânea. "Li umas coisas, mas não sou louco de livros, não". "Você tem cara de quem lê bastante". "Leio". Ele gostava de filosofia, mas encasquetava com o Nietzsche. Eu preferia o Sartre, embora soubesse que o Nietzsche é muito mais interessante. Os gostos, às vezes, não fazem muito sentido. Ele não vomitava referências, mas tinha um jeito lúcido de falar sobre qualquer coisa. Riu do meu jornal careta. "Lá eles acreditam em esquerda, né? Mas são de direita". Era engraçada a voz que ele fazia quando estava sendo irônico. Era um tom de voz. Uma coisa dele. "Eles não acreditam em nada, quem acredita são os leitores". Ele sorria e as rugas apareciam. "Se eu te contar que eu vim ver o Nirvana aqui, isso mostra que tem uma lacuna enorme de tempo entre nós?" "Depende com quantos anos". "Doze". "Ninguém vai ao show do nirvana aos doze anos". Ele me olhava com uns olhos de desprezo. "Você tem uns conceitos muito formados, sabe? eu vim, meus pais me trouxeram". Agora era eu quem sorria. O diabo,ele era o diabo. "Tenho trinta e um anos, e você?" Vinte e cinco, a lacuna temporal entre nós podia ser enorme, mas ambos estávamos vivos quando caiu o muro de berlim". "Exceto pelo fato de que eu já jogava bola e você mal sabia formar na cabeça o conceito que alemanha era um país". 

Eu não devia ter continuado a olhar para aqueles olhos castanhos pela razão que agora ficava muito clara. Dois passos pra frente e era o abismo. Ou o motel. Os motéis são sempre iguais com aqueles quartos com ou sem piscina, com aquelas duchas estranhas, seus monte de botões. A rádio do motel tocava uma músicas legais. Depois percebi que era porque a gente tinha colocado na mesma do carro. Ele abriu o frigobar e me ofereceu cerveja. Bebemos. Eu parecia conhecer ele há anos. Tantos anos que até os silêncios não traziam mais constrangimento. Anos, talvez uma outra vida se eu acreditasse nisso. Mas não acreditava. A vida é inevitável. E imprevisível. Tudo que eu sabia é que eu estava numa cama branca de motel com um semi desconhecido. E depois de comentar sobre todas as estranhezas de um quarto de motel "é muito botão, eu fico confuso", nos beijamos.

"Talvez se a gente fizer sexo logo e uma vez isso diminua a tensão sexual da conversa"

Deve ter sido a coisa mais idiota que eu já disse, mas ele sorriu com as rugas bem aparentes e isso era sinal de que ele tinha achado engraçado. Sexo é sempre sexo, mas esse tinha alguma coisa de especial. Parecia que, de algum modo, ele já sabia o que fazer. E eu sabia também. Então sabíamos. Sabíamos e fizemos. Não sei precisar com certeza quanto tempo depois, estávamos os dois debaixo dos lençóis do motel conversando. Ele parecia arranjar muitos assuntos e eu tinha a estranha sensação de que a cada vez que ele falava alguma coisa em mim renascia. É como se ele me conhecesse partes a mais do que eu já conhecia. É como se quando ele falasse eu pudesse entrar em contato com aquilo que eu sempre fui. É como se ele conhecesse partes de mim que eu ainda não tinha visto. Era como se reencontrar. Com o quê, exatamente, eu não sabia. Acho que ele não sabia também, mas continuava falando. "Gosto de você", ele dizia e sorria com as rugas do lado do olho aparecendo. Será que quando eu tiver trinta anos também vou ter alguma ruga? Será que quando eu tiver trinta anos ele ainda vai estar presente na minha vida de algum jeito? Eram algumas das várias questões que eu não sabia responder. Algumas ele respondia. Outras era eu. Às vezes ficávamos os dois pensando em questões que nunca vão ter resposta. 

"Você acredita em destino?"

"Não. Acho que é uma justificativa que as pessoas arrumaram pra não ter que ter a responsabilidade pelas suas escolhas"

"Fico pensando que é um jeito de juntar os acontecimentos de modo que eles façam algum sentido"

"Isso também, é mais fácil jogar pro universo a responsabilidade"

"Isso aqui é o que, se não é destino?"

"Minha escolha, sua escolha e a vida acontecendo. A vida é imprevisível. Não dá pra saber o que vem desse encontro"

"Gosto de conversar com você"

"Também gosto. Por enquanto, essa é uma das certezas desse encontro"

"Mas amanhã a gente pode odiar conversar um com o outro"

"Sempre pode"

Ele me olhava com aqueles olhos castanhos e passava a mão no meu cabelo. Eu podia ouvir a minha vó dizendo que "paixão é coisa que mata". Eu sabia que tinha alguma coisa de diferente nele. Alguma coisa que tinha nascido e eu não sabia o que fazer. Era como se eu conhecesse ele de anos atrás. Era como se eu soubesse que teria que ser ele. Mas eu não acredito em destino. Nem ele. Então não podia ser nada. Eu só sabia que se eu fosse pedir alguém, nessas listas bestas que a gente faz de "homem ideal", talvez nem eu soubesse que queria era um homem tipo ele. Eu nunca pediria rugas do lado dos olhos que aparecem quando ele sorri. Também não pediria fios loiros na barba ruiva. Talvez escolhesse alguém mais alto. Meu primeiro encontro ideal não aconteceria no motel. Se eu tivesse idealizado, ele nem teria olhos castanhos. Talvez gostasse mais de literatura. Talvez me abordasse com uma conversa qualquer sobre o livro que eu estava lendo. Mas era isso, afinal. Com ele eu era eu. Ele veio trazendo coisas que eu nem sabia que eu queria. Tinha de ser daquele jeito. Dois passos pra frente e eu caio no abismo. Eu sabia que a paixão era o demônio, era encosto. Eu via ele dormir encostado no meu ombro e sabia que eu não devia ter continuado a olhar naqueles olhos castanhos que eu preferia que fossem azuis. 

A paixão é desajeitada, e eu não vou saber o que dizer pra ele quando ele me deixar em casa. Nem como começar uma nova conversa. Nem ser engraçada e dizer que eu quero ir no cinema e pagar nossos ingressos. A paixão vem como coisa estranha que faz a gente querer chocolate e cigarro, que faz a gente andar de um lado pro outro esperando que exista palavra e horário certo pra se mandar uma mensagem que sempre vai chegar em hora inoportuna e com erros de ortografia. Vou olhar da sacada de casa e lembrar dele me falando de São Paulo sem estrelas. Capaz de eu baixar um disco do nirvana e rir pensando como raios uma criança de doze anos vai num show de rock desses gritando "rape me rape me". Ele já chutava bola quando caiu o muro de berlim e eu nem conseguia formar a idéia de que a Alemanha é um país. Ele nasceu em São Paulo sem estrelas e eu nasci no interior vendo estrela todo dia antes de voltar pra casa. Mesmo assim nos encontramos. Podia não ter acontecido. Tem muitas coisas que eu não sei sobre ele, mas enquanto ele dorme encaixado perfeitamente no meu ombro eu sinto que conheço ele há séculos. Soube desde o primeiro olhar, mas eu não acredito em paixão a primeira vista. Fico querendo encontrar sentido nele e em mim, torcer pra ser feito do destino e ele ser uma daquelas coisas que tem-que-ser porque o que tem-que-ser sempre vinga, só que já não sou esperançosa assim. Só sei que a paixão é o diabo e que o diabo está se apossando do meu corpo. Mas a vida é imprevisível e amanhã a gente pode odiar conversar um com o outro. Sempre pode. Nós odiamos isso na vida, a imprevisibilidade. Eu só tinha uma certeza: essas coisas destrói com o coração da gente.