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9.1.12

Carta para um avô ausente.



Tem sido isso, vô. Vai fazer três anos que você se foi. A vida, aqui, não ficou nem mais doce nem mais amarga - apenas continuou - com o gosto da sua ausência. Choro poucas vezes lembrando de você, porque de certa forma acho que cumprimos tudo o que tinhamos pra cumprir no tempo que nos deram, embora talvez ache que devesse ter conversado um pouco mais com você. Você não me viu dirigir, e nem veria, porque não tirei a carteira até agora. Teria ficado orgulhoso, eu sei, de me ver formada e logo depois trabalhando, mesmo que eu me queixasse de ganhar pouco. Você deve saber também que não fiz ainda nenhum curso no exterior e nem ao menos conheci outros países. Eu sei, vô, que você julgava importantíssima a educação lá fora, se vangloriava contando os feitos dos filhos dos seus conhecidos que tinham ido estudar "no exterior". Pretendo ir, eu juro. Uma pena não poder te mostrar as fotos dos lugares que vou conhecer, e nem te dizer se era muito frio ou muito quente. Você não conheceu muitas cidades, eu sei. Acho que nunca saiu do brasil. Sua relação com o mundo vinha dos livros, da tv, do discovery channel que você sempre gostou de assistir.

Sabe, vô, a vida não é fácil. Me lembro de você dizendo, já ao longo dos seus 93 ou 94 anos que chega uma hora em que viver é meio insuportável. Já deu tudo o que tinha que dar e a gente faz uma espécie de hora extra no mundo. Eu tenho vinte e dois anos e hora ou outra já tenho sentido isso. Tenho comido menos queijo (acho que nunca mais comi queijo provolone), e aprendi - o senhor veja só - a comer porcaria (carne de porco, na nossa linguagem). Como menos torresmo também. O bacon continua o de sempre. Tem coisa que a mãe não faz mais porque lembra muito de você, e daí dói. Torresmo mesmo. Fez uma vez quando os tios todos vieram aqui (temos nos reunido menos com a sua ausência), e nunca mais fez tutu de feijão. Ah, eu aprendi a comer tutu de feijão também, antes eu não gostava. Imagino que tenha começado mesmo pela sua lembrança, mesmo que inconsciente.

Todo mundo continua bem, e eu acho que não seria conveniente lhe contar dos desentendimentos familiares que já te aborreceram tanto em vida. Eles se ajeitam, do jeito que dá, a mãe continua a mais preocupada da família, você não ganhou nenhum bisneto novo e tem estado todo mundo saudável, tirando um tropeço ou outro (é que têm envelhecido, todos). Meu "velho", continua bastante teimoso, e agora velho de fato. Ainda joga futebol todo santo sábado à tarde e torce, fielmente pro são paulo. Enxerga menos, tem os passos mais curtos. Coisas da vida. Eu não estou trabalhando agora, não sei o que eu quero fazer da minha vida exatamente, e às vezes sinto uma agonia que nem as balas butter toffes que costumávamos comer juntos dão conta de acalmar. E você nem me viu crescer, né vô? Me conheceu voltando da faculdade, tendo uma ou outra aula à tarde, sem nenhum compromisso assim, inadiável. A vida adulta é muito pior, bem pior. O remédio é viver mais ou menos como o senhor vivia. Fazer piada do que dá, ser criança sempre que pode, se render a uma pinguinha de vez em quando na hora do desespero. Ou uma coca cola com pastel, se o fígado não mais aguentar por ordens médicas.

O mercado shangri-lá continua tendo ótimos produtos. No natal fizemos bacalhau, lembramos muito de você. Eu lembro de você em tudo, vô. Não assim, esse lembrar de ausência que machuca, mas é que tem tanta coisa minha que eu sei que foi sua. Meu gosto infantil por queijo e salame, meu jeito de descascar a laranja, meu gosto musical (o samba, sempre o samba). Até o meu vício por ler sempre, me informar sempre, meu tino com politica, minha tolerância. Você que lia diariamente os jornais, que assistia os noticiários de tarde e à noite, que criou filhos evangélicos, filhos católicos e filhos que se casaram com testemunhas de jeová porque sabia que a tolerância e o conhecimento eram a chave de tudo. Você, que me incentivava a estudar, que me ensinou a comer coisas boas, que me levava pra comprar caramelos nas lojas brasileiras. Você que lia a biblia diariamente e acreditava no seu Deus, do jeito que achava correto, sem nunca ter sido membro assiduo de igreja alguma. Você, homem humano, também cheio de erros, mas que teve muitos, tantos acertos e que me formou essa menina que sou agora. Você e seu humor ácido, suas piadas com coisas descabidas, o jeito debochado de se referir aos outros e o jeito leve de falar de morte. "Foi se encontrar com jisuis, ele né? não é assim que falam os crentes?" e se ria todo.

Não leio tantos livros quanto lia na infância, continuo com a mesma familiaridade com os equipamentos eletrônicos. Ouço um pouco menos de samba, porque esqueço. Por vezes lavo a louça e lembro de você cantarolando "para pedro pedro para esse pedro é uma parada". Não subo mais em árvores, não frequento mais casas com grama como a sua, não apresentei nenhum outro namorado pros meus pais desde aquele que você conheceu (e muito pouco). Acho que vou saber quando for a pessoa certa quando eu pensar que "esse garoto eu apresentaria pro meu vô", sem ter medo de você achar ele estranho, ou inadequado. Por enquanto, estamos esperando por ele. Ainda pretendo casar, embora negue isso eventualmente. Quero ter filhos, claro que quero, pra contar a eles que eles tiveram o biso mais incrível de todo mundo, pra repassar pra eles a história da raiva, e todas as suas outras histórias. Não sei se eles terão um vô tão maravilhoso como eu tive, mas eu acho que o "velho" vai fazer o que pode. A mãe também vai. Vivi vinte anos inteiros com você que me ensinou a ser gente, que foi meu referencial masculino enquanto meu pai viajava pra me sustentar. Aprendi, sorri, te li histórias, te coloquei sambas aos domingos, te levei arroz pra colocar pros passarinhos. Você cuidou de mim e mais tarde eu cuidei de você. Porque é o ciclo da vida e eu acho que o nosso, vô, foi bem fechado. Eu não poderia ter vivido vinte anos com nenhum outro avô. Queria que você fosse eterno, é claro que eu queria. Te apresentar meus namorados, te levar pra minha formatura, te ter na minha festa de casamento, te levar pra brincar com meus filhos, mas não teria como. Você se foi quando tinha que ir e o que cabe a mim é saber que você continua vivo (e muito vivo), dentro dessa pessoa que eu me tornei.

Não sei onde você está hoje, e espero que esteja no céu como o senhor acreditava que estaria. Saiba que aqui a gente sente muito a sua falta. Pelo menos eu senti hoje, enquanto ouvia essas músicas que me lembravam nossos almoços de domingo, você lembra? com gengiskan? Em que eu colocava a música do gato dos demônios da garoa e você ria todo? Ria porque você tinha o riso mais gostoso do mundo, e o terrível hábito de afugentar meus gatos todos (coitados) lhes jogando água. Era um velho com coração de criança, com um espírito de menino que não morreu nunca. E permanece. Permanece dentro de mim em tudo que você ensinou pra nós todos. Permanece vivo, em lembrança e história, e no meu jeito de me portar. Permanece vivo porque todo mundo que a gente ama, nunca morre. Eu só espero que tenha te feito feliz tanto quanto você me fez, vô. Eu te juro que fiz o meu melhor. Cuida de mim, onde quer que você esteja (se estiver), que eu continuo daqui, sentindo a sua falta nessas madrugadas de segunda feira e nas tardes de domingo, e te deixando vivo contando pra todo mundo, em forma de poesia, prosa ou narrativa que eu tive o melhor avô do mundo inteiro, ele se chamava estevo, e dentro de mim não morrerá jamais.

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