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1.1.12

Feliz ano novo.

Era aquilo então, a vida. O eterno procurar pelas coisas que não se sabe que se procura - e tentar achar. É difícil então, a vida. E parecia ainda mais inadequada quando ela via que começara o ano e nada de novo se faria. Nem um novo amor, nem um novo emprego, nem um carro novo na garagem: nada. Nem ao menos um novo par de sapatos sem graça para ir à padaria o ano que entrava reservava. Tinha pedido paz, amor, esperança. Abdicara à cor da calcinha porque tinha deixado de acreditar em simpatias. Os anos tinham sido ruins todos. Os vestida de preto, de branco, e quem sabe teriam sido ruins até os anos-novos passados nua na cama trepando com seu novo namorado, e realizando a simpatia de beijar a pessoa com quem se quer passar o ano todo à meia noite. Não sabe se dá sorte porque nunca nem sequer beijou alguém à meia noite. Um pouco por medo de ter que lidar com a escolha definitiva de ter outro ser pelo ano todo, e outro resto por evitar passar anos-novos com pares amorosos, como uma espécie de superstição. Parecia dar azar trazer uma escolha passada pro ano que viria, e escolhera então passar sempre sozinha na presença de amigos e familiares.

Esse no tinha sido de uma passagem normal, nem desastrosa e nem catártica. Só o amor de sempre, porque amor acaba ficando calmo ao longo dos anos, depois de muito tempo, e então tinham passado aquele reveillon sem histerias, apenas com a certeza de que, de certa forma, apesar de tudo - e por tudo - continuariam se amando pra sempre, de um jeito ou de outro. As mesmas pessoas de quatro anos atrás, reunidas todas, se desejando felicidades genuinamente. Era o que importava, no fim das contas, e não as calcinhas vermelhas ou rosas, ou as lentilhas e sementes de uva. Passou-se o reveillon, passaram-se dias, entrou-se o ano e tudo parecia sem jeito, sem remédio, ficava ela prostrada na cama esperando os dias passarem rápido. E passavam. E a vida ia do jeito que tinha de ir. E vinte quatro horas, os horários meio trocados, a alimentação já meio errada. Tinha tentado sem sucesso parar de fumar no ano passado, e nem quis renovar os votos nesse ano que entrava. Se for pra entrar o ano estourando os pulmões, que estoure. E estouravam mesmo, tinha a respiração curta, pouca vontade de tudo, e tinha aumentado consideravelmente o consumo de café, já que de uns tempos pra cá, cada cigarro pedia uma xícara de café. E iam maços de cigarros, e garrafas de café. Amarelavam os dentes, enfraqueciam o pulmão, faziam doer o estômago. E tudo bem - dizia ela - porque a vida também destrói e não traz prazer algum.

Naquele dia acordou cedo por falta de cigarros.  Despertou com uma ânsia de fumar logo que teve um sonho ruim e tinham acabado todos os maços. Fumava mais, cada vez mais, cada dia mais, e fazia sempre menos coisas. As únicas motivações para sair de casa eram os cigarros, o pó de café e por vezes uma coisa ou outra para fazer comida. Os amigos chamavam no telefone vez ou outra, mas tinha declarado a primeira semana de janeiro como o período sabático para a elevação espiritual e assim tinha decidido parar de falar com todos que conhecia. E todos eram todos mesmo. Lidava com suas angústias sozinha, não ligava o computador, não respondia às mensagens no celular e tinha se proibido inclusive de ligar para qualquer um de seus pares amorosos pra saciar o desejo de sexo. Tinha sido um ano de muitos excessos, inclusive desse, e havia "trepado feito gata no cio", como diziam as amigas. Vários pares amorosos, alguns fixos, outros casuais, intercalavam-se em noite mal dormidas de bebidas e às vezes cinema, às vezes jantar e às vezes nada disso, só sexo mesmo, sexo puro, sem rodeios nem convenções e sem beijo de boa noite.

Tentou sem sucesso dormir sem fumar, pra não ter que encarar a padaria do bairro logo às seis da manhã, mas teve que ir. Calçou os chinelos, fez um coque no cabelo, botou um vestido qualquer, colocou alguns trocados no bolso e foi comprar mais um maço de cigarros. Antes tinha preferências muito ortodoxas quanto à marca do cigarro, mas agora, há quatro meses sem emprego e fumando cada vez mais, tinha baixado um pouco seus padrões e fumava cigarros populares. O mesmo cigarro que fumam as empregadas domésticas no ponto de ônibus, e quem sabe as putas, depois do programa. Decaia e sabia de sua decadência. Por isso o período sabático em que só eram permitidos os vicios solitários e o contato com ela mesma. Tinha enlouquecido por vezes, chorado por longas noites até pegar no sono, tinha cogitado se matar com o gás aberto, mas achou a vida ainda irrelevante demais para um ato desesperado desses. Era o quinto dia do ano e era também quinta feira, e ela descia o elevador se olhando no espelho. Não se reconhecia muito bem, se via cansada, maltratada pela vida, quase trinta anos e nada de tão sólido assim tinha sido construído. Tinha um apartamento velho, um carro de dez anos atrás que ganhou do pai aos dezoito e uma vida sem muitos sonhos junto com um reveillon sem simpatias.

Era descrente de tudo, dela mesma, da capacidade de largar os vicios e seguia pela rua até a padaria da esquina pra saciar o único vício que ainda se permitia ter na semana de reclusão. Ia observando as pessoas, que a essa altura do ano já corriam pros seus empregos, com seus carros do ano, seus ternos, seus vestidos de marca. Andava de calça jeans, camiseta branca e havaianas e não se maquiava desde a virada do ano. Enquanto observava um cartaz desses de propaganda que dizia algo como "isso pode mudar a sua vida, nos ligue", se distrai e não percebe o movimento na padaria. Entra desavisada, pega os trocados no bolso, ameaça pedir um cigarro, mas olha em volta e vê todos deitados no chão. Um homem aponta uma arma pra todos e diz "vai moça, pro chão, pro chão". Ela deita, diz a si mesma que poderia morrer naquele momento, mesmo que fosse assim, sem realizar nada. Morrer no chão da padaria porque o vício do cigarro não podia esperar mais uma hora. Morrer pelo vício, morrer por não aguentar a vida sem as drogas legais. Morrer enfim por culpa, por sua máxima culpa, culpa sua de não ter se tornado um ser digno, respeitável, que cumpre as atividades de cidadão modelo logo que o ano começa.

O assaltante sobe no balcão e pede silêncio. Diz não querer nada, diz que tinha sido um homem honesto, que tinha tentado pelo menos. Diz que trabalhou anos e anos como servente de pedreiro, mas um dia sofreu um acidente, perdeu a mão e não podia mais ser pedreiro. Segurava a arma com a mão esquerda. Conta que ficou desempregado, se enfiou na bebida, foi perdendo tudo até que parou na rua. Conta também que um dia passava fome e ficou ali, na frente da padaria esperando a caridade de alguém. Entrou na padaria, aquela mesma padaria, e foi expulso por estar sujo, maltrapilho, foi olhado com nojo e não foi defendido por ninguém. Disse ele também que naquele dia deixou de acreditar que o mundo fosse um lugar bom e virou assaltante. Com o dinheiro dos assaltos dava pra comer bem, sem ser expulso, sem ser humilhado. Só tinha que tomar cuidado com a polícia. As pessoas o olhavam assustadas, pediam clemência, era o terror no bairro nobre da grande são paulo. O assaltante diz então que agora já não vê mais sentido em nada, e que não espera mais nada da vida, desse mundo em que a gente tem que assaltar pra ser respeitado, pra comprar um pouco de pão. Antes de puxar o gatilho diz que Deus entende os motivos de todo mundo, e que espera ser perdoado no céu, porque foi maltratado pela vida. Puxa o gatilho e vai matando, um por um dos clientes da padaria. Mata a senhora de bolsa de grife, mata o executivo que tomava café com clientes, mata todos aqueles que não o olharam no olho.

Ela observa a chacina, e não tem mais medo de morrer.

O assaltante - agora assassino - olha pra ela antes de puxar o gatilho e diz pra ela ir embora. "Moça, corre, você eu não quero matar não, eu vi que a senhora chorava enquanto eu contava a minha história, a senhora tem coração, ao contrário dessa gente". Ela sai correndo e olha pra trás a tempo de ver o último tiro. O assassino atira em sua própria cabeça e morre. Ela sai andando de volta pra casa, sem os cigarros. Não foi procurada pela imprensa, sua presença não foi notada na chacina que ninguém viu. Nada quis documentar, também. Só tinha a certeza de ser a única sobrevivente daquela quinta feira dia cinco. Passou os outros dois dias em casa, sem falar com ninguém, sem fumar cigarro algum e sem tomar um gole sequer de café. Percebeu que a vida era frágil e aceitou a redenção daquele assaltante como um sinal.

Ao final do dia sete, pegou as chaves do carro, saiu pra rua e percebeu que o único remédio pra vida não é calcinha colorida, nem beijo na boca a meia noite. A única solução possível é renascer a cada ano dos mortos, porque o único caminho é sobreviver.

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