Querido Deus,
Em primeiro lugar, não quero entrar no mérito da questão do fato de você existir ou não. Acho isso tremendamente chato, e até um pouco desnecessário. Chamo aqui de Deus, essa criatura qualquer que existe (ou não), num plano superior e nesse minuto é capaz de me ouvir. O senhor sabe (e eu imagino que saiba, porque muito falam sobre a sua onipresença), que eu sempre fui uma criatura muito perdida. Desde assim, desde sempre. E ultimamente, eu ando um pouco mais perdida do que de costume. Antes as coisas iam. Eu sempre detestei o presente em que eu era inserida (o senhor deve lembrar das minhas inúmeras reclamações), e sempre desejei estar dois passos à frente. Uma vez que chegava nesse passo à frente descobria odiar isso também, e entrava nessa insatisfação sem fim. Eu não sei se o senhor tem uma explicação pra isso, e mesmo que tenha, eu não sei no que nisso pode ajudar. Mas o que eu quero dizer é que, eu detestava o ensino fundamental, daí fui pro ensino médio e detestei, e fui pra faculdade e detestei e comecei a trabalhar e também detestei um pouco, mas até então eu não tinha parado. Esse mês eu parei, e sabe, olha Deus, eu ando mesmo muito perdida. Nos últimos anos eu fui me enfiando em tudo que podia. Porque, sei lá com que massa o senhor me fez, mas eu acabo mesmo conseguindo tudo aquilo que me proponho a conseguir (e até o que não me proponho tanto assim).
Sendo assim, passei no meu primeiro vestibular, fiquei com todos os caras que queria, namorei quem eu queria namorar, passei na primeira pós graduação que tentei, arrumei os empregos que me propus arrumar. E até aí tudo bem. Eu me frustrei aqui e ali, perdi um grande amor justamente porque sempre quis ter demais e acabei me atropelando, mas ok, é a vida, talvez você aí do céu tenha um propósito maior pra isso tudo. Fato é, que hoje eu estou aqui, sentadinha na minha cama, com milhares de dúvidas e eu só posso dizer que ó: eu me atropelei. Isso de conseguir tudo o que ser "quer" é muito legal quando você tem certeza do que você quer, mas no meu caso eu fui conseguindo tudo o que me apareceu. E agora é isso. Eu tenho uma vida que um monte de gente inveja, mas eu não sei se eu queria ela. Eu não sei se eu queria ser essa designer que eu sou, se eu queria com 22 anos já ter feito um ano de pós graduação, se eu queria ter namorado todos esses caras, e ter conquistado todos os caras que me propus a conquistar (mesmo quando eu não queria eles). Isso de não quebrar a cara nunca te bota muito pouco em cheque com a vida e te faz pensar que não tem mesmo o que pensar. Eu nunca tive uma frustração muito grande que me fizesse parar e pensar "olha, talvez esse não seja o caminho certo". Até que eu perdi o emprego. Esse emprego que, bem sabe o senhor, eu achava que não ia perder nunca. Aliás, toda essa trajetória até aqui me fez uma pessoa que acha que não vai perder nunca. Porque eu nunca perdi. Exceto aquela vez, aquele grande amor, que você sabe melhor do que eu, porque sendo deus, já deve ter me espiado chorando no quarto milhares e milhares de vezes.
E daí é isso. Me vejo aqui, pouco estimulada à qualquer coisa, meus amigos todos também, pouco estimulados. E fico esperando que o senhor (ou qualquer coisa que seja) me dê um sinal. Porque de uma hora pra outra, depois de tanta desilusão eu acho que eu dei pra acreditar em sinais. Me oferecem um emprego eu acho que é um sinal, uma nova pessoa aparece eu acho que é um sinal, a havaiana cai de um jeito diferente e eu acho que é um sinal. Porque o senhor bem deve se lembrar, ano passado eu entrei numa estrada que ia rumo à decadência, bebi bastante, minha mãe teve que me aguentar desmaiada na cama algumas várias vezes, eu aceitei todos os convites pra todas as festas, eu fiquei acordada até tarde, eu saí em dias de semana. Tudo isso pra ver se eu achava algum sentido, e o sentido não existe. Também não existe essa pessoa que você vai conhecer e vai ser capaz de mudar toda a sua vida, porque ela até pode mudar um pouquinho, mas todo mundo te decepciona, vez ou outra, o o filtro pra decepções vai ficando cada vez menor. E como o senhor já deve ter percebido, eu não ando com nenhuma tolerância ao fracasso. E também tem isso de arrumar um emprego e eu não sei nem com que raios eu quero trabalhar. Não sei de nada, e escrevo essa carta com um intuito meio infantil de que quem sabe alguma luz venha, ou a minha havaiana caia de um jeito diferente e isso seja um sinal. Só que o senhor bem sabe, que eu não gosto de havaianas.
Eu tenho sido muito forte. Eu, se fosse o senhor, me orgulharia de me ver daí do céu. Eu tenho sido muito forte porque faz dois anos que eu tive que lidar com o trauma mais relevante da minha vida e eu continuei vivendo. O senhor também deve saber que é desde esse dia que viver se tornou mais difícil, mais complicado e cheio de latas de cervejas e coisas que eu não-queria-tanto-assim. É que eu perdi a única coisa que eu desejei com certeza na vida, e depois disso, tudo ficou muito difícil de conseguir continuar. Eu nunca quis nada tanto assim, mas você sabe que ele eu quis. É difícil admitir que uma pessoa só foi responsável por boa parte de tudo que você fez de bonito na vida. Ele era meu equilíbrio, meu norte, minha espécie de deus particular (embora fosse bastante humano), e é estranho pensar que, caso ele ainda estivesse aqui, eu nem estaria endereçando essa carta pra você. Talvez a vida me doesse, mas eu estaria te sorrindo. Você deve se lembrar que eu costumava sorrir bastante, mesmo em meio às minhas depressões, quando ele estava aqui. Teve até um dia que nós dois paramos na sacada pra discutir sobre a existência desse tal de "Deus". Chegamos à conclusão que se o senhor existisse de fato, teria coisas mais legais pra se preocupar do que com essas nossas mesquinharias. E achamos a conclusão bem acertada, embora pouco soubéssemos (ou queríamos saber) sobre esses mistérios de vida & morte. Tinha isso de ver o jogo do barcelona, de fazer lasanha, das pequenas alegrias corriqueiras da vida. O senhor deve saber melhor do que ninguém que meu coração está cansado. Muito cansado. E com o coração cansado fica muito mais difícil conseguir o que se quer da vida. Principalmente pra mim, que nunca soube direito o que queria. Mas a vida é isso. Você viu que meus passos me tornaram designer e que sabe-se lá porque a vida tirou a única coisa que eu tinha certeza que queria de mim. E deu p'raquela outra garota que deve estar cuidando bem dele. Eu espero que esteja, pelo menos. E sabe, de repente ficou mais fácil de acreditar que tudo isso que aconteceu, aconteceu porque tinha que acontecer. Me conforta mais pensar que minha certeza não era a certeza certa, e que agora eu tenho que depositar minha esperança num outro lugar qualquer.
E sabe, se você estiver mesmo me olhando daí do céu, eu estou esperando por um sinal. É porque faz dois anos que eu não sei mais no que depositar a minha fé. Sabe, e eu nem falo de fé religiosa não. Falo de fé na vida, sabe? Fé no meu trabalho, num emprego, numa amizade, em planos, em um novo amor. Qualquer coisa assim. Eu tenho medo de me atropelar, mais uma vez, porque eu sempre me atropelo. E eu tenho medo de, em mais um desses meus atropelos, acabar perdendo a única coisa que eu tinha certeza de querer. Porque eu acho que eu vou encontrar outra coisa e ter certeza que eu quero ela. E essa coisa pode nem ser pessoa. Você entende o que eu estou falando? Eu acho que entende. Eu nem sei o que eu estou te pedindo. Você sabe que eu não sou de pedir muito, sou de me deixar levar. Não sei exigir muita coisa. Não da vida. Fico esperando por esses sinais, fico esperando que as coisas se encaminhem, se mostrem claras, que haja fé em qualquer coisa que seja. Não sei se o senhor está me ouvindo. E caso esteja, eu nem sei se o senhor gosta mesmo que a gente te transforme em literatura. Mas é tarde demais, eu já transformei. Fui eu mesma a escrever em outro texto que "nós somos a geração de um deus que não há". Eu não sei no que acreditar, eu não sei o que pedir, eu não sei o que esperar. Eu não sei nem ao menos o que devo fazer amanhã. Eu nunca soube. Você - ou a vida - me tiraram a única certeza que eu tinha, e pra isso eu tive que realinhar todos os meus planos de novo. E eu (espero) que exista uma razão bastante lógica pra isso. Que eu estou esperando o senhor me contar. Traga qualquer coisa até mim, uma pessoa qualquer, um sinal, um emprego, a oportunidade da minha vida, o dia mais feliz dos meus vinte três anos de existência. Vire meu all star do lado errado na rua, me faça tropeçar na frente do amor da minha vida, inviabilize o que eu quero, ou faça tudo se alinhar do jeito que deve, assim, fácil. Faz dois anos que eu vivo anestesiada, sem esperar nada da vida, sem fazer planos, sem querer nada de verdade porque a única coisa que eu quis a vida levou numa onda gigante e eu nem tive tempo de me reanimar. Só que agora eu cansei. Cansei disso, de me lamentar, de chorar molhando meu teclado frente às fotos dos dias que não voltam. Eu preciso acreditar em alguma coisa. E mesmo que você não exista, hoje eu preciso de você.
30.1.12
27.1.12
carta aberta à uma histérica.
(de outra histérica)
Você me disse hoje, (e eu imagino) quase desesperando que não aguentava mais ser assim. Lembro de você dizendo isso pelo menos umas quatro vezes, desde aquele ano em que nos conhecemos e não nos demos tanta bola. Sei que já te disse a mesma coisa, em vários outros momentos ao longo desses anos que povoam a nossa amizade distante de lugar, mas pertinho de alma. Você passou muito presente por todos os meus relacionamentos, aguentou firme meu trauma, me acompanhou em todos os meus flertes sérios ou sem nenhuma importância. Eu te acompanhei em todos eles também, segurando a sua mão e brigando com você quando necessário. Soubemos xingar o pretendente da outra de "babaca" quando preciso, e soubemos aceitar, resignadas, o veredito da outra. Sempre nos soubemos certas. Eu soube que era verdade quando você me disse que eu idealizava demais, e você soube que era verdade quando eu te disse que você só queria ser amada. Soubemos, de comum acordo, quando estávamos nos envolvendo com homens que não iriam nunca nos encantar. E soubemos entender, compreensivas, porquê tinhamos o vício de insistir naquilo que não ia dar em nada. Torcemos pelos nossos êxitos todos, e seguramos nossas barras em pé. Te ouviria em todas as suas confissões sobre as suas neuroses, e choraria com você em todas as coisas que você estragasse por causa delas. Sei que você faria o mesmo por mim. Você, que apoia as minhas mancadas, que desabafa comigo às custas da tim, que sabe ser meu cazuza enquanto eu sou assim, seu caio fernando, marilene a incendiária, botando fogo em tudo que vejo pela frente. Rimos juntas e abraçadas de nossas imensas pataquadas mundo afora, sabemos dos nossos vícios de seduzir, sabemos do nosso sintoma, da nossa fofura ensaiada, dos nossos textos bem escritos, da nossa paranoia sem fim. E sabemos também, que é difícil segurar essa barra de não saber amar sem fazer doer. Saimos por aí, fazendo drama antes de saber a razão, apontando dedos que não deveríamos apontar, fazendo pequenas vinganças diárias por coisas que na verdade não nos fizeram. Temos medo de ser machucadas, porque já somos demais, porque já nos destruímos diariamente, então atacamos. Atacamos os outros, jogando pedra em todos os vidros que vemos pela frente, mas acabamos (sempre) cortadas pelos nossos próprios estilhaços. Você me diz, tristonha, que não quer mais ser assim, e eu te ouço como se a voz fosse minha: porque eu também não quero. Não queremos. Mas somos. Vivemos com a dor e a delícia de ser exatamente aquilo que se é. O desequilíbrio que por vezes encanta, o jeito estabanado que por vezes conquista, a força que esconde por trás uma fragilidade imensa, quase infantil. Somos imaturas mulheres em cima de seus saltos altos e seus batons vermelhos. Somos crianças querendo colo, esperneando por atenção, fazendo manha, birra, chantagem, desconfiando da sombra, machucando para não ser machucada, afastando para não se aproximar demais, deixando pra não ser deixada, escarafunchando defeitos para não se apaixonar demais pelas qualidades. Nunca perdemos um jogo, não aceitamos, sempre conseguimos tudo aquilo que queríamos, só não conseguimos viver confortável nessa pele em que habitamos. Somos demais almodovár, latinas, dramalhonas e cheias de tragédias. Somos demais tango, somos demais escândalo, somos drama e paranoia, somos mulheres a beira de um ataque de nervos no próximo segundo. Você me deseja todo amor que houver nessa vida e eu te desejo, clichê, que seja doce. O que sabemos da gente é que quem vê a nossa maquiagem bem feita não imagina que ela derreta de noite, nos nossos choros que tem como única causa o fato de ser assim. E a gente se pergunta em uníssono "pra quê ser assim?". E fica retórico, porque não tem porquê, só se é. Sabemos que somos, e sendo duas, nos entendemos. Eu não te desejaria a pele em que habito se pudesse e eu sei que você não daria a sua, se tivesse tido escolha. Acontece que foi assim, e sendo assim, cabe a gente se apoiar. Não sei se temos jeito, cura, se temos equilíbrio. Sei que me equilibro em você quando acho que vou cair, e sei que você faz o mesmo. Às vezes caímos as duas, estabacadas, nariz e coração sangrantes. O que fica é que a gente sempre levanta. Sempre. Mesmo com o joelho ralado, as lágrimas escorrendo, mesmo com a vergonha do fracasso. Você será sempre a minha histérica, perua-jéssica-lange, e eu sempre a sua histérica pra quem você diz que "uma pessoa, não é como um doce que se enjoa e se diz: não quero mais". Sei de você. Você sabe de mim. Sabemos de nós. Sinto a sua dor, quero também o equilíbrio, a calma, a paz, um lugar pra ser nosso. Quero te encontrar de noite e festejar dizendo que olha, não demos show. Mas quero também que você saiba (como eu sei que sabe e eu sei), que nessa estrada curva que tenta nos levar a sermos pessoas mais sensatas, eu serei sempre o seu caio fernando, e você vai ser pra sempre o meu cazuza. E o clube das mulheres neuróticas vai vencendo assim, um dia de cada vez, porque queremos que todo amor que houver nessa vida seja doce.
(dizer que eu te amo seria egocentrismo. e eu não fiz parágrafos, porque não somos de pausas).
Você me disse hoje, (e eu imagino) quase desesperando que não aguentava mais ser assim. Lembro de você dizendo isso pelo menos umas quatro vezes, desde aquele ano em que nos conhecemos e não nos demos tanta bola. Sei que já te disse a mesma coisa, em vários outros momentos ao longo desses anos que povoam a nossa amizade distante de lugar, mas pertinho de alma. Você passou muito presente por todos os meus relacionamentos, aguentou firme meu trauma, me acompanhou em todos os meus flertes sérios ou sem nenhuma importância. Eu te acompanhei em todos eles também, segurando a sua mão e brigando com você quando necessário. Soubemos xingar o pretendente da outra de "babaca" quando preciso, e soubemos aceitar, resignadas, o veredito da outra. Sempre nos soubemos certas. Eu soube que era verdade quando você me disse que eu idealizava demais, e você soube que era verdade quando eu te disse que você só queria ser amada. Soubemos, de comum acordo, quando estávamos nos envolvendo com homens que não iriam nunca nos encantar. E soubemos entender, compreensivas, porquê tinhamos o vício de insistir naquilo que não ia dar em nada. Torcemos pelos nossos êxitos todos, e seguramos nossas barras em pé. Te ouviria em todas as suas confissões sobre as suas neuroses, e choraria com você em todas as coisas que você estragasse por causa delas. Sei que você faria o mesmo por mim. Você, que apoia as minhas mancadas, que desabafa comigo às custas da tim, que sabe ser meu cazuza enquanto eu sou assim, seu caio fernando, marilene a incendiária, botando fogo em tudo que vejo pela frente. Rimos juntas e abraçadas de nossas imensas pataquadas mundo afora, sabemos dos nossos vícios de seduzir, sabemos do nosso sintoma, da nossa fofura ensaiada, dos nossos textos bem escritos, da nossa paranoia sem fim. E sabemos também, que é difícil segurar essa barra de não saber amar sem fazer doer. Saimos por aí, fazendo drama antes de saber a razão, apontando dedos que não deveríamos apontar, fazendo pequenas vinganças diárias por coisas que na verdade não nos fizeram. Temos medo de ser machucadas, porque já somos demais, porque já nos destruímos diariamente, então atacamos. Atacamos os outros, jogando pedra em todos os vidros que vemos pela frente, mas acabamos (sempre) cortadas pelos nossos próprios estilhaços. Você me diz, tristonha, que não quer mais ser assim, e eu te ouço como se a voz fosse minha: porque eu também não quero. Não queremos. Mas somos. Vivemos com a dor e a delícia de ser exatamente aquilo que se é. O desequilíbrio que por vezes encanta, o jeito estabanado que por vezes conquista, a força que esconde por trás uma fragilidade imensa, quase infantil. Somos imaturas mulheres em cima de seus saltos altos e seus batons vermelhos. Somos crianças querendo colo, esperneando por atenção, fazendo manha, birra, chantagem, desconfiando da sombra, machucando para não ser machucada, afastando para não se aproximar demais, deixando pra não ser deixada, escarafunchando defeitos para não se apaixonar demais pelas qualidades. Nunca perdemos um jogo, não aceitamos, sempre conseguimos tudo aquilo que queríamos, só não conseguimos viver confortável nessa pele em que habitamos. Somos demais almodovár, latinas, dramalhonas e cheias de tragédias. Somos demais tango, somos demais escândalo, somos drama e paranoia, somos mulheres a beira de um ataque de nervos no próximo segundo. Você me deseja todo amor que houver nessa vida e eu te desejo, clichê, que seja doce. O que sabemos da gente é que quem vê a nossa maquiagem bem feita não imagina que ela derreta de noite, nos nossos choros que tem como única causa o fato de ser assim. E a gente se pergunta em uníssono "pra quê ser assim?". E fica retórico, porque não tem porquê, só se é. Sabemos que somos, e sendo duas, nos entendemos. Eu não te desejaria a pele em que habito se pudesse e eu sei que você não daria a sua, se tivesse tido escolha. Acontece que foi assim, e sendo assim, cabe a gente se apoiar. Não sei se temos jeito, cura, se temos equilíbrio. Sei que me equilibro em você quando acho que vou cair, e sei que você faz o mesmo. Às vezes caímos as duas, estabacadas, nariz e coração sangrantes. O que fica é que a gente sempre levanta. Sempre. Mesmo com o joelho ralado, as lágrimas escorrendo, mesmo com a vergonha do fracasso. Você será sempre a minha histérica, perua-jéssica-lange, e eu sempre a sua histérica pra quem você diz que "uma pessoa, não é como um doce que se enjoa e se diz: não quero mais". Sei de você. Você sabe de mim. Sabemos de nós. Sinto a sua dor, quero também o equilíbrio, a calma, a paz, um lugar pra ser nosso. Quero te encontrar de noite e festejar dizendo que olha, não demos show. Mas quero também que você saiba (como eu sei que sabe e eu sei), que nessa estrada curva que tenta nos levar a sermos pessoas mais sensatas, eu serei sempre o seu caio fernando, e você vai ser pra sempre o meu cazuza. E o clube das mulheres neuróticas vai vencendo assim, um dia de cada vez, porque queremos que todo amor que houver nessa vida seja doce.
(dizer que eu te amo seria egocentrismo. e eu não fiz parágrafos, porque não somos de pausas).
I get by with a little help from my friends
A vida é isso. É essa coisa que passa rápido demais, e quando você se dá conta, está numa sala (a mesma sala que povoou o início da sua juventude) discutindo o que serão dos anos vindouros. Somos meninos formados, deveríamos estar crescidos, pensando em nossos empregos (quase) fantásticos, nossa carreira acadêmica brilhante, nossa cidade dos sonhos pra mudar. Discutimos por horas a fio sobre porque tudo é tão errado, as pessoas querendo ser prodígios com seus vinte e poucos anos, nossa falta de independência, nossas ainda-não carteiras de motorista, nossos amigos que não se deram tão bem assim. Todos nós, em nossos períodos sabáticos, sentados no mesmo sofá verde de outrora, pensando em enviar currículos ou não, em entrar em mestrados ou não, em querer uma vida confortável ou querer fazer alguma diferença. Nós, jovens, quase vinte e três anos. Nós, perdidos, a geração onde não existe deus ou esperança, sem saber se casaremos, se constituiremos família, ou se estaremos vivos no minuto seguinte. Seria dois mil e doze mesmo o ano do apocalipse? O ano da mulher de duas vaginas, de luíza que voltou do canadá, das aberrações genéticas, dos experimentos revolucionários. Queremos conhecer o mundo, ou queremos ficar perto um do outro, em nosso velho sofá verde, tomando chá mate com limão? Queremos colocar em prática a última orgia antes do fim do milênio? Ainda lembramos que tinhamos essa brincadeira, quando éramos mais jovens, tinhamos menos responsabilidades e tomávamos cuba libre ao som de músicas que (ainda) não sabíamos que sentiríamos saudades? Acho que não sabemos de mais nada.
A vida se mostra incerta, nessas noites frias em que se pensa não sair de casa. Tudo uma imensa neblina, como aquela que tomou Londrina inteira, anteontem. Tudo muito incerto. Carreira, lugar pra morar, o salário ideal, como começar a minha monografia, família, namorado, relacionamento. Tudo prestes a se consolidar ou a ruir no instante seguinte. Queria uma vez na vida ter um pouco de certeza daquilo que quero, estar confiante, pensar em um caminho só, traçar uma meta, mas me falta ritalina na alma. Não tenho foco, nasci desprendida demais, nunca consegui terminar um jogo de videogame, nunca consegui enxergar o meu futuro todo segurando na mão de alguém. Nunca me enxerguei sendo designer, justo eu, a menina que aos dez anos de idade já dizia querer ser escritora. Me enxergo muito pouco, ainda. E isso, mas também me enxergo muito pouco profissional, me enxergo muito pouco ser humano, me enxergo muito pouco "a namorada dele" e ainda menos a "mulher dele" ou a "mãe dela". Aceitei ser, por vezes, o complemento de alguém. Duas vezes. Duas únicas vezes pra depois desistir disso pra sempre e ficar em imensas novelas sem fim de descontrole e desconcerto. Hoje, às quatro da manhã, não sei nem a cidade em que quero morar. Nem o que quero fazer amanhã. Sinto algumas várias saudades, de muita gente, de gente que está aqui, de gente que se foi, de gente que se mudou assim, existencialmente falando.
Vejo mudanças em todos nós. Cada dia menos gente frequenta os sofás verdes desgastados, embora ganhemos algumas novas aparições every now and then. Apesar de tudo isso, sei que não mudamos tanto-assim. Ainda sinto em vocês o mesmo olhar cúmplice que sentia três, ou quatro anos atrás. Falo pra vocês que não sei o que vai ser do meu futuro e sou compreendida. Entendo que todos nós estejamos perdidos, jogados no mundo, sem muitas previsões de nada. Sei que tenho um lugar no mundo, um lugar qualquer que seja, quando alguém me deseja de coração que eu esteja "forever young" e eu desejo de volta, com todo meu coração. Sei que a vida ainda vale um pouco a pena quando nos refastelamos no sofá verde conversando sobre tudo que vem à cabeça. Quando planejamos ganhar na mega sena. Quando planejamos mudar de cidade. Eu acho que não sei ter outros amigos assim, melhores que esses. Nenhum outro vai fazer experimentos no quarto de casa, nenhuma outra vai ter um abraço tão reconfortante, nenhuma outra vai me levar no show do Bob Dylan, nenhum outro vai me abrigar em casa sempre que eu precisar, nenhum outro vai planejar um ano todo comigo e o ano que vier também.
Concluo que já pensei algumas vezes em abandoná-los, já fui frustrada algumas vezes, já me senti sozinha na aventura errante que apelidamos de "vida". Confesso que já pensei em sumir, procurar consolo em outros ombros, já tive raiva, muita raiva de todos vocês. E sei que você já devem ter tido de mim. Sei que nossas relações desgastam, como qualquer outra relação, e sei que, por vezes ficaremos afastados. São quatro da manhã, eu cheguei em casa e não tenho ideia do que quero fazer da minha vida. A mais vaga ideia. Não sei se quero londrina, se quero são paulo, se quero curitiba. Não sei se quero design, webdesign, se quero a folha de são paulo, se quero redigir textos pro resto da minha vida. Não sei o que quero fazer sábado que vem, quando quem sabe estiver em são paulo. Me sinto mais do que nunca perdida, jogadas às traças, bicho solto no mundo. Me sinto mais do que nunca, a mais solitária dos seres, a página mais em branco que pode existir. Não tenho emprego, perspectiva, não tenho amores, não tenho planos, não tenho nada. Mas tenho vocês. E sei, que deitada no sofá verde desgastado, me sentirei em casa.
A vida se mostra incerta, nessas noites frias em que se pensa não sair de casa. Tudo uma imensa neblina, como aquela que tomou Londrina inteira, anteontem. Tudo muito incerto. Carreira, lugar pra morar, o salário ideal, como começar a minha monografia, família, namorado, relacionamento. Tudo prestes a se consolidar ou a ruir no instante seguinte. Queria uma vez na vida ter um pouco de certeza daquilo que quero, estar confiante, pensar em um caminho só, traçar uma meta, mas me falta ritalina na alma. Não tenho foco, nasci desprendida demais, nunca consegui terminar um jogo de videogame, nunca consegui enxergar o meu futuro todo segurando na mão de alguém. Nunca me enxerguei sendo designer, justo eu, a menina que aos dez anos de idade já dizia querer ser escritora. Me enxergo muito pouco, ainda. E isso, mas também me enxergo muito pouco profissional, me enxergo muito pouco ser humano, me enxergo muito pouco "a namorada dele" e ainda menos a "mulher dele" ou a "mãe dela". Aceitei ser, por vezes, o complemento de alguém. Duas vezes. Duas únicas vezes pra depois desistir disso pra sempre e ficar em imensas novelas sem fim de descontrole e desconcerto. Hoje, às quatro da manhã, não sei nem a cidade em que quero morar. Nem o que quero fazer amanhã. Sinto algumas várias saudades, de muita gente, de gente que está aqui, de gente que se foi, de gente que se mudou assim, existencialmente falando.
Vejo mudanças em todos nós. Cada dia menos gente frequenta os sofás verdes desgastados, embora ganhemos algumas novas aparições every now and then. Apesar de tudo isso, sei que não mudamos tanto-assim. Ainda sinto em vocês o mesmo olhar cúmplice que sentia três, ou quatro anos atrás. Falo pra vocês que não sei o que vai ser do meu futuro e sou compreendida. Entendo que todos nós estejamos perdidos, jogados no mundo, sem muitas previsões de nada. Sei que tenho um lugar no mundo, um lugar qualquer que seja, quando alguém me deseja de coração que eu esteja "forever young" e eu desejo de volta, com todo meu coração. Sei que a vida ainda vale um pouco a pena quando nos refastelamos no sofá verde conversando sobre tudo que vem à cabeça. Quando planejamos ganhar na mega sena. Quando planejamos mudar de cidade. Eu acho que não sei ter outros amigos assim, melhores que esses. Nenhum outro vai fazer experimentos no quarto de casa, nenhuma outra vai ter um abraço tão reconfortante, nenhuma outra vai me levar no show do Bob Dylan, nenhum outro vai me abrigar em casa sempre que eu precisar, nenhum outro vai planejar um ano todo comigo e o ano que vier também.
Concluo que já pensei algumas vezes em abandoná-los, já fui frustrada algumas vezes, já me senti sozinha na aventura errante que apelidamos de "vida". Confesso que já pensei em sumir, procurar consolo em outros ombros, já tive raiva, muita raiva de todos vocês. E sei que você já devem ter tido de mim. Sei que nossas relações desgastam, como qualquer outra relação, e sei que, por vezes ficaremos afastados. São quatro da manhã, eu cheguei em casa e não tenho ideia do que quero fazer da minha vida. A mais vaga ideia. Não sei se quero londrina, se quero são paulo, se quero curitiba. Não sei se quero design, webdesign, se quero a folha de são paulo, se quero redigir textos pro resto da minha vida. Não sei o que quero fazer sábado que vem, quando quem sabe estiver em são paulo. Me sinto mais do que nunca perdida, jogadas às traças, bicho solto no mundo. Me sinto mais do que nunca, a mais solitária dos seres, a página mais em branco que pode existir. Não tenho emprego, perspectiva, não tenho amores, não tenho planos, não tenho nada. Mas tenho vocês. E sei, que deitada no sofá verde desgastado, me sentirei em casa.
25.1.12
Da lama à pista.
(ou a minha carta de retratação pública)
Estive por alguns dias em uma espécie de retiro. Não esses espirituais, em que as pessoas vão pra cima de uma montanha e esperam a iluminação divina. Pra esses não tenho paciência. Não converso com ninguém fora da internet desde domingo. Estive intratável, perdi um pouco a noção dos dias. Soube que hoje é quarta, porque teve feira na rua de casa. E sei que amanhã é quinta porque, mesmo com um pouco de preguiça, vou à um especial do Bob Dylan. Acho que nem o Bob Dylan me anima mais, e além do mais, o Bob Dylan me lembra de uma época quando nós eramos felizes. Esqueçam os amores, eu quero dizer que na minha vida, todos éramos felizes. Eu ouvia ballad of a thin man indo pra uel, achava minha vida miserável, mas eu era feliz. Tinha amigos que estavam sempre comigo, almoçava com eles pelo menos duas vezes por semana, e nunca tinha muitas dúvidas do que fazer nos sábados, porque eles me encontrariam. Eu tinha um namorado que me amava, e ouvíamos Bob Dylan. Eu tinha um amigo que sinto muita falta e baixamos a discografia do Bob Dylan. Eu era feliz, e ouvia Bob Dylan.
Metade dos meus amigos mudou, eu descobri que meu namorado não era o amor da minha vida, o cara que eu achava que era o amor da minha vida está quase casado, e meus sábados à noite são sempre uma incógnita. Perdi meu emprego, e estou nisso que chamam de "período sabático" em que você tenta desesperadamente encontrar alguma coisa que faça sentido na sua vida. As pessoas mais loucas, ou mais desprendidas, costumam se embrenhar em longas viagens sem rumo pra se distanciarem de tudo e ver se conseguem enxergar alguma coisa. Eu, covarde de tudo, sem paciência nem pra assinar os papéis que faltam no meu velho emprego, fico em casa. Fico em casa, ignoro convites, remoo alguns rancores, e divido meu tempo entre a internet, as mensagens de celular e ver tv com a minha mãe. Achava que o convívio com as pessoas ia me fazer muita falta, mas eu só sinto falta mesmo de um pouco de ar puro. Ar puro, corridas, e tomar café no shopping. Não sinto falta de ter "alguém comigo" porque todas as pessoas que eu convidaria pra um "café sabático" não estão na minha cidade.
É difícil conseguir dizer, ou mesmo entender o que me faz ficar assim, tão apática. Algumas pessoas (e eu não estou dizendo isso como uma agressão), me mandariam pro psicólogo, mas eu não acredito em psicólogos. Desculpem, não agora. Leio demais, comi da fruta da árvore do bem e do mal, que nos enfia na merda do conhecimento, e é isso. Sei que vou discutir com psicanalista, negar freud, perguntar dos arquétipos e dizer que o meu problema não é investimento de libido em lugar nenhum. Mesmo que eu não faça isso, tem me incomodado a ideia de pagar pra alguém conversar comigo. E algum psicólogo ao ler esse texto dirá que eu estou numa fase de negação. E posso estar. E devo estar. E é por isso que sei que, em não estando de coração aberto para a análise, a boicotaria como faço com (quase) tudo na minha vida. Resolvi então ficar sozinha, no conforto do meu lar, me deprimir o quanto eu posso e daí pensar no que raios está acontecendo comigo.
E é difícil, sabem? Porque é muita coisa e você tem que pegar todos os seus pensamentos e dividí-los em caixinhas, até que você consegue achar a verdadeira chave do problema. E até essa chave que você acha é meio duvidosa, então às vezes ela acaba levando à outra conclusão e tudo fica assim, uma bagunça enorme. Eu sei que eu tenho problemas com meus pais. Amo os dois, verdadeiramente, mas sinto falta de ser independente. Sei que tenho problemas com o meu emprego. Gosto de design, mas gosto até a página dois e por isso me frustro com muita facilidade. Sei que tenho problemas com relacionamentos amorosos: desconfio de tudo e de todos, prevejo alguma sabotagem, entro em paranoias terríveis, me descontrolo, desacredito do amor da pessoa por mim e por vezes estrago tudo antes mesmo da coisa engrenar. Sei também que, uma vez tendo frustrado tudo colocarei a culpa no destino e lembrarei desse meu "grande amor" aí que está quase casado (e que eu tenho plena consciência que nem deve ser assim mais tanto meu grande amor, mas me apeguei à idealização). Sei que tenho problemas com algumas amizades, porque não sei estabelecer limites muito claros, e deixo a pessoa me vampirizar, e tudo isso vai me corroendo de tal forma que, chega uma hora em que a única opção é explodir. Mas como eu não sei explodir, eu me afasto. Sei que tenho problemas com foco, com concentração, que sou de rompantes, que sou a little bit histérica, e por vezes um ser humano bastante difícil de lidar. Como vocês podem ver, entendo muito bem os meus dilemas, só finjo que eles não existem.
Finjo que eles não existem assim como finjo que esqueci de pagar a pós (pra não ter que lidar com a minha irresponsabilidade), e finjo que esqueci de ir ao meu ex trabalho (pra não ter que lidar com a rejeição e o fracasso). Finjo que não li os e-mails do meu professor (pra não ter que dizer que eu não fiz nada da minha monografia), finjo que não sei de vagas de emprego (porque não sei se as quero verdadeiramente). Sei que não termino um livro porque tenho medo da opinião dos outros e medo de descobrir que na verdade não escrevo bem, frustrando assim a única coisa que julgo amar fazer. Sei que tenho pouca iniciativa, que devia ser mais pró-ativa, mais independente, que deveria cortar o cordão umbilical da minha mãe de uma vez, mas tudo isso depende de um monte de ações que às vezes eu simplesmente tenho preguiça de fazer. Sei que devia parar de levar todas as minhas relações com esse descaso, que eu devia tomar alguma iniciativa de vez em quando, e não continuar esperando que as pessoas saibam que eu gosto delas só porque aceito os convites pra sair. Sei de tudo isso. Sei que meu desapego é uma defesa pra que não me abandonem, porque parto do pressuposto que tudo que eu amo irá me deixar. Porque nada dura pra sempre. Sei que tenho medo do novo, medo de tentar, medo de pegar as rédeas da minha própria vida, me jogar no mundo, ter peito pra dizer que não quero mais trabalhar com isso ou com aquilo, e que me recuso terminantemente à ter essa vida das oito as seis, ganhando pouco e sem dinheiro pra viajar ou ter uma casa confortável.
Sei que nasci cidadã do mundo, que quero viagens, todas as viagens, conhecer gente, sair sem rumo: mas não consigo sair de Londrina. Tudo isso tem me atormentado. É difícil saber de tudo que acontece e não conseguir levantar do sofá, fazer uma lista de prioridades, e disfarçar o nó na garganta que crescer dá na gente. É difícil estar presa numa vida que não é sua, numa pessoa que não é você. É dificil ser incapaz de dizer "estou com saudades, vamos tomar uma cerveja" e ir até às ultimas consequências, pagar pra ver, parar de bancar sempre, o tempo todo, àquela que não quer se apegar. É claro que eu não sou a mulherzinha que uma ou outra amiga espera de mim, e minha natureza me torna incapaz de querer namorar o tempo todo, querer sempre estar junto com alguém. Vivo bem sozinha, sou confortável na solidão e não é mentira. Mas por vezes levar a relação até o fim só pra ver no que vai dar, não fosse de todo mal. Sabem? Dar de presente o livro preferido da pessoa no aniversário? Coisas simples. Permitir-se se apaixonar por alguém e ser quem sabe, a namorada, a garota dele.
É preciso também admitir que, na maioria das vezes, quem mais exige da gente é quem menos dá em troca, e colocar o pau na mesa, estabelecer limites, dizer que nem sempre será feita a sua vontade, porque eu tenho as minhas também, e é de ações recíprocas que vive uma amizade verdadeira. Mas eu não consigo nem sair do sofá. Isso posto, digo à vocês que não se preocupem, eu tenho uma visão muito clara de tudo que está acontecendo. E é por isso que eu choro baixinho quando acordo, fico de pijamas, evito o contato social com tudo aquilo que me pressiona, e faço poucos convites. Tenho aprendido a ver prioridades, amar tudo aquilo que me ama de volta, e ser menos exigente comigo mesma. Tenho que tomar providências, muitas delas, todas essas, mas sei que eu tenho meu tempo. Se não acho prudente ter um emprego ou aprender a dirigir agora, não o farei. Se não acho prudente ir à algum lugar, não irei. Aprendi na ausência do mundo que vivo cercada de uma gente muito maravilhosa, e de uma vida que é um pouco enrolada, mas não chega a ser ruim. Tenho muita coisa pra resolver dentro de mim, tenho muita corrida pra fazer sozinha, muito brownie pra comer lendo livro na cafeteria, até ter coragem o suficiente pra dar o primeiro passo. Tenho uma viagem quase marcada pra São Paulo, que pode vir-a-ser meu caminho pra santiago de compostela. Ou pode não ser nada. Tenho um amigo que volta dos estados unidos logo depois do meu aniversário, também com uma vida pra recomeçar. Tenho 23 anos, decidi que começo a viver agora ou não vivo mais. Mas assim, um passo de cada vez. E pode ser que amanhã eu passe o dia de pijamas, não tome nenhuma providência, e só saia pra ver o Bob Dylan, da época em que eu era feliz e não sabia. E tudo bem também.
Sei de mim. Está tudo confuso, mas tudo tem jeito. É no caos que se cria. É da grande explosão que nasce o novo universo. Resolvi me isolar porque tem um mundo explodindo em mim, mas tudo está se reorganizando. Se sentirem a minha falta, me chamem pra sair. Eu sinto saudades também. E, embora não me sinta feliz, me sinto viva. A vida é besta. Mas pode ser boa.
Desculpem qualquer coisa. Apenas começamos.
Estive por alguns dias em uma espécie de retiro. Não esses espirituais, em que as pessoas vão pra cima de uma montanha e esperam a iluminação divina. Pra esses não tenho paciência. Não converso com ninguém fora da internet desde domingo. Estive intratável, perdi um pouco a noção dos dias. Soube que hoje é quarta, porque teve feira na rua de casa. E sei que amanhã é quinta porque, mesmo com um pouco de preguiça, vou à um especial do Bob Dylan. Acho que nem o Bob Dylan me anima mais, e além do mais, o Bob Dylan me lembra de uma época quando nós eramos felizes. Esqueçam os amores, eu quero dizer que na minha vida, todos éramos felizes. Eu ouvia ballad of a thin man indo pra uel, achava minha vida miserável, mas eu era feliz. Tinha amigos que estavam sempre comigo, almoçava com eles pelo menos duas vezes por semana, e nunca tinha muitas dúvidas do que fazer nos sábados, porque eles me encontrariam. Eu tinha um namorado que me amava, e ouvíamos Bob Dylan. Eu tinha um amigo que sinto muita falta e baixamos a discografia do Bob Dylan. Eu era feliz, e ouvia Bob Dylan.
Metade dos meus amigos mudou, eu descobri que meu namorado não era o amor da minha vida, o cara que eu achava que era o amor da minha vida está quase casado, e meus sábados à noite são sempre uma incógnita. Perdi meu emprego, e estou nisso que chamam de "período sabático" em que você tenta desesperadamente encontrar alguma coisa que faça sentido na sua vida. As pessoas mais loucas, ou mais desprendidas, costumam se embrenhar em longas viagens sem rumo pra se distanciarem de tudo e ver se conseguem enxergar alguma coisa. Eu, covarde de tudo, sem paciência nem pra assinar os papéis que faltam no meu velho emprego, fico em casa. Fico em casa, ignoro convites, remoo alguns rancores, e divido meu tempo entre a internet, as mensagens de celular e ver tv com a minha mãe. Achava que o convívio com as pessoas ia me fazer muita falta, mas eu só sinto falta mesmo de um pouco de ar puro. Ar puro, corridas, e tomar café no shopping. Não sinto falta de ter "alguém comigo" porque todas as pessoas que eu convidaria pra um "café sabático" não estão na minha cidade.
É difícil conseguir dizer, ou mesmo entender o que me faz ficar assim, tão apática. Algumas pessoas (e eu não estou dizendo isso como uma agressão), me mandariam pro psicólogo, mas eu não acredito em psicólogos. Desculpem, não agora. Leio demais, comi da fruta da árvore do bem e do mal, que nos enfia na merda do conhecimento, e é isso. Sei que vou discutir com psicanalista, negar freud, perguntar dos arquétipos e dizer que o meu problema não é investimento de libido em lugar nenhum. Mesmo que eu não faça isso, tem me incomodado a ideia de pagar pra alguém conversar comigo. E algum psicólogo ao ler esse texto dirá que eu estou numa fase de negação. E posso estar. E devo estar. E é por isso que sei que, em não estando de coração aberto para a análise, a boicotaria como faço com (quase) tudo na minha vida. Resolvi então ficar sozinha, no conforto do meu lar, me deprimir o quanto eu posso e daí pensar no que raios está acontecendo comigo.
E é difícil, sabem? Porque é muita coisa e você tem que pegar todos os seus pensamentos e dividí-los em caixinhas, até que você consegue achar a verdadeira chave do problema. E até essa chave que você acha é meio duvidosa, então às vezes ela acaba levando à outra conclusão e tudo fica assim, uma bagunça enorme. Eu sei que eu tenho problemas com meus pais. Amo os dois, verdadeiramente, mas sinto falta de ser independente. Sei que tenho problemas com o meu emprego. Gosto de design, mas gosto até a página dois e por isso me frustro com muita facilidade. Sei que tenho problemas com relacionamentos amorosos: desconfio de tudo e de todos, prevejo alguma sabotagem, entro em paranoias terríveis, me descontrolo, desacredito do amor da pessoa por mim e por vezes estrago tudo antes mesmo da coisa engrenar. Sei também que, uma vez tendo frustrado tudo colocarei a culpa no destino e lembrarei desse meu "grande amor" aí que está quase casado (e que eu tenho plena consciência que nem deve ser assim mais tanto meu grande amor, mas me apeguei à idealização). Sei que tenho problemas com algumas amizades, porque não sei estabelecer limites muito claros, e deixo a pessoa me vampirizar, e tudo isso vai me corroendo de tal forma que, chega uma hora em que a única opção é explodir. Mas como eu não sei explodir, eu me afasto. Sei que tenho problemas com foco, com concentração, que sou de rompantes, que sou a little bit histérica, e por vezes um ser humano bastante difícil de lidar. Como vocês podem ver, entendo muito bem os meus dilemas, só finjo que eles não existem.
Finjo que eles não existem assim como finjo que esqueci de pagar a pós (pra não ter que lidar com a minha irresponsabilidade), e finjo que esqueci de ir ao meu ex trabalho (pra não ter que lidar com a rejeição e o fracasso). Finjo que não li os e-mails do meu professor (pra não ter que dizer que eu não fiz nada da minha monografia), finjo que não sei de vagas de emprego (porque não sei se as quero verdadeiramente). Sei que não termino um livro porque tenho medo da opinião dos outros e medo de descobrir que na verdade não escrevo bem, frustrando assim a única coisa que julgo amar fazer. Sei que tenho pouca iniciativa, que devia ser mais pró-ativa, mais independente, que deveria cortar o cordão umbilical da minha mãe de uma vez, mas tudo isso depende de um monte de ações que às vezes eu simplesmente tenho preguiça de fazer. Sei que devia parar de levar todas as minhas relações com esse descaso, que eu devia tomar alguma iniciativa de vez em quando, e não continuar esperando que as pessoas saibam que eu gosto delas só porque aceito os convites pra sair. Sei de tudo isso. Sei que meu desapego é uma defesa pra que não me abandonem, porque parto do pressuposto que tudo que eu amo irá me deixar. Porque nada dura pra sempre. Sei que tenho medo do novo, medo de tentar, medo de pegar as rédeas da minha própria vida, me jogar no mundo, ter peito pra dizer que não quero mais trabalhar com isso ou com aquilo, e que me recuso terminantemente à ter essa vida das oito as seis, ganhando pouco e sem dinheiro pra viajar ou ter uma casa confortável.
Sei que nasci cidadã do mundo, que quero viagens, todas as viagens, conhecer gente, sair sem rumo: mas não consigo sair de Londrina. Tudo isso tem me atormentado. É difícil saber de tudo que acontece e não conseguir levantar do sofá, fazer uma lista de prioridades, e disfarçar o nó na garganta que crescer dá na gente. É difícil estar presa numa vida que não é sua, numa pessoa que não é você. É dificil ser incapaz de dizer "estou com saudades, vamos tomar uma cerveja" e ir até às ultimas consequências, pagar pra ver, parar de bancar sempre, o tempo todo, àquela que não quer se apegar. É claro que eu não sou a mulherzinha que uma ou outra amiga espera de mim, e minha natureza me torna incapaz de querer namorar o tempo todo, querer sempre estar junto com alguém. Vivo bem sozinha, sou confortável na solidão e não é mentira. Mas por vezes levar a relação até o fim só pra ver no que vai dar, não fosse de todo mal. Sabem? Dar de presente o livro preferido da pessoa no aniversário? Coisas simples. Permitir-se se apaixonar por alguém e ser quem sabe, a namorada, a garota dele.
É preciso também admitir que, na maioria das vezes, quem mais exige da gente é quem menos dá em troca, e colocar o pau na mesa, estabelecer limites, dizer que nem sempre será feita a sua vontade, porque eu tenho as minhas também, e é de ações recíprocas que vive uma amizade verdadeira. Mas eu não consigo nem sair do sofá. Isso posto, digo à vocês que não se preocupem, eu tenho uma visão muito clara de tudo que está acontecendo. E é por isso que eu choro baixinho quando acordo, fico de pijamas, evito o contato social com tudo aquilo que me pressiona, e faço poucos convites. Tenho aprendido a ver prioridades, amar tudo aquilo que me ama de volta, e ser menos exigente comigo mesma. Tenho que tomar providências, muitas delas, todas essas, mas sei que eu tenho meu tempo. Se não acho prudente ter um emprego ou aprender a dirigir agora, não o farei. Se não acho prudente ir à algum lugar, não irei. Aprendi na ausência do mundo que vivo cercada de uma gente muito maravilhosa, e de uma vida que é um pouco enrolada, mas não chega a ser ruim. Tenho muita coisa pra resolver dentro de mim, tenho muita corrida pra fazer sozinha, muito brownie pra comer lendo livro na cafeteria, até ter coragem o suficiente pra dar o primeiro passo. Tenho uma viagem quase marcada pra São Paulo, que pode vir-a-ser meu caminho pra santiago de compostela. Ou pode não ser nada. Tenho um amigo que volta dos estados unidos logo depois do meu aniversário, também com uma vida pra recomeçar. Tenho 23 anos, decidi que começo a viver agora ou não vivo mais. Mas assim, um passo de cada vez. E pode ser que amanhã eu passe o dia de pijamas, não tome nenhuma providência, e só saia pra ver o Bob Dylan, da época em que eu era feliz e não sabia. E tudo bem também.
Sei de mim. Está tudo confuso, mas tudo tem jeito. É no caos que se cria. É da grande explosão que nasce o novo universo. Resolvi me isolar porque tem um mundo explodindo em mim, mas tudo está se reorganizando. Se sentirem a minha falta, me chamem pra sair. Eu sinto saudades também. E, embora não me sinta feliz, me sinto viva. A vida é besta. Mas pode ser boa.
Desculpem qualquer coisa. Apenas começamos.
24.1.12
nevermind I'll find someone like you.
Sabe, garoto, hoje eu vi de novo a cena final de vanilla sky. E não teve porquê. Postaram na timeline do meu facebook e eu vi de novo a cena. Porque as lembranças e as coisas acontecem assim. Vêm. Aconteceu de hoje ser a cena final de vanilla sky, o filme que nunca vimos juntos. Nunca veríamos. Nunca veremos. Tentei encontrar com você, no meio dos dvds meio caros da livraria, o dvd original de vanilla sky, da primeira vez que saímos. Encontramos, mas você preferiu um cd do coltrane. Encontrei o mesmo dvd na pratileira de uma americanas em promoção e pensei em levar pra te dar. Achei inadequado, nunca comprei. Não lembro de filme direito, lembro porém de todos os outros que você me mostrou, e de todos aqueles que você me ensinou a amar. Senti saudades. Fiquei imaginando como seria se um dia você fosse o meu tom cruise e eu a sua penélope cruz. Talvez tivesse sido bonito, talvez tivéssemos nos amado até o fim dos tempos. Mesmo que eu estivesse morta, e você congelado. Não sei o que aconteceria. Teus livros ainda estão na minha estante, e eu sei que tem muita coisa que eu não seria se não fosse por você. Minha literatura (a que eu odeio e amo), renasceu com você, meu gosto por piadas malfeitas, as bandas indies. Tudo isso que hoje eu recriei é um pouco seu, e vem um pouco de você. Antes doía. Antes eu ouvia adele e doia, ouvia coldplay e doía, ouvia qualquer banda que fosse e doía. Me lamentei muito ao som de baladas bregas, quis você em todos os meus relacionamentos frustrados (e não foram poucos). Chorei de novo nas cenas dos nossos filmes preferidos, comprei um deles e nunca nem consegui tirar do plastiquinho. Guardei na gaveta. Com os livros que você me emprestou e eu nunca devolvi, com a filosofia pós moderna que eu desisti de ler desde que você se foi. Você levou meu jean baudrillard e eu fiquei com um maffesoli mudo. Não tem mais pra quem contar sobre o livro que inspirou matrix. Por algum tempo ficou sem fazer sentido ir na orquestra, ver filme novo do tarantino, contar minhas impressões sobre o oscar. Desisti até de parecer inteligente. Hoje está tudo bem. I heard that you settle down, that you found a girl and you're married now. Eu, por minha vez, não casei, não arranjei outro namorado, me aventurei bastante e enjoei bastante da vida. Às vezes teimava que você nunca mais ia ser feliz do jeito que fomos, com os sorrisos que mostramos em nossas fotos empoeiradas e nos momentos que ficaram guardados, meio que pra sempre. Hoje eu sei que você deve ser feliz, do jeito que você pode. E eu sou também. Eu tento. A saudade não me corrói mais, eu não acho que você seja o último homem do mundo pra mim, embora por vezes eu tenha chorado nos jogos do campeonato espanhol porque não vejo mais sentido nenhum num barcelona sem real madrid. Não suporto mais o messi, e às vezes fico pensando se eu amava mesmo tudo aquilo, ou se eu amava porque você amava também. Também te vejo tão diferente do que você era, e fico pensando se de repente isso que a gente é agora não é o que a gente é verdadeiramente, e o que éramos juntos era uma espécie de ilusão. Acho que nunca saberemos, garoto. Você não me dói mais. Eu sinto saudades, porque desde que você se foi, eu tenho que arrumar vários outros melhores amigos pra botar no seu lugar, e às vezes eu canso. Canso da vida, e ninguém nunca mais disse que "seus amigos não gostam de te ver depressiva, então pare". Também não vejo nas pessoas a impaciência por não saber o que me dizer, querendo achar as palavras certas nos meus surtos (que a gente sabe que não são poucos), elas só me deixam pra lá, e dificilmente sorriem me dizem que "a sua vida é muito boa, não tem porquê isso". Eu brigava com você na época, mas você já enxergava o que eu só consegui ver agora. Minha vida era muito boa. Yesterday was the time of our lives. Mas eu sobrevivo. Sobrevivo porque tudo deve ter acabado quando tinha que acabar, and guess she gave you things, I didn't gave to you. Não quero achar ninguém como você, porque eu sei que não tem. Quero achar outra pessoa, me divertir com outra pessoa, amá-la tanto quanto eu te amei. Ou mais. Quero amá-la mais, se você não se importar. Porque sabe, garoto, talvez o nosso amor não fosse mesmo pra essa vida. Porque cada minuto que passa é uma chance de mudar tudo pra sempre. E eu te encontro em outra vida, quando nós dois formos gatos.
trust no one.
É como se, com sentimento, eu fosse uma massinha de modelar. Com algum cuidado ela pode virar um pedaço de coisa concreta, mas deixada de lado é apenas um rolinho de massa colorida que em potência podia ter virado uma coisa concreta, mas em ato é só aquilo que sempre foi. Uma semana, duas, um mês. Te olharia nos olhos e me certificaria que existe qualquer-coisa-que-seja dentro de você. Não acreditaria. Esperaria - no paradoxo mais incrível do ser - por uma prova concreta. O que querem dizer seus risos, seus olhares, seus convites? Eu preciso da palavra - eu, que guardo a palavra até o último minuto - eu preciso da palavra pra ter certeza. E até ela, a palavra, é incerta. Eu já menti milhares e milhares de vezes, e você pode mentir também, e então esperaria por um olhar apaixonado, mas sem nunca fazer nada para que ele acontecesse. Seria pra você como uma musa, uma obra de arte, uma coisa que merece ser admirada pelo simples fato de existir. A não-reprocidade do amor que existe entre uma coisa viva, e uma natureza morta.
(re)utilizando trechos de mim mesma, no mesmo mantra: ainda não sei (ou nunca soube) confiar em ninguém.
(re)utilizando trechos de mim mesma, no mesmo mantra: ainda não sei (ou nunca soube) confiar em ninguém.
22.1.12
don't worry,you still breaking hearts.
(with the efficiency that only youth can harness)
Daí tinha esse cara. eu conheci esse cara no salão de cabeleireiros, numa das primeiras vezes que fui tirar a sobrancelha. Ele usava uma jaqueta azul e preta, e eu só lembro disso porque minha memória não esquece de (quase) nada. Sei a roupa de todos os meus ex-amores (ou quase amores) em seus primeiros encontros. Guardo fatos, memórias, lembranças, bilhetes dentro dos livros, frases de efeito. Guardo que esse mesmo cara do salão de cabeleireiros estudava no meu colégio, e tivemos o que se chama de encantamento mútuo. Ou amor à primeira vista. Mas amor não, porque amor é uma coisa muito definitiva. Tivemos isso. Não sei falar direito, não sei demonstrar, só sabia sentar perto do grupo de amigos dele na hora do intervalo e supor que ele também gostava de mim. Um dia perguntei o nome dele. Duas semanas depois entreguei uma carta me declarando. Não sei o que dizia na carta, faz oito anos desde o ocorrido. Lembro de ter escolhido bem as palavras e de ter dobrado a carta do jeito que todas as meninas dobravam as cartas na época. Havia uma certa moda da dobradura das cartas, a gente se mandava muita carta no colégio. Ainda não existia facebook.
O garoto da jaqueta azul me chamou pra conversar (acho que) uma semana depois da entrega. Ou um pouco antes. Sei que fui, e dotada de certa inexperiência não sabia o que falar. Não soubemos. Qualquer coisa me desencantou nele. Não sei se era o jeito de olhar, ou o nariz meio torto, ou um dente esquisito. Não sei se era isso, ou a minha mania suicida de correr logo depois do objetivo alcançado. Desisti. Deixei o garoto da jaqueta azul pra lá, como quem empurra uma comida que enjoou de comer. Nunca cogitei o fato do tal garoto de jaqueta azul gostar de mim. Pra mim estava tudo bem. Queria, agora não quero mais. Vivemos. Pra ele não foi bem assim. Nos próximos dois anos dele no colégio, ele me olhava com mágoa. Eu não sabia muito bem o que era mágoa, e nem entendia direito o que eu tinha feito. Eu encarava tudo como uma brincadeira, um jogo, um brinquedo que eu queria muito ter e depois não queria mais. Acabava por achar bem engraçado o jeito esquisito com que toda a trupe de amigos dele me olhava. Encontrei com esse garoto na faculdade, algumas vezes. Ele ainda não sabia lidar bem com a minha presença. Mudava de lado do ônibus, evitava, ficava longe. Depois de alguns anos eu fui me dar conta que, talvez esse meu "não querer mais o brinquedo" tivesse magoado ele de verdade. Não tinha mais o que fazer. Estava feito, o estrago. Ele me detestaria, ou pelo menos se incomodaria comigo por causa do coração que eu (quem sabe) despedacei quando ele ainda estava no colegial. O reparo não é refeito, nao existe superbonder pra colar o sentimento. Minhas desculpas seriam falhas demais, e meu arrependimento não mudaria os fatos. Nada podia reparar a minha negligência.
Encontrei com esse cara ontem, já sem a jaqueta azul e preta, mas com os mesmos amigos. Não sei se ele ainda se incomoda comigo. Por vezes tive a impressão que sim. Talvez se eu estivesse mais bêbada, eu me daria ao trabalho de perguntar. Mas, sóbria e coerente achei melhor deixar tudo como estava. Eu vou sumir pela cidade, ele também, faz oito anos do ocorrido e ele encontrará um novo amor. Ou isso, ou algum psicanalista, algum freud, lacan, skinner ou jung darão jeito no mal que eu causei. Fato é que, enquanto eu dançava as músicas ruins e o ambiente me enjoava eu pensava em quantos corações eu já tinha quebrado por pura negligência. Eu juro, eu não faço por mal. Não levanto de manhã e penso "hoje magoarei essa pessoa". Eu só nunca imagino que as pessoas estejam de fato envolvidas comigo. Não o suficiente pra se magoarem. Eu trato sentimento como aquelas crianças descuidadas. Como um brinquedo. Se quebrar, a gente leva na loja e troca por outro. Ou compra um mais bonito. Não assim, frio assim, seco assim, mas assim. Qualquer coisa em mim não sabe cuidar, regar a planta, ser responsável por aquilo que cativas. Li pequeno príncipe aos 12 anos, depois aos quase vinte, mas essa lição eu não aprendi. Até porque, nunca soube lidar com o sentido de "eternamente", palavra que me atormenta e me arrepia até a ponta do nariz.
Fazendo uma retrospectiva, magoei todas as pessoas que já gostaram de mim. Até as que eu não deixei. Quer dizer, as que eu nunca não-deixei alguém. Uma vez fui quase deixada, numa cadeira, chorando, no meio de um monte de bêbados. Eu digo quase porque eu fui deixada de fato, mas anos antes eu tinha deixado também. Foi uma revenge. Talvez não dele, talvez da vida, do destino, não sei como chamar. Mas foi. Não tivesse eu tratado o começo do sentimento com negligência, talvez não tivéssemos nos abandonado. Hoje enxergo assim. Se ele me abandonou, o abandonei também, quando no começo não o quis e escolhi o outro. Sou desapegada talvez por um certo medo de ser deixada, talvez por defesa, talvez por saber que, um dia enjoarei do brinquedo e o deixarei ali, no canto, na caixa de doações. Desapegada, ou alice do closer, que prefere sempre deixar ao invés de ser deixada. Deixei sem nenhum remorso alguns vários amores na minha vida. Porque enjoei, porque conheci outro melhor, porque encasquetei de ficar sozinha. Ajo com total negligência com qualquer relacionamento, falo demais, exijo demais, brigo quando não deve e já magoei de propósito. Sei onde enfiar a agulha pra fazer sangrar a ferida, conheço de pontos fracos, e se me perguntarem direi que não chorarei o luto da partida quando me deixarem. Ou não entrarei na fossa da solidão, se eu os deixar. E não entrarei. Não entrarei porque nunca entrei, porque criei resistência, porque não me permito, porque parto pra outra.
Não sei é cuidar de corações.
Não soube com o menino da oitava série, não soube com os meus outros namorados, com o único homem que julguei amar na vida, não soube com os pequenos casos, com os rolos sérios, com as paixonites de ocasião. Sei que sou altamente destrutiva. Sei que me destrui também no processo, fiquei cansada, amargurada, sem paciência. Sei que já fui mais esperançosa, já pelo menos quis tratar os corações com alguma calma e com algum cuidado, já deixei bilhetes dentro de latinhas com presente, já fiz o doce preferido do amado depois do almoço. Segurava o coração como quem segurava um ovo, com medo de quebrar a qualquer momento, mas tentava. Tentei duas vezes, três, não mais que isso. Agora sei que estou cansada demais, intratável demais, negligente demais. Agora tenho medo do meu "não saber lidar" às vezes afasto de propósito, às vezes sumo sem dar explicações, e na maioria das vezes simplesmente não faço questão. Deixo que o amor floresça ou embolore, do jeito que o outro bem quiser. E se for o caso de dar errado, não vai ser a primeira vez (e nem a última).
Acontece que, ontem, olhando pro cara crescido que já usou jaquetas azul-com-preto, fiquei cansada. Cansei de ser assim, esse desajeito todo, destrutiva assim, saindo das casas e deixando copos quebrados. Fiquei cansada dos meus abandonos e da legião de corações destroçados que deixei por aí, sangrantes, e ainda pisei em cima. Eles com certeza já me superaram, hoje batem muito bem, provavelmente por uma mocinha menos complicada. As mocinhas menos complicadas tiveram que lidar com o coração magoado, mas essas mocinhas costumam entender melhor deles, e devem ter dado jeito. O jeito que eu nunca soube dar. Todos os meus ex qualquer coisa (tirando um ou outro), hoje namoram essas mocinhas menos complicadas, e parecem felizes. Às vezes acho que é a minha sina. Destruir as esperanças de alguém pra que outro alguém revigore a fé deles. Só que de repente, é domingo de tarde e você descobre que cansou disso tudo. De ser intratável, negligente, de deixar os corações cairem no chão e espatifarem que nem ovos. Acontece que eu acho, que a essas alturas eu já também derrubei meu coração no chão e ele espatifou. Me sinto cansada, terrivelmente cansada. Cansada de ser isso, assim, cansada de não ter esperança, cansada de racionalizar os jogos de amor como quem joga poker. Estratégias, respostas, ação-e-reação. Não sei se tem cura. Talvez, à essa altura, seja preciso um outro coração quebrado pra entender o meu. Talvez à essa altura só me reste desistir, continuar, do jeito torto que sei, dançando tango argentino nos corações alheios - e depois partindo. Mas é que pelo menos uma vez, eu queria saber como é ficar. Tem como?
Daí tinha esse cara. eu conheci esse cara no salão de cabeleireiros, numa das primeiras vezes que fui tirar a sobrancelha. Ele usava uma jaqueta azul e preta, e eu só lembro disso porque minha memória não esquece de (quase) nada. Sei a roupa de todos os meus ex-amores (ou quase amores) em seus primeiros encontros. Guardo fatos, memórias, lembranças, bilhetes dentro dos livros, frases de efeito. Guardo que esse mesmo cara do salão de cabeleireiros estudava no meu colégio, e tivemos o que se chama de encantamento mútuo. Ou amor à primeira vista. Mas amor não, porque amor é uma coisa muito definitiva. Tivemos isso. Não sei falar direito, não sei demonstrar, só sabia sentar perto do grupo de amigos dele na hora do intervalo e supor que ele também gostava de mim. Um dia perguntei o nome dele. Duas semanas depois entreguei uma carta me declarando. Não sei o que dizia na carta, faz oito anos desde o ocorrido. Lembro de ter escolhido bem as palavras e de ter dobrado a carta do jeito que todas as meninas dobravam as cartas na época. Havia uma certa moda da dobradura das cartas, a gente se mandava muita carta no colégio. Ainda não existia facebook.
O garoto da jaqueta azul me chamou pra conversar (acho que) uma semana depois da entrega. Ou um pouco antes. Sei que fui, e dotada de certa inexperiência não sabia o que falar. Não soubemos. Qualquer coisa me desencantou nele. Não sei se era o jeito de olhar, ou o nariz meio torto, ou um dente esquisito. Não sei se era isso, ou a minha mania suicida de correr logo depois do objetivo alcançado. Desisti. Deixei o garoto da jaqueta azul pra lá, como quem empurra uma comida que enjoou de comer. Nunca cogitei o fato do tal garoto de jaqueta azul gostar de mim. Pra mim estava tudo bem. Queria, agora não quero mais. Vivemos. Pra ele não foi bem assim. Nos próximos dois anos dele no colégio, ele me olhava com mágoa. Eu não sabia muito bem o que era mágoa, e nem entendia direito o que eu tinha feito. Eu encarava tudo como uma brincadeira, um jogo, um brinquedo que eu queria muito ter e depois não queria mais. Acabava por achar bem engraçado o jeito esquisito com que toda a trupe de amigos dele me olhava. Encontrei com esse garoto na faculdade, algumas vezes. Ele ainda não sabia lidar bem com a minha presença. Mudava de lado do ônibus, evitava, ficava longe. Depois de alguns anos eu fui me dar conta que, talvez esse meu "não querer mais o brinquedo" tivesse magoado ele de verdade. Não tinha mais o que fazer. Estava feito, o estrago. Ele me detestaria, ou pelo menos se incomodaria comigo por causa do coração que eu (quem sabe) despedacei quando ele ainda estava no colegial. O reparo não é refeito, nao existe superbonder pra colar o sentimento. Minhas desculpas seriam falhas demais, e meu arrependimento não mudaria os fatos. Nada podia reparar a minha negligência.
Encontrei com esse cara ontem, já sem a jaqueta azul e preta, mas com os mesmos amigos. Não sei se ele ainda se incomoda comigo. Por vezes tive a impressão que sim. Talvez se eu estivesse mais bêbada, eu me daria ao trabalho de perguntar. Mas, sóbria e coerente achei melhor deixar tudo como estava. Eu vou sumir pela cidade, ele também, faz oito anos do ocorrido e ele encontrará um novo amor. Ou isso, ou algum psicanalista, algum freud, lacan, skinner ou jung darão jeito no mal que eu causei. Fato é que, enquanto eu dançava as músicas ruins e o ambiente me enjoava eu pensava em quantos corações eu já tinha quebrado por pura negligência. Eu juro, eu não faço por mal. Não levanto de manhã e penso "hoje magoarei essa pessoa". Eu só nunca imagino que as pessoas estejam de fato envolvidas comigo. Não o suficiente pra se magoarem. Eu trato sentimento como aquelas crianças descuidadas. Como um brinquedo. Se quebrar, a gente leva na loja e troca por outro. Ou compra um mais bonito. Não assim, frio assim, seco assim, mas assim. Qualquer coisa em mim não sabe cuidar, regar a planta, ser responsável por aquilo que cativas. Li pequeno príncipe aos 12 anos, depois aos quase vinte, mas essa lição eu não aprendi. Até porque, nunca soube lidar com o sentido de "eternamente", palavra que me atormenta e me arrepia até a ponta do nariz.
Fazendo uma retrospectiva, magoei todas as pessoas que já gostaram de mim. Até as que eu não deixei. Quer dizer, as que eu nunca não-deixei alguém. Uma vez fui quase deixada, numa cadeira, chorando, no meio de um monte de bêbados. Eu digo quase porque eu fui deixada de fato, mas anos antes eu tinha deixado também. Foi uma revenge. Talvez não dele, talvez da vida, do destino, não sei como chamar. Mas foi. Não tivesse eu tratado o começo do sentimento com negligência, talvez não tivéssemos nos abandonado. Hoje enxergo assim. Se ele me abandonou, o abandonei também, quando no começo não o quis e escolhi o outro. Sou desapegada talvez por um certo medo de ser deixada, talvez por defesa, talvez por saber que, um dia enjoarei do brinquedo e o deixarei ali, no canto, na caixa de doações. Desapegada, ou alice do closer, que prefere sempre deixar ao invés de ser deixada. Deixei sem nenhum remorso alguns vários amores na minha vida. Porque enjoei, porque conheci outro melhor, porque encasquetei de ficar sozinha. Ajo com total negligência com qualquer relacionamento, falo demais, exijo demais, brigo quando não deve e já magoei de propósito. Sei onde enfiar a agulha pra fazer sangrar a ferida, conheço de pontos fracos, e se me perguntarem direi que não chorarei o luto da partida quando me deixarem. Ou não entrarei na fossa da solidão, se eu os deixar. E não entrarei. Não entrarei porque nunca entrei, porque criei resistência, porque não me permito, porque parto pra outra.
Não sei é cuidar de corações.
Não soube com o menino da oitava série, não soube com os meus outros namorados, com o único homem que julguei amar na vida, não soube com os pequenos casos, com os rolos sérios, com as paixonites de ocasião. Sei que sou altamente destrutiva. Sei que me destrui também no processo, fiquei cansada, amargurada, sem paciência. Sei que já fui mais esperançosa, já pelo menos quis tratar os corações com alguma calma e com algum cuidado, já deixei bilhetes dentro de latinhas com presente, já fiz o doce preferido do amado depois do almoço. Segurava o coração como quem segurava um ovo, com medo de quebrar a qualquer momento, mas tentava. Tentei duas vezes, três, não mais que isso. Agora sei que estou cansada demais, intratável demais, negligente demais. Agora tenho medo do meu "não saber lidar" às vezes afasto de propósito, às vezes sumo sem dar explicações, e na maioria das vezes simplesmente não faço questão. Deixo que o amor floresça ou embolore, do jeito que o outro bem quiser. E se for o caso de dar errado, não vai ser a primeira vez (e nem a última).
Acontece que, ontem, olhando pro cara crescido que já usou jaquetas azul-com-preto, fiquei cansada. Cansei de ser assim, esse desajeito todo, destrutiva assim, saindo das casas e deixando copos quebrados. Fiquei cansada dos meus abandonos e da legião de corações destroçados que deixei por aí, sangrantes, e ainda pisei em cima. Eles com certeza já me superaram, hoje batem muito bem, provavelmente por uma mocinha menos complicada. As mocinhas menos complicadas tiveram que lidar com o coração magoado, mas essas mocinhas costumam entender melhor deles, e devem ter dado jeito. O jeito que eu nunca soube dar. Todos os meus ex qualquer coisa (tirando um ou outro), hoje namoram essas mocinhas menos complicadas, e parecem felizes. Às vezes acho que é a minha sina. Destruir as esperanças de alguém pra que outro alguém revigore a fé deles. Só que de repente, é domingo de tarde e você descobre que cansou disso tudo. De ser intratável, negligente, de deixar os corações cairem no chão e espatifarem que nem ovos. Acontece que eu acho, que a essas alturas eu já também derrubei meu coração no chão e ele espatifou. Me sinto cansada, terrivelmente cansada. Cansada de ser isso, assim, cansada de não ter esperança, cansada de racionalizar os jogos de amor como quem joga poker. Estratégias, respostas, ação-e-reação. Não sei se tem cura. Talvez, à essa altura, seja preciso um outro coração quebrado pra entender o meu. Talvez à essa altura só me reste desistir, continuar, do jeito torto que sei, dançando tango argentino nos corações alheios - e depois partindo. Mas é que pelo menos uma vez, eu queria saber como é ficar. Tem como?
21.1.12
você precisa é de um homem pra chamar de seu
(não consigo escrever há uns dois dias e pra manter esse querido blog atualizado, os deixo com um texto escrito há quase dois anos atrás - e nunca postado).
Licença, hoje eu quero falar é de mim.
Não que eu não fale das outras vezes, entendam bem, é SÓ o que eu faço. Mas hoje, especialmente, quero dizer, eu, primeira pessoa do singular, assim, personagem de nada, só existindo como se deve. Eu, há 21 anos, tenho evitado sempre que posso o termo "melhor amiga". Não por nada, apenas assim, nunca a tendo tido, evitei. Também evitei o termo "melhor amigo", mas aí por razão contrária, completamente díspar: por não saber escolher. Agora amiga, sempre tive uma só. Em momentos diferentes, mas sempre. Uma, e mais uma legião de meninos do lado. Tenho uma alma masculina, quem sabe, prática. E gosto da troca de experiências entre mulheres e homens. Não no sentido físico, mas no existencial, quem sabe. Homens são mais práticos no lidar, não competem com você e não sofrem de TPM. Eu também não sofro, e não compreendo a histeria das outras mulheres, e muito menos a necessidade delas de justificar o mau humor em hormônios. Devo acrescentar, sou bicho-homem. Ou aprendi a ser por falta de meninas do lado. Quando criança só tinha primos, e brincava de bola. Filha única, bonecas apareciam vez ou outra, mas como brincadeira solitária. Aprendi a ser menininha com a minha tia, e a ser menino com meu pai, que em não tendo um filho homem, me ensinou o futebol, o gosto pelos esportes e a praticidade. Na escola sempre tive amigos meninos, mesmo quando as outras meninas odiavam os guris. Lembro do Rafael, do Felipe. Lembro de me juntar na parte de trás da salas e jogar aquele jogo de almofadinha com eles, três ou seis marias, não sei bem o nome daquilo. De melhor amiga tive algumas, que fizeram rodízio, e nunca mais de uma. Pelo menos não como assim, melhor amiga. Fora isso nunca tive a estranha cumplicidade das mulheres que se unem contra os homens-cachorros. Homens não são cachorros, não são invejosos e principalmente, não perdem tempo com tantas bobagens.
Mulher é bicho-fêmea, quer marcar território, ser grande, ser a única, ser a alfa. Homem não. Homem divide, compreende, toma cerveja e se ferra junto sempre que pode. Homem se doa num sentido não egoísta. Doa sem saber que se doa, por companheirismo puro. Não deseja nada em troca. Meus fiéis escudeiros sempre foram da raça masculina. Os meus meninos do segundo, do terceiro colegial, depois da faculdade. Já as meninas, até se doam. Mas olha, me decepcionei demais nesses vários anos de amizade feminina. Mulher sabe ser multifuncional, mas só antes de encontrar o amado. Depois disso se atrapalha toda em função dele, e vira sim, vira mulherzinha. A primeira amiga que perdi por conta de bicho-homem foi na sétima série, quando apareceu-lhe o primeiro namorado. Eu, bicho solto, ficava ali, sobrando, como filho ciumento que tenta pegar um pouco da atenção que a mãe atribui ao pai. Confesso, não foi bom. Faltava-me. Faltava me o ombro, o aconchego, e principalmente - a exclusividade. Não que nenhuma pessoa que comigo convive deva existir apenas para mim, mas deve, existir quando assim sinto preciso. Faltava. Não havia mais o tempo para os shoppings, as longas conversas. Faltavam-me as cartas, os telefonemas, as mensagens. E em pouco tempo faltava a preocupação, a atenção e o cuidado. Meses depois, minha melhor amiga não existia. Existia a namorada de fulano, coisa-pertence, ser-humano perdido.
E assim foram acontecendo sucessivamente, a troca. Não é que eu exigisse o tempo todo pra mim, mas é que o tempo para mim apenas deixou de existir. Deixou também de existir em todas elas a persona "amiga". Sobrou apenas a persona "namorada", a amélia que reside em cada mulher e que gosta de cuidar - e ser cuidada - por seu homem, sempre que assim precisar. Ou melhor dizendo, sempre. E foi assim que me desapeguei não só do termo "melhor amiga", como do fato. Tenho sim, amigas, umas até muito incríveis e que estão ali. Mas temo. Temo perdê-las para qualquer bicho-homem que aparecer em seus caminhos. E afirmo: temo e vou. Não sei se isso é parte integrante da vida de toda mulher: um dia entregar-se inteira a ser apenas o pertence de outro ser, mas aconteceu com todas as espécies-amigas que cruzaram o meu caminho. Elas negam, dizem que não e bradam sempre que podem: "sou uma mulher independente". Não o são. A dependência do século XXI não reside mais nas coisas de outrora. É claro que (quase) nenhuma delas se presta a passar tardes cozinhando e lavando a roupa de seus respectivos e nem tampouco dependem deles financeiramente. Até o contrário. Vangloriam-se de não saber fritar um ovo e de pagar metade da conta no cinema e do restaurante. Depois gritam: "não dependo de homem nenhum". Tolas. A grande dependência é a emocional. Não cozinham para o seu bicho-homem, mas não saem sem ele. Exibem culpa. Culpa de aparecerem de mãos vazias na rua quando na verdade pertencem a alguém. Necessitam do estar diário quase que doente. Necessitam de ouvir te amos diários. Necessitam de ter o bicho-homem ao seus pés todos os dias da semana. Sacrificam aquilo que tem de mais sagrado: seu tempo. E gastam todo ele em função de agradar seu bicho homem. Não com comidas, com roupas lavadas, com a subserviência do dinheiro. São dependentes hoje do afeto, do carinho, da presença e quem sabe até do pau. É, do pau. Mulher é dependente de companhia. Companhia de homem, de macho, de ser-que-cuida. Mesmo que esse seja falho e não exerça nem metade das funções que deveria. E por ele se doa, se transmuta, e esquece seu universo. Mulher de hoje depende de homem. Não pelo o que ele é, e sim pelo que ele representa.
E são assim essas minhas mulheres (salvo raras exceções). Dependem de homem pra sobreviver. Deles. Do existir deles. Do respirar deles. Do bem estar deles. E eu não estou dizendo que isso é errado não. Homem é ótimo. Quando na dosagem certa. Pode, é claro, durar pra sempre. E eu não duvido que um ser possa se fechar apenas dentro de sua vida com seu homem. Mas pode também acontecer de acabar, e essa mesma mulher se ver sozinha e já sem nada. E daí, corre pra onde? A procura de outro homem, pois não aprendeu a ser verbo intransitivo. É verbo transitivo direto. Depende do complemento. E aí põe os pés pelas mãos a procura de qualquer homem que seja, que represente companhia e um pau. Mesmo que seja o pior dos homens do mundo. É homem. É complemento. Desisti de ter melhores amigas, porque não sei estabelecer relações de posse. Tenho amigas. Poucas. Boas. E que felizmente, aprenderam a ser. Existem com seu homem, mas também existem fora deles. Não vou mentir. Hoje enxergo apenas umas duas. Logo talvez nem isso. E aí você me pergunta, e você? Como disse, sou bicho-homem. E isso não é lá superioridade nenhuma. É até de uma grande cafasjestagem. Admiro os homens e os tenho perto, como amigos fiéis, porque eles aprenderam a largar as mulheres em casa para uma pelada com os amigos, ou uma cerveja no bar. Admiro esse homem. Que existe enquanto companheiro, mas que existe também enquanto pessoa. Com e sem a sua mulher. Egoistamente, sabendo ser gente. Admiro a mulher que larga seu homem por um passeio no shopping com uma amiga, por uma cerveja no bar, por uma noite sozinha com brigadeiro e filme meloso. A mulher que sabe que ser a namorada, ou a mulher de alguém é um estado e não uma condição. E pode passar. Admiro também a mulher que passa a tarde toda cozinhando para seu amado e tem com ele uma tarde imensa de amor, os dois e os dois apenas. Mas que não faz só isso. Faz também isso. Entendem a diferença?
E depois de duzentos e duas decepções, digo a vocês: não tenho melhores amigas, e largo sem culpa alguma meu namorado em casa por qualquer uma de minhas meninas - ou meninos. Não é insensibilidade não. É condição humana do verbo ser. Verbo Intransitivo. E em primeira pessoa do singular: sou. E só dependo de complemento quando quero, e principalmente, quando - e porquê - me faz bem.
19.1.12
17.1.12
There's no light over London today
escrevo. mas nunca fui boa em escolher as palavras certas para encontros cara-a-cara. não sei como me portar frente a situações limite, não sei o que dizer, nunca fui boa em consolar. sei que a vida exige da gente um certo saber-lidar, uma dose de coragem, três tantos de destreza. A vida te pega as oito da noite com notícias inesperadas, no meio de uma tarde que não pretendia nada demais, nem nada de sério. porque as pessoas nascem, crescem, criam famílias ou não, são felizes ou nem tanto, envelhecem (ou não) e morrem. morrer é o inevitável e ao mesmo tempo o tropeço da vida. a única certeza e a pior dúvida. sabemos que morreremos, mas quando? é a pergunta que atormenta. às vezes é assim, as quatro da manhã de uma segunda feira qualquer. quando a gente envelhece, a morte de gente que a gente nunca viu passa a afetar a gente. nossos amigos perdem também parte de suas famílias e quando um amigo perde uma parte de qualquer coisa, a gente também perde uma parte da gente. nunca sei o que dizer exatamente nesses casos. só sei que a vida é assim, inesperada, corrida, fatal. sei que o caminho dos nossos avós é a morte, e logo mais o caminho dos nossos tios, e - que terrível - também o caminho dos nossos pais. todos nós somos filósofos frente a morte. pensamos sobre o corpo, sobre o encarar o fato, sobre que caminho faz a alma (se a alma existir). o que somos nós frente à imensidão do mundo, porque corremos tanto, porque nos desesperamos, porque fazemos dívidas, compras, exibimos carros, porque nos lamentamos em bancos gelados as duas da manhã porque não temos mais perspectivas? qual é o sentido de tudo isso se no fim estaremos deitados no caixão, cheirando a cravo e coroa de flores? everything is falling. eu, você, a nossa vida, tudo aquilo que conhecemos, nossa cidade, nossas famílias. tentamos reviver nosso passado e não conseguimos, tentamos ser felizes de novo e falhamos, porque a vida é um pouco como a morte também. algumas coisas depois que se vão se tornam definitivas. outras, por outro lado, se tornam lembranças eternas, pedaços de coisa infinita, a alma que continua vivendo depois da morte do corpo. nunca fui boa em escolher as palavras certas para os encontros, mas entendi que certas coisas se dizem melhor no silêncio. de algum jeito torto eu te entendo, de de algum jeito torto também você entende que é assim. te diria mil coisas, quem sabe, tentando traduzir o desejo de consolo em palavras, mas sei que não posso. a dor da morte é só nossa, não tem como dividir. mas o que é a amizade senão isso? o eterno desejo de, se não conseguir dividir a dor da vida, ao menos conseguir distrair dela. no meio da chuva e do cheiro de cravo eu entendi que, por mais que certas coisas mudem muito, outras tem o poder de permanecerem do jeito que estavam. são as coisas que continuam em silêncio. é o laço invisível das relações. amizade em estado puro. (re)conhecimento.
16.1.12
500 maneiras de enlouquecer um homem na cama.
Tinha sido isso, sexo e só. Por mais que exista afeto é impossível amar alguém que se conhece há menos de dois dias. Todo o jogo que tinha sido feito até ali tinha como primordial objetivo terminar na cama. Não era esse o objetivo de todos, no fim das contas? Um jantar, uma bela conversa, taças de vinho, restaurantes caros, comidas rebuscadas, a banda preferida no rádio do carro. Tudo pretendia terminar no encontro de corpos, numa cama qualquer, às três horas da manhã, com o objetivo de testar se ela fodia bem. Estava cansada dos jogos, do que pode e do que não pode, dos homens que se mostravam agressivos depois da presa conquistada. "Você é uma fresca", por vezes ouvia. E não se abalava, porque não tinha comprometimento nenhum em agradar aqueles homens que no fim das contas, não queriam muito mais do que o seu corpo. Ficava ali, inerte, imóvel, fazia o que tinha vontade e às vezes se segurava pra não cuspir na cara desses novos parceiros. Não queria ser nada, não queria nada disso, não exigia de ninguém grandes performances, orgasmos inexplicáveis, dez fodidas numa noite só. Dane-se. Quantidades, desempenho, comprometimento, saber todas as zonas erógenas do corpo de uma mulher. Isso qualquer babaca sabe, tem que saber mesmo como lidar, como tratar, o jeito certo de colocar no colo depois de um dia difícil.
Sentia saudades dos desajeitados, daqueles que de nervoso não conseguiam desabotoar direito seu sutiã, beijavam meio fora de compasso - mas a olhavam nos olhos. Se encantavam. Não eram máquinas da performance sexual sem erros. Da noite perfeita, da busca pelos orgasmos múltiplos, da espera pela mulher-puta e surpreendente na cama. Máquinas. Máquinas de prazer, vibradores com sangue que pulsa. Preguiça anterior de tudo isso. Procurava assim, humanidade. Clichê. Tinha se tornado um clichê ambulante desde que começou a se sentir vazia no meio das noites e dos novos encontros. Era pra isso? Era pra isso os elogios, os flertes, os chocolates, as saudades? Tudo isso deveria, inevitavelmente, terminar em sexo? Não deveria. De repente sentia-se cansada e queria uma vez que fosse passar uma noite inteira conversando, olhando pro teto, de mãos dadas, dividindo a vida. Queria um homem qualquer que não quisesse saber da sua performance sexual. porque isso viria, um dia. Sempre vem. E se torna fato comum, natural, o balé do envolvimento entre duas pessoas. Uma vez na vida um homem que levasse as coisas com calma, que quisesse apreendê-la na alma antes de possuir-lhe o corpo. Uma vez na vida o cortejo, o amor, o desajeito, a timidez, os quatro encontros antes da primeira noite. Ir no cinema. Qualquer coisa assim, brega assim, aceitaria que a chamassem de "princesa", de qualquer adjetivo cafona que fosse, se pelo menos um dos homens que encontrasse pela rua não tivesse como objetivo primordial saber se ela cospe, engole ou sabe chupar direitinho. Vivia sôfrega de tanto encontro errado, tanta bebedeira, tanta pegação no banheiro da balada, no banco de trás do carro, na cama de gente que nem tinha antes conhecido a casa, descoberto o nome do filme preferido. Não aguentava mais ser assim, essa alma errante e sozinha e tentar se achar, em meio de corpos, de noites sem poesia, dessa merda de performance sexual. Foda-se a performance sexual, fodam-se vocês todos.
Todo mundo precisa de amor, uma hora ou outra.
Precisa ser olhado nos olhos.
Precisa.
Precisa parar de ser máquina, precisa esquecer os manuais.
500 maneiras de enlouquecer um homem na cama. Foda-se.
"Foda-se se você encontrou meu ponto G, eu queria que você encontrasse a minha alma, a merda da minha alma. Que eu ainda tenho. Eu ainda devo ter" - ela pensava e derramava uma lágrima, enquanto seu parceiro sorria de satisfação. Performance perfeita, movimentos ensaiados. Mais um pra lista. Grande coisa.
E deitada nua, coberta pelo lençol, na cama de seu mais ilustre desconhecido pensava: "estou cansada de quererem me tocar sempre primeiro no corpo, queria ao menos uma vez ser tocada primeiro no coração".
Sentia saudades dos desajeitados, daqueles que de nervoso não conseguiam desabotoar direito seu sutiã, beijavam meio fora de compasso - mas a olhavam nos olhos. Se encantavam. Não eram máquinas da performance sexual sem erros. Da noite perfeita, da busca pelos orgasmos múltiplos, da espera pela mulher-puta e surpreendente na cama. Máquinas. Máquinas de prazer, vibradores com sangue que pulsa. Preguiça anterior de tudo isso. Procurava assim, humanidade. Clichê. Tinha se tornado um clichê ambulante desde que começou a se sentir vazia no meio das noites e dos novos encontros. Era pra isso? Era pra isso os elogios, os flertes, os chocolates, as saudades? Tudo isso deveria, inevitavelmente, terminar em sexo? Não deveria. De repente sentia-se cansada e queria uma vez que fosse passar uma noite inteira conversando, olhando pro teto, de mãos dadas, dividindo a vida. Queria um homem qualquer que não quisesse saber da sua performance sexual. porque isso viria, um dia. Sempre vem. E se torna fato comum, natural, o balé do envolvimento entre duas pessoas. Uma vez na vida um homem que levasse as coisas com calma, que quisesse apreendê-la na alma antes de possuir-lhe o corpo. Uma vez na vida o cortejo, o amor, o desajeito, a timidez, os quatro encontros antes da primeira noite. Ir no cinema. Qualquer coisa assim, brega assim, aceitaria que a chamassem de "princesa", de qualquer adjetivo cafona que fosse, se pelo menos um dos homens que encontrasse pela rua não tivesse como objetivo primordial saber se ela cospe, engole ou sabe chupar direitinho. Vivia sôfrega de tanto encontro errado, tanta bebedeira, tanta pegação no banheiro da balada, no banco de trás do carro, na cama de gente que nem tinha antes conhecido a casa, descoberto o nome do filme preferido. Não aguentava mais ser assim, essa alma errante e sozinha e tentar se achar, em meio de corpos, de noites sem poesia, dessa merda de performance sexual. Foda-se a performance sexual, fodam-se vocês todos.
Todo mundo precisa de amor, uma hora ou outra.
Precisa ser olhado nos olhos.
Precisa.
Precisa parar de ser máquina, precisa esquecer os manuais.
500 maneiras de enlouquecer um homem na cama. Foda-se.
"Foda-se se você encontrou meu ponto G, eu queria que você encontrasse a minha alma, a merda da minha alma. Que eu ainda tenho. Eu ainda devo ter" - ela pensava e derramava uma lágrima, enquanto seu parceiro sorria de satisfação. Performance perfeita, movimentos ensaiados. Mais um pra lista. Grande coisa.
E deitada nua, coberta pelo lençol, na cama de seu mais ilustre desconhecido pensava: "estou cansada de quererem me tocar sempre primeiro no corpo, queria ao menos uma vez ser tocada primeiro no coração".
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when love is not enough.
E de repente põe-se a pensar: o que é o amor senão uma sucessão meio debilóide de erros terríveis seguidos por desculpas amáveis? Não é isso, o amor? o conseguir lidar com o que existe de desagradável em alguém e, vez ou outra, não conseguir lidar tão bem assim com esse desagradável e desencantar-se? Logo após o desencanto vem a raiva. A raiva é contornada pelo outro, pedindo desculpas. As desculpas são sempre a melhor parte do amor. Quando se pede as desculpas, de certa forma se admite ao outro que, certas convenções serão feitas em prol de algo maior - esse, o amor. Quando se aceita as desculpas, se admite que, estaremos aceitando o desagradável em prol do sentimento. Talvez seja isso, o amor. Essa terrível briga entre duas pessoas que querem viver juntas porque se amam, mas nem sempre se suportam. E insuportáveis sendo, brigam. E brigando, pedem desculpas. E se amando, aceitam as desculpas e continuam convivendo. Talvez o amor acabe no momento em que pedir desculpas pareça esforço demais. Talvez o amor acabe quando nenhuma desculpa parece aplacar o erro.
Talvez nem sempre só o amor seja o suficiente.
Talvez nem sempre só o amor seja o suficiente.
9.1.12
Carta para um avô ausente.
Tem sido isso, vô. Vai fazer três anos que você se foi. A vida, aqui, não ficou nem mais doce nem mais amarga - apenas continuou - com o gosto da sua ausência. Choro poucas vezes lembrando de você, porque de certa forma acho que cumprimos tudo o que tinhamos pra cumprir no tempo que nos deram, embora talvez ache que devesse ter conversado um pouco mais com você. Você não me viu dirigir, e nem veria, porque não tirei a carteira até agora. Teria ficado orgulhoso, eu sei, de me ver formada e logo depois trabalhando, mesmo que eu me queixasse de ganhar pouco. Você deve saber também que não fiz ainda nenhum curso no exterior e nem ao menos conheci outros países. Eu sei, vô, que você julgava importantíssima a educação lá fora, se vangloriava contando os feitos dos filhos dos seus conhecidos que tinham ido estudar "no exterior". Pretendo ir, eu juro. Uma pena não poder te mostrar as fotos dos lugares que vou conhecer, e nem te dizer se era muito frio ou muito quente. Você não conheceu muitas cidades, eu sei. Acho que nunca saiu do brasil. Sua relação com o mundo vinha dos livros, da tv, do discovery channel que você sempre gostou de assistir.
Sabe, vô, a vida não é fácil. Me lembro de você dizendo, já ao longo dos seus 93 ou 94 anos que chega uma hora em que viver é meio insuportável. Já deu tudo o que tinha que dar e a gente faz uma espécie de hora extra no mundo. Eu tenho vinte e dois anos e hora ou outra já tenho sentido isso. Tenho comido menos queijo (acho que nunca mais comi queijo provolone), e aprendi - o senhor veja só - a comer porcaria (carne de porco, na nossa linguagem). Como menos torresmo também. O bacon continua o de sempre. Tem coisa que a mãe não faz mais porque lembra muito de você, e daí dói. Torresmo mesmo. Fez uma vez quando os tios todos vieram aqui (temos nos reunido menos com a sua ausência), e nunca mais fez tutu de feijão. Ah, eu aprendi a comer tutu de feijão também, antes eu não gostava. Imagino que tenha começado mesmo pela sua lembrança, mesmo que inconsciente.
Todo mundo continua bem, e eu acho que não seria conveniente lhe contar dos desentendimentos familiares que já te aborreceram tanto em vida. Eles se ajeitam, do jeito que dá, a mãe continua a mais preocupada da família, você não ganhou nenhum bisneto novo e tem estado todo mundo saudável, tirando um tropeço ou outro (é que têm envelhecido, todos). Meu "velho", continua bastante teimoso, e agora velho de fato. Ainda joga futebol todo santo sábado à tarde e torce, fielmente pro são paulo. Enxerga menos, tem os passos mais curtos. Coisas da vida. Eu não estou trabalhando agora, não sei o que eu quero fazer da minha vida exatamente, e às vezes sinto uma agonia que nem as balas butter toffes que costumávamos comer juntos dão conta de acalmar. E você nem me viu crescer, né vô? Me conheceu voltando da faculdade, tendo uma ou outra aula à tarde, sem nenhum compromisso assim, inadiável. A vida adulta é muito pior, bem pior. O remédio é viver mais ou menos como o senhor vivia. Fazer piada do que dá, ser criança sempre que pode, se render a uma pinguinha de vez em quando na hora do desespero. Ou uma coca cola com pastel, se o fígado não mais aguentar por ordens médicas.
O mercado shangri-lá continua tendo ótimos produtos. No natal fizemos bacalhau, lembramos muito de você. Eu lembro de você em tudo, vô. Não assim, esse lembrar de ausência que machuca, mas é que tem tanta coisa minha que eu sei que foi sua. Meu gosto infantil por queijo e salame, meu jeito de descascar a laranja, meu gosto musical (o samba, sempre o samba). Até o meu vício por ler sempre, me informar sempre, meu tino com politica, minha tolerância. Você que lia diariamente os jornais, que assistia os noticiários de tarde e à noite, que criou filhos evangélicos, filhos católicos e filhos que se casaram com testemunhas de jeová porque sabia que a tolerância e o conhecimento eram a chave de tudo. Você, que me incentivava a estudar, que me ensinou a comer coisas boas, que me levava pra comprar caramelos nas lojas brasileiras. Você que lia a biblia diariamente e acreditava no seu Deus, do jeito que achava correto, sem nunca ter sido membro assiduo de igreja alguma. Você, homem humano, também cheio de erros, mas que teve muitos, tantos acertos e que me formou essa menina que sou agora. Você e seu humor ácido, suas piadas com coisas descabidas, o jeito debochado de se referir aos outros e o jeito leve de falar de morte. "Foi se encontrar com jisuis, ele né? não é assim que falam os crentes?" e se ria todo.
Não leio tantos livros quanto lia na infância, continuo com a mesma familiaridade com os equipamentos eletrônicos. Ouço um pouco menos de samba, porque esqueço. Por vezes lavo a louça e lembro de você cantarolando "para pedro pedro para esse pedro é uma parada". Não subo mais em árvores, não frequento mais casas com grama como a sua, não apresentei nenhum outro namorado pros meus pais desde aquele que você conheceu (e muito pouco). Acho que vou saber quando for a pessoa certa quando eu pensar que "esse garoto eu apresentaria pro meu vô", sem ter medo de você achar ele estranho, ou inadequado. Por enquanto, estamos esperando por ele. Ainda pretendo casar, embora negue isso eventualmente. Quero ter filhos, claro que quero, pra contar a eles que eles tiveram o biso mais incrível de todo mundo, pra repassar pra eles a história da raiva, e todas as suas outras histórias. Não sei se eles terão um vô tão maravilhoso como eu tive, mas eu acho que o "velho" vai fazer o que pode. A mãe também vai. Vivi vinte anos inteiros com você que me ensinou a ser gente, que foi meu referencial masculino enquanto meu pai viajava pra me sustentar. Aprendi, sorri, te li histórias, te coloquei sambas aos domingos, te levei arroz pra colocar pros passarinhos. Você cuidou de mim e mais tarde eu cuidei de você. Porque é o ciclo da vida e eu acho que o nosso, vô, foi bem fechado. Eu não poderia ter vivido vinte anos com nenhum outro avô. Queria que você fosse eterno, é claro que eu queria. Te apresentar meus namorados, te levar pra minha formatura, te ter na minha festa de casamento, te levar pra brincar com meus filhos, mas não teria como. Você se foi quando tinha que ir e o que cabe a mim é saber que você continua vivo (e muito vivo), dentro dessa pessoa que eu me tornei.
Não sei onde você está hoje, e espero que esteja no céu como o senhor acreditava que estaria. Saiba que aqui a gente sente muito a sua falta. Pelo menos eu senti hoje, enquanto ouvia essas músicas que me lembravam nossos almoços de domingo, você lembra? com gengiskan? Em que eu colocava a música do gato dos demônios da garoa e você ria todo? Ria porque você tinha o riso mais gostoso do mundo, e o terrível hábito de afugentar meus gatos todos (coitados) lhes jogando água. Era um velho com coração de criança, com um espírito de menino que não morreu nunca. E permanece. Permanece dentro de mim em tudo que você ensinou pra nós todos. Permanece vivo, em lembrança e história, e no meu jeito de me portar. Permanece vivo porque todo mundo que a gente ama, nunca morre. Eu só espero que tenha te feito feliz tanto quanto você me fez, vô. Eu te juro que fiz o meu melhor. Cuida de mim, onde quer que você esteja (se estiver), que eu continuo daqui, sentindo a sua falta nessas madrugadas de segunda feira e nas tardes de domingo, e te deixando vivo contando pra todo mundo, em forma de poesia, prosa ou narrativa que eu tive o melhor avô do mundo inteiro, ele se chamava estevo, e dentro de mim não morrerá jamais.
3.1.12
Valsa para Nina e José.
"- Nina anseia por me conhecer em breve, me levar pra noite de Moscou. Sempre que essa valsa toca, fecho os olhos, bebo alguma Vodka. E vou."
(Nina - Chico Buarque)
Era difícil mensurar o tamanho de cada estrago feito a cada vez que um novo encontro acontecia, mas fato é que alguma coisa sempre muda dentro de qualquer pessoa que seja, quando qualquer encontro que seja ocorre, então era fato que ela tinha mudado um pouco. Não tinha mudado assim, completamente, desde que encontrou aquele homem, até porque vem de desencontros, anda muito enjoada de amor, enjoada como quem come o mesmo doce por muito tempo e depois não quer mais saber de doce algum. Soa clichê, é claro, dizer que não se quer mais amar. Até porque na vida, nada é uma decisão definitiva. Se diz não querer amar nunca mais e acaba-se amando, eventualmente, quando menos se espera. As pessoas que não queriam casar casam, as que não queriam ter filhos os tem, e as que dizem não querer namorar engatam namoros firmes e felizes. A vida é feita de improbabilidades, e os casais casados há mais de trinta anos também se separam. Porque amor, meus caros, amor acaba. Talvez o leitor desavisado esteja achando que essa é mais uma daquelas histórias de amor de encontros e finais felizes, e daí eu explico ao leitor que aqui tratamos de uma história que ainda não aconteceu. A grande verdade é que nenhuma história aconteceu por inteiro, mesmo aquelas que terminaram, e tudo a que foi dado um ponto final ainda pode pular a linha, dar espaço: outro parágrafo.
Nessa história temos o primeiro parágrafo. Apenas isso, talvez, quem sabe uma página inteira, mas nem isso. E saiba o leitor que é terrivelmente difícil escrever sobre as histórias que ainda não aconteceram. Porque escrever sobre as coisas que não foram-ainda é um eterno pensar como-teria-sido-se-fosse, e a fantasia nunca se parece com a realidade. Salvo as vezes que, sem querer, o escritor se depara com uma história que parece com a vida de algum de seus leitores, assim, como psicografia e aí há a catarse. Dizem que é pra isso que servem os escritores, e os escritores acham que o único papel do leitor é identificar-se. O papel do escritor hoje, é o de escrever essa história que ainda não aconteceu. Chamaremos a menina de "Nina". "Nina", um diminutivo de menina, um nome comum. Chamaremos esse homem que ela encontra por acaso de José. Os amores de José e Pilar. Poderíamos chamar a menina também de Pilar, mas daí estaríamos copiando a vida de José Saramago e não queremos copiar romances. Não queremos reescrever a história de José e Pilar. Queremos criar essa história que ainda não aconteceu por inteira, mas aconteceu. José e Nina. José, vinte e poucos anos de idade. Nem magro e nem gordo. Bem apessoado. Não procura grandes amores. Já quis casar, não deu certo. Desistiu. Passa seus dias em ônibus e passos pela grande cidade em busca de seu trabalho. Nem tão empolgante assim. Não quer se apaixonar, ignora os romances todos, se diz prático. É objetivo. Desistiu de amar aos 22 quando percebeu não ser aquele o grande amor de sua vida. Não sabe que encontrará Nina num café ainda. Não sabe que Nina virará sua vida de ponta cabeça, e assim continua vivendo. Nos ônibus lotados. Nos prédios altos. Nos afazeres das sete as sete, diariamente.
Nina, vinte e poucos anos de idade. Magra. Alta. Nem tão bem apessoada assim. Já encontrou seu único grande amor, e perdeu. Nunca quis casar, mas já foi pedida em casamento. Recusou. Passeia pela grande cidade em busca de alguma coisa que ainda não sabe o que é. Escreve longos textos que não pretende publicar em um caderno velho, no método arcaico da caneta sobre papel. Não procura encontrar nenhum José em nenhum café, e não tem noção de que costuma virar vidas de ponta cabeça. Não sabe viver nos ônibus lotados, nos prédios altos. Adia seus afazeres da sete as sete, diariamente. Nina sai de casa à procura de nada, e pede um cappucino. José é habitué do café há pelo menos dois anos, quando começou a trabalhar naquela empresa. Nos encontros do acaso, caro leitor, ocorrem coisas como: trombadas acidentais no meio da rua, o estranho segurar o livro preferido da pessoa em frente a ela no metrô e surgirem assuntos, o encontro de olhar num show da banda preferida, ou, se formos usar os exemplos mais atuais, a conexão prefeita na rede social preferida do usuário em questão. Um tweet bem colocado, um post bem produzido, o status certo na hora certa, as banda preferida com astronômicas execuções na página do last.fm. Tudo isso poderia ter acontecido com Nina e José, usuários regulares das redes sociais, mas o destino quis que aquele encontro acontecesse por: falta de mesa no café. Nina sentou na última mesa, e José, cansado, não aguentava se dar ao luxo de esperar uma mesa vagar pra tomar seu café. Pediu licença para sentar à Nina - que ele sequer imaginava chamar-se Nina - a misteriosa garota de vestido preto e cabelos castanhos. Nina aceitou por educação porque não gosta de estranhos. José não teria puxado assunto com ela se não estivesse necessitado de companhia naquele dia em especial. Como pode ver o leitor, os encontros dependem de uma série de fatores para acontecer. José puxou assunto com ela, que respondeu com certo entusiasmo, ao ver tratar-se de um interlocutor bem apessoado. Isso ainda não foi dito, mas Nina repara muito em aparências.
- Você vem sempre aqui?
- Você devia ter me abordado com uma cantada menos óbvia, mas não, é a minha primeira vez.
Nina lhe sorriu, desafiadora.
- Desculpe, sempre começo as conversas do jeito errado.
- Não te culpo, eu nem ao menos começo conversas.
- Devo me retirar?
- Em absoluto. Termine de tomar seu café, e em todo caso, você já começou mesmo.
- Você não parece muito interessada.
- Eu nunca pareço muito interessada. Caso você queira alguém efusiva, talvez você devesse tentar outra mesa.
- Você não gostou de mim.
Nina lhe sorriu, condescendente.
- Você é bastante inseguro, e isso é engraçado. Me diz, qual seu nome?
- José.
- José tipo José de "José e Pilar"?
- "José e Pilar"?
- Tem um filme. Quer dizer, um documentário. A mulher do José Saramago se chama Pilar. São um belo casal. Espirituoso, ao menos.
- Seu nome é Pilar?
- Detesto frustrar suas expectativas de sermos infinitamente ligados pelo destino, mas me chamo Nina.
- Só Nina?
- Só Nina. Você acha que eu deveria me chamar mais alguma coisa, tipo Firmina? Marina?
- Não acho nada, só achei curto.
- Você se chama José. É só José?
- Só José.
- Temos o mesmo número de sílabas, José. Por que me julgas curta?
- Desculpa, não foi a intenção.
NIna lhe sorriu, brincalhona.
- Você é mesmo muito engraçado no seu desajeito.
- Você tá caçoando de mim.
- Imagina, José, só te julgo curto.
José lhe sorriu, quase encantado.
- Mas, e você, vem sempre aqui?
- Todos os dias.
- Te sentas sempre na mesma mesa, metodicamente? Tens cara de que sentas sempre na mesma mesa.
- Sento. É defeito?
- É um pouco. Deve arrumar as camisas por cor no guarda-roupa. Deve gostar das coisas organizadas.
- Nem tanto.
- Tens manias, ao menos.
- Algumas.
- Sou bagunçada, não sirvo pra você.
- É o fim de nosso amor?
- Sim José, me deixe!
- Você me odiou.
Nina gargalhou, encantada.
- Tivesse eu te odiado, José, mesmo em sendo você um homem curto - lhe disse sorrindo - teria te mandando embora antes do segundo ato de nossa conversa. E já estamos figurando em nosso segundo ato.
- Qual é o segundo ato?
- Esse em que temos impressões um do outro e nos julgamos aptos ou não para continuar nos relacionando.
- Qual o veredito?
- Não sei, José. Não sou curta assim.
- Eu não devia ter dito isso né?
Nina lhe sorriu olhando nos olhos.
- Devia sim. Ou não teríamos uma piada-insulto compartilhada. Parte do segundo ato. Estamos criando coisas próprias.
- Qual é o próximo passo?
- José, você além de curto é muito apressado. Pare de querer adivinhar as minhas impressões. Isso estraga toda a poesia do encontro. Você tem que mostrar o seu melhor, eu mostrarei o meu melhor e assim tentaremos nos conquistar.
- Nós estamos querendo nos conquistar?
- Não me leve tão a sério, é uma suposição.
- Talvez eu esteja querendo te conquistar.
Nina lhe olhava, desafiadora. E nada respondia.
- Ok. Você não quer me conquistar.
- José, o que eu lhe disse sobre as impressões?
- Ok, desculpe.
- O que voce faz da vida, José?
- Estudo jornalismo e estagio numa redação.
- Tens cara de um homem de respeito.
- E voce?
- Não faço nada. Escrevo. Faço letras. Escrevo. Mais faço letras do que escrevo.
- Estou na frente de uma dessas artistas, então?
- Talvez. Mas não.
- E o sotaque?
- Sou gaúcha.
- Mora aqui?
- Nem um pouco, moro em porto alegre.
- O que faz aqui?
- Passo as férias e tomo cappucinos em lugares inusitados.
- Só isso?
- Encontro pessoas que me acham curta.
- Pessoas que você odeia logo no primeiro contato.
- Pessoas que não sabem ler bem minhas impressões sobre elas.
Os dois se olharam e se sorriram.
Nessa hora, caro leitor, houve o que se chama de "magnetismo do encontro". Nossos dois personagens, embora ainda não tivessem perdidamente apaixonados e não pensassem em ter filhos um com o outro, ou ainda não tivessem brigado sobre onde queriam casar, sentiam alguma coisa diferente. A estranha sensação de ter encontrado algo que pode-vir-a-ser. Nessa hora tinham a estranha ânsia de saber mais e sempre mais sobre o outro a fim de descobrir se eram mesmo assim tão compatíveis. Compatíveis além dos olhares e sorrisos, compatíveis também em opiniões, compatíveis em vida. Compatíveis além do encantamento. Nina e José teriam que descobrir-se.
-Nina, voce vai embora?
- Daqui do café? Eventualmente, não é de bom tom tomar mesas de um café lotado.
- Não, Daqui da cidade.
- Vou.
- Quando?
- Hoje. Mais precisamente a meia noite.
- Dei o azar de te conhecer indo?
- Ou deu a sorte de me conhecer no último instante.
- Não trabalho mais hoje, você quer sair?
- Sim, podemos, José. Mas assim como o meu nome, meu tempo é muito curto.
- Você nunca vai parar, né?
Nina lhe sorriu com todos os dentes.
- E nem voce, né?
- Acho que não.
- Continuemos então.
José pagou-lhe a conta porque dizem que os homens encantados querem impressionar as vítimas de seus encantamentos com tudo que podem. Ainda não podia segurar-lhe a mão, embora quisesse, e ela ainda não podia deitar em seu ombro, embora sentisse vontade. Tinham encontrado-se no café quatro horas antes de Nina partir e naquelas quatro horas tinham que se descobrir. José tinha inseguranças quanto a ela odiar os lugares que sugerisse e pedia opiniões. Nina, travessa, queria ser impressionada e abalar a insegurança do recém conhecido. Nossos personagens tinham urgência. Urgência que ainda não se sabe amor, porque não se é amor ainda. Urgência de presença, de ser, de conhecer, urgência de pegar o que puder um do outro. Os tiques nervosos, o jeito de arrumar o cabelo, as manias, as inseguranças. Tinham urgência de se encontrarem, porque tinham urgência em não se perderem.
- Você acha que conversar na praça é assim, muito clichê?
- Eu acho que meu nome é curto.
- Nina, para com isso.
- Não, acho ótimo.
- É que eu não sei onde te levar.
- Você tem um medo tão terrível de ser julgado que se priva de mostrar o lugar mais incrível dessa cidade toda só por achar que eu vou detestar.
- Vou te levar na minha padaria preferida, então. O melhor croissant da cidade.
- Estamos evoluindo.
- Você odeia croissants?
- Eu adoro croissants!
Sorriram-se.
José escolheu a mesa, uma mesa qualquer e temeu ser rechaçado por Nina, que podia preferir outra. Nina achou o lugar muito bem escolhido, mas pediu pra sentar na janela. Ela deixou que ele lhe sugerisse o croissant, mas pediu outro, por pura birra de não querer ser levada pelo homem. Acabou gostando mais do que ele tinha sugerido, e trocaram. Ela pediu cappucino, ele insistia em tomar café forte. Conversavam sobre tudo, como se o mundo fosse acabar no próximo instante.
- Você quer ter filhos, José?
- Quero. E acho que seria um ótimo pai.
- Você?
- Já quis, hoje não quero nem casar.
- Eu já quase casei.
- E não casou por que?
- Acabou antes da gente casar.
- Eu já fui pedida em casamento, mas recusei.
- Recusou por pavor de compromissos?
- Não, porque sou contra casar sem amor.
- E os filhos?
- Quero tê-los ainda, mas finjo que não por medo de não achar o pai certo nunca.
…
- E em amor, Nina, acredita?
- Só sei da vida que meu no.. ah ok, parei. Não sei. Já acreditei muito.
- E hoje?
- Acho que é mais bonito na literatura.
- José e Pilar era uma história real.
- E meu nome é Nina, José.
…
- Vai morar em Porto Alegre pro resto da vida?
- Mas é claro que não.
- Que convicção.
- Não gosto tanto assim de lá.
- Moraria aqui?
- Por um motivo muito relevante, moraria.
…
- Como eu te acho assim que você for embora?
- Te dou meu telefone, te passo minhas redes sociais, meus contatos on-line. As pessoas se encontram.
- E podem se perder.
- Não se perdem depois que se encontraram de verdade.
- Você pode me odiar com um tempo.
- Você também pode, todo mundo pode.
- Assim você coloca a gente num patamar abrangente demais.
- E somos. Somos como qualquer outro casal que se encontra, e que pode se perder.
- Ou não.
- Ou não.
…
- Falta dez minutos pra eu pegar o taxi e ir pra rodoviária, o que você quer me dizer nos nossos últimos dez minutos?
- Isso é muito definitivo.
- Nada é definitivo.
- Você é muito desafiadora, não sei, tenho medo de dizer a coisa errada, o tempo todo.
- As coisas certas são chatas, José.
- Gostei de te conhecer, passaria a noite toda conversando com você.
- Pra sempre?
- Daí não sei. Mas é sua vez.
- Gostei de te conhecer, também. Passaria a noite toda conversando com você, mas tenho que voltar pra casa.
- Tem mesmo?
- Ah, tenho. Prefiro acreditar que as coisas acontecem. Não quero mudar os planos todos e estragar isso aqui que já existe.
- Acho que você está certa. Não devo te levar à rodoviária também?
- Não deve, dramático demais. Você ainda não me ama, pra ter que passar por esse tipo de despedida sofrível.
- Não te amo?
- Decididamente, não nos amamos. É muito cedo.
- Não nos amamos.
- Mas nos encontramos.
- E o que vem agora?
- O que for pra ser.
- Te beijo pra tirar a dúvida do encontro agora?
- Não sei se deve, não acha que seria sofrível se encontrar com isso sabendo que depois não teremos mais? não seria pesado ter que lidar com a saudade do beijo que se deu no meio da distância?
- Ficamos com o beijo imaginado para quando for pra ser?
- Não sei, é só um palpite.
- A dúvida de que pode não ser bom talvez nos acalme.
- A certeza de que é bom nos apressaria demais.
- Te abraço então.
- Me abrace então.
- Como eu vou ter certeza de que você não vai me deixar?
- Já nos passamos todos os contatos, eu te mando uma mensagem assim que chegar no ônibus. E outras mil. E te acho assim que chegar em casa.
- Você vai me esquecer.
- Teu nome é muito curto para que eu esqueça.
Sorriram-se, abraçaram-se e partiram.
José deixou Nina no taxi, queria beija-la, mas queria que o sentimento da descoberta perdurasse e deixou ir. Nina esperava talvez que ele descumprisse a promessa de não beijá-la, mas depois achou melhor assim. Era ainda o primeiro encontro, e seria bom que se descobrissem mais antes de concretizar o sentimento. Nina cumpriu sua promessa e, ao chegar dentro do ônibus mandou uma mensagem pra José. José olhava o celular angustiado com a demora, crente que Nina já tinha o deixado pra sempre. Sorriu ao ler a mensagem. Sorriu respondendo todas as outras. Encontraram-se de novo. Acharam bastante adequados algumas linhas deixadas no twitter um do outro, se encontraram nas execuções astronômicas de suas bandas preferidas no last.fm, se conversam muito por onde podem. Prometem se encontrar em breve. Nina lhe manda fotos com sua casa e suas roupas novas. José recebe fazendo um inventário da Nina que conhece cada dia mais. Comunicam-se através de telas, de mediações frias, mas já sorriem juntos nas piadas compartilhadas. José já sabe que nina levanta as sobrancelhas quando em dúvida, e Nina já descobriu sua bela cara de desajeito quando posto em dúvida. Têm estranhos momentos de silêncio onde se cabia um beijo que não se pode dar, e que não se sabe o gosto. Nada sabemos sobre o futuro de José e Nina, que se descobrem a cada dia de jeitos inusitados. Se descobrem como duas pessoas que querem se apreender e se conhecer a cada dia mais. Se descobrem com angústia e têm urgência. Urgência de saberem de si. Medo de não se gostarem. Inseguranças. Tristezas. Pequenos ciúmes calados. Pequenas impressões erradas. Sabem tudo e nada sabem. Como em qualquer história que começa e não se sabe o fim. Como qualquer história que está sendo. Nada podemos afirmar, caro leitor, sobre o futuro de José e Nina e nem sabemos se podemos chamar isso de história de amor. Talvez casem, talvez se odeiem no segundo encontro. Talvez irritem-se demais com pormenores um do outro e terminem em uma briga besta. Talvez se amem perdidamente por dois ou três anos e o amor acabe. Talvez se mudem pra mesma cidade, casem, e tenham dois filhos: um menino e uma menina. Talvez se desencontrem antes disso e nem cheguem a saber o gosto do beijo um do outro. Talvez se liguem diariamente e descubram-se apaixonados antes mesmo de se encontrarem. Talvez encontrem-se e nunca se apaixonem. Talvez tudo dure um dia só. Talvez um ano. Talvez três meses. Talvez nunca aconteça. Nada sabemos sobre José e Nina. Sabemos que estão felizes, e tentam se encontrar ao mesmo tempo que tem medo de se perder, e ainda não se escreveram um final, porque nada é definitivo. E tudo pode ser. Ou não.
1.1.12
Feliz ano novo.
Era aquilo então, a vida. O eterno procurar pelas coisas que não se sabe que se procura - e tentar achar. É difícil então, a vida. E parecia ainda mais inadequada quando ela via que começara o ano e nada de novo se faria. Nem um novo amor, nem um novo emprego, nem um carro novo na garagem: nada. Nem ao menos um novo par de sapatos sem graça para ir à padaria o ano que entrava reservava. Tinha pedido paz, amor, esperança. Abdicara à cor da calcinha porque tinha deixado de acreditar em simpatias. Os anos tinham sido ruins todos. Os vestida de preto, de branco, e quem sabe teriam sido ruins até os anos-novos passados nua na cama trepando com seu novo namorado, e realizando a simpatia de beijar a pessoa com quem se quer passar o ano todo à meia noite. Não sabe se dá sorte porque nunca nem sequer beijou alguém à meia noite. Um pouco por medo de ter que lidar com a escolha definitiva de ter outro ser pelo ano todo, e outro resto por evitar passar anos-novos com pares amorosos, como uma espécie de superstição. Parecia dar azar trazer uma escolha passada pro ano que viria, e escolhera então passar sempre sozinha na presença de amigos e familiares.
Esse no tinha sido de uma passagem normal, nem desastrosa e nem catártica. Só o amor de sempre, porque amor acaba ficando calmo ao longo dos anos, depois de muito tempo, e então tinham passado aquele reveillon sem histerias, apenas com a certeza de que, de certa forma, apesar de tudo - e por tudo - continuariam se amando pra sempre, de um jeito ou de outro. As mesmas pessoas de quatro anos atrás, reunidas todas, se desejando felicidades genuinamente. Era o que importava, no fim das contas, e não as calcinhas vermelhas ou rosas, ou as lentilhas e sementes de uva. Passou-se o reveillon, passaram-se dias, entrou-se o ano e tudo parecia sem jeito, sem remédio, ficava ela prostrada na cama esperando os dias passarem rápido. E passavam. E a vida ia do jeito que tinha de ir. E vinte quatro horas, os horários meio trocados, a alimentação já meio errada. Tinha tentado sem sucesso parar de fumar no ano passado, e nem quis renovar os votos nesse ano que entrava. Se for pra entrar o ano estourando os pulmões, que estoure. E estouravam mesmo, tinha a respiração curta, pouca vontade de tudo, e tinha aumentado consideravelmente o consumo de café, já que de uns tempos pra cá, cada cigarro pedia uma xícara de café. E iam maços de cigarros, e garrafas de café. Amarelavam os dentes, enfraqueciam o pulmão, faziam doer o estômago. E tudo bem - dizia ela - porque a vida também destrói e não traz prazer algum.
Naquele dia acordou cedo por falta de cigarros. Despertou com uma ânsia de fumar logo que teve um sonho ruim e tinham acabado todos os maços. Fumava mais, cada vez mais, cada dia mais, e fazia sempre menos coisas. As únicas motivações para sair de casa eram os cigarros, o pó de café e por vezes uma coisa ou outra para fazer comida. Os amigos chamavam no telefone vez ou outra, mas tinha declarado a primeira semana de janeiro como o período sabático para a elevação espiritual e assim tinha decidido parar de falar com todos que conhecia. E todos eram todos mesmo. Lidava com suas angústias sozinha, não ligava o computador, não respondia às mensagens no celular e tinha se proibido inclusive de ligar para qualquer um de seus pares amorosos pra saciar o desejo de sexo. Tinha sido um ano de muitos excessos, inclusive desse, e havia "trepado feito gata no cio", como diziam as amigas. Vários pares amorosos, alguns fixos, outros casuais, intercalavam-se em noite mal dormidas de bebidas e às vezes cinema, às vezes jantar e às vezes nada disso, só sexo mesmo, sexo puro, sem rodeios nem convenções e sem beijo de boa noite.
Tentou sem sucesso dormir sem fumar, pra não ter que encarar a padaria do bairro logo às seis da manhã, mas teve que ir. Calçou os chinelos, fez um coque no cabelo, botou um vestido qualquer, colocou alguns trocados no bolso e foi comprar mais um maço de cigarros. Antes tinha preferências muito ortodoxas quanto à marca do cigarro, mas agora, há quatro meses sem emprego e fumando cada vez mais, tinha baixado um pouco seus padrões e fumava cigarros populares. O mesmo cigarro que fumam as empregadas domésticas no ponto de ônibus, e quem sabe as putas, depois do programa. Decaia e sabia de sua decadência. Por isso o período sabático em que só eram permitidos os vicios solitários e o contato com ela mesma. Tinha enlouquecido por vezes, chorado por longas noites até pegar no sono, tinha cogitado se matar com o gás aberto, mas achou a vida ainda irrelevante demais para um ato desesperado desses. Era o quinto dia do ano e era também quinta feira, e ela descia o elevador se olhando no espelho. Não se reconhecia muito bem, se via cansada, maltratada pela vida, quase trinta anos e nada de tão sólido assim tinha sido construído. Tinha um apartamento velho, um carro de dez anos atrás que ganhou do pai aos dezoito e uma vida sem muitos sonhos junto com um reveillon sem simpatias.
Era descrente de tudo, dela mesma, da capacidade de largar os vicios e seguia pela rua até a padaria da esquina pra saciar o único vício que ainda se permitia ter na semana de reclusão. Ia observando as pessoas, que a essa altura do ano já corriam pros seus empregos, com seus carros do ano, seus ternos, seus vestidos de marca. Andava de calça jeans, camiseta branca e havaianas e não se maquiava desde a virada do ano. Enquanto observava um cartaz desses de propaganda que dizia algo como "isso pode mudar a sua vida, nos ligue", se distrai e não percebe o movimento na padaria. Entra desavisada, pega os trocados no bolso, ameaça pedir um cigarro, mas olha em volta e vê todos deitados no chão. Um homem aponta uma arma pra todos e diz "vai moça, pro chão, pro chão". Ela deita, diz a si mesma que poderia morrer naquele momento, mesmo que fosse assim, sem realizar nada. Morrer no chão da padaria porque o vício do cigarro não podia esperar mais uma hora. Morrer pelo vício, morrer por não aguentar a vida sem as drogas legais. Morrer enfim por culpa, por sua máxima culpa, culpa sua de não ter se tornado um ser digno, respeitável, que cumpre as atividades de cidadão modelo logo que o ano começa.
O assaltante sobe no balcão e pede silêncio. Diz não querer nada, diz que tinha sido um homem honesto, que tinha tentado pelo menos. Diz que trabalhou anos e anos como servente de pedreiro, mas um dia sofreu um acidente, perdeu a mão e não podia mais ser pedreiro. Segurava a arma com a mão esquerda. Conta que ficou desempregado, se enfiou na bebida, foi perdendo tudo até que parou na rua. Conta também que um dia passava fome e ficou ali, na frente da padaria esperando a caridade de alguém. Entrou na padaria, aquela mesma padaria, e foi expulso por estar sujo, maltrapilho, foi olhado com nojo e não foi defendido por ninguém. Disse ele também que naquele dia deixou de acreditar que o mundo fosse um lugar bom e virou assaltante. Com o dinheiro dos assaltos dava pra comer bem, sem ser expulso, sem ser humilhado. Só tinha que tomar cuidado com a polícia. As pessoas o olhavam assustadas, pediam clemência, era o terror no bairro nobre da grande são paulo. O assaltante diz então que agora já não vê mais sentido em nada, e que não espera mais nada da vida, desse mundo em que a gente tem que assaltar pra ser respeitado, pra comprar um pouco de pão. Antes de puxar o gatilho diz que Deus entende os motivos de todo mundo, e que espera ser perdoado no céu, porque foi maltratado pela vida. Puxa o gatilho e vai matando, um por um dos clientes da padaria. Mata a senhora de bolsa de grife, mata o executivo que tomava café com clientes, mata todos aqueles que não o olharam no olho.
Ela observa a chacina, e não tem mais medo de morrer.
O assaltante - agora assassino - olha pra ela antes de puxar o gatilho e diz pra ela ir embora. "Moça, corre, você eu não quero matar não, eu vi que a senhora chorava enquanto eu contava a minha história, a senhora tem coração, ao contrário dessa gente". Ela sai correndo e olha pra trás a tempo de ver o último tiro. O assassino atira em sua própria cabeça e morre. Ela sai andando de volta pra casa, sem os cigarros. Não foi procurada pela imprensa, sua presença não foi notada na chacina que ninguém viu. Nada quis documentar, também. Só tinha a certeza de ser a única sobrevivente daquela quinta feira dia cinco. Passou os outros dois dias em casa, sem falar com ninguém, sem fumar cigarro algum e sem tomar um gole sequer de café. Percebeu que a vida era frágil e aceitou a redenção daquele assaltante como um sinal.
Ao final do dia sete, pegou as chaves do carro, saiu pra rua e percebeu que o único remédio pra vida não é calcinha colorida, nem beijo na boca a meia noite. A única solução possível é renascer a cada ano dos mortos, porque o único caminho é sobreviver.
Esse no tinha sido de uma passagem normal, nem desastrosa e nem catártica. Só o amor de sempre, porque amor acaba ficando calmo ao longo dos anos, depois de muito tempo, e então tinham passado aquele reveillon sem histerias, apenas com a certeza de que, de certa forma, apesar de tudo - e por tudo - continuariam se amando pra sempre, de um jeito ou de outro. As mesmas pessoas de quatro anos atrás, reunidas todas, se desejando felicidades genuinamente. Era o que importava, no fim das contas, e não as calcinhas vermelhas ou rosas, ou as lentilhas e sementes de uva. Passou-se o reveillon, passaram-se dias, entrou-se o ano e tudo parecia sem jeito, sem remédio, ficava ela prostrada na cama esperando os dias passarem rápido. E passavam. E a vida ia do jeito que tinha de ir. E vinte quatro horas, os horários meio trocados, a alimentação já meio errada. Tinha tentado sem sucesso parar de fumar no ano passado, e nem quis renovar os votos nesse ano que entrava. Se for pra entrar o ano estourando os pulmões, que estoure. E estouravam mesmo, tinha a respiração curta, pouca vontade de tudo, e tinha aumentado consideravelmente o consumo de café, já que de uns tempos pra cá, cada cigarro pedia uma xícara de café. E iam maços de cigarros, e garrafas de café. Amarelavam os dentes, enfraqueciam o pulmão, faziam doer o estômago. E tudo bem - dizia ela - porque a vida também destrói e não traz prazer algum.
Naquele dia acordou cedo por falta de cigarros. Despertou com uma ânsia de fumar logo que teve um sonho ruim e tinham acabado todos os maços. Fumava mais, cada vez mais, cada dia mais, e fazia sempre menos coisas. As únicas motivações para sair de casa eram os cigarros, o pó de café e por vezes uma coisa ou outra para fazer comida. Os amigos chamavam no telefone vez ou outra, mas tinha declarado a primeira semana de janeiro como o período sabático para a elevação espiritual e assim tinha decidido parar de falar com todos que conhecia. E todos eram todos mesmo. Lidava com suas angústias sozinha, não ligava o computador, não respondia às mensagens no celular e tinha se proibido inclusive de ligar para qualquer um de seus pares amorosos pra saciar o desejo de sexo. Tinha sido um ano de muitos excessos, inclusive desse, e havia "trepado feito gata no cio", como diziam as amigas. Vários pares amorosos, alguns fixos, outros casuais, intercalavam-se em noite mal dormidas de bebidas e às vezes cinema, às vezes jantar e às vezes nada disso, só sexo mesmo, sexo puro, sem rodeios nem convenções e sem beijo de boa noite.
Tentou sem sucesso dormir sem fumar, pra não ter que encarar a padaria do bairro logo às seis da manhã, mas teve que ir. Calçou os chinelos, fez um coque no cabelo, botou um vestido qualquer, colocou alguns trocados no bolso e foi comprar mais um maço de cigarros. Antes tinha preferências muito ortodoxas quanto à marca do cigarro, mas agora, há quatro meses sem emprego e fumando cada vez mais, tinha baixado um pouco seus padrões e fumava cigarros populares. O mesmo cigarro que fumam as empregadas domésticas no ponto de ônibus, e quem sabe as putas, depois do programa. Decaia e sabia de sua decadência. Por isso o período sabático em que só eram permitidos os vicios solitários e o contato com ela mesma. Tinha enlouquecido por vezes, chorado por longas noites até pegar no sono, tinha cogitado se matar com o gás aberto, mas achou a vida ainda irrelevante demais para um ato desesperado desses. Era o quinto dia do ano e era também quinta feira, e ela descia o elevador se olhando no espelho. Não se reconhecia muito bem, se via cansada, maltratada pela vida, quase trinta anos e nada de tão sólido assim tinha sido construído. Tinha um apartamento velho, um carro de dez anos atrás que ganhou do pai aos dezoito e uma vida sem muitos sonhos junto com um reveillon sem simpatias.
Era descrente de tudo, dela mesma, da capacidade de largar os vicios e seguia pela rua até a padaria da esquina pra saciar o único vício que ainda se permitia ter na semana de reclusão. Ia observando as pessoas, que a essa altura do ano já corriam pros seus empregos, com seus carros do ano, seus ternos, seus vestidos de marca. Andava de calça jeans, camiseta branca e havaianas e não se maquiava desde a virada do ano. Enquanto observava um cartaz desses de propaganda que dizia algo como "isso pode mudar a sua vida, nos ligue", se distrai e não percebe o movimento na padaria. Entra desavisada, pega os trocados no bolso, ameaça pedir um cigarro, mas olha em volta e vê todos deitados no chão. Um homem aponta uma arma pra todos e diz "vai moça, pro chão, pro chão". Ela deita, diz a si mesma que poderia morrer naquele momento, mesmo que fosse assim, sem realizar nada. Morrer no chão da padaria porque o vício do cigarro não podia esperar mais uma hora. Morrer pelo vício, morrer por não aguentar a vida sem as drogas legais. Morrer enfim por culpa, por sua máxima culpa, culpa sua de não ter se tornado um ser digno, respeitável, que cumpre as atividades de cidadão modelo logo que o ano começa.
O assaltante sobe no balcão e pede silêncio. Diz não querer nada, diz que tinha sido um homem honesto, que tinha tentado pelo menos. Diz que trabalhou anos e anos como servente de pedreiro, mas um dia sofreu um acidente, perdeu a mão e não podia mais ser pedreiro. Segurava a arma com a mão esquerda. Conta que ficou desempregado, se enfiou na bebida, foi perdendo tudo até que parou na rua. Conta também que um dia passava fome e ficou ali, na frente da padaria esperando a caridade de alguém. Entrou na padaria, aquela mesma padaria, e foi expulso por estar sujo, maltrapilho, foi olhado com nojo e não foi defendido por ninguém. Disse ele também que naquele dia deixou de acreditar que o mundo fosse um lugar bom e virou assaltante. Com o dinheiro dos assaltos dava pra comer bem, sem ser expulso, sem ser humilhado. Só tinha que tomar cuidado com a polícia. As pessoas o olhavam assustadas, pediam clemência, era o terror no bairro nobre da grande são paulo. O assaltante diz então que agora já não vê mais sentido em nada, e que não espera mais nada da vida, desse mundo em que a gente tem que assaltar pra ser respeitado, pra comprar um pouco de pão. Antes de puxar o gatilho diz que Deus entende os motivos de todo mundo, e que espera ser perdoado no céu, porque foi maltratado pela vida. Puxa o gatilho e vai matando, um por um dos clientes da padaria. Mata a senhora de bolsa de grife, mata o executivo que tomava café com clientes, mata todos aqueles que não o olharam no olho.
Ela observa a chacina, e não tem mais medo de morrer.
O assaltante - agora assassino - olha pra ela antes de puxar o gatilho e diz pra ela ir embora. "Moça, corre, você eu não quero matar não, eu vi que a senhora chorava enquanto eu contava a minha história, a senhora tem coração, ao contrário dessa gente". Ela sai correndo e olha pra trás a tempo de ver o último tiro. O assassino atira em sua própria cabeça e morre. Ela sai andando de volta pra casa, sem os cigarros. Não foi procurada pela imprensa, sua presença não foi notada na chacina que ninguém viu. Nada quis documentar, também. Só tinha a certeza de ser a única sobrevivente daquela quinta feira dia cinco. Passou os outros dois dias em casa, sem falar com ninguém, sem fumar cigarro algum e sem tomar um gole sequer de café. Percebeu que a vida era frágil e aceitou a redenção daquele assaltante como um sinal.
Ao final do dia sete, pegou as chaves do carro, saiu pra rua e percebeu que o único remédio pra vida não é calcinha colorida, nem beijo na boca a meia noite. A única solução possível é renascer a cada ano dos mortos, porque o único caminho é sobreviver.
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