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25.12.12

I want to break free

qualquer texto de libertação soa ridículo. hoje nem lembro quantas vezes abri aquela maldita página pra ver informações de coisas que não me dizem mais respeito. no fundo é o mesmo medo: medo de ter sido completamente esquecida, medo de não ter significado nada, medo de ter perdido. a conclusão é simples. não tem porquê nada disso. ele sempre esteve certo ao dizer que, se as coisas tiverem que vingar, vingam. no resto do tempo esteve ele vivendo a vida das maneiras que pôde e eu vivendo de mágoa do passado porque não podia pedir pra ele voltar (embora muitas vezes tivesse querido). o peso do orgulho é esse. se você nunca pode voltar atrás se reatroalimenta de raiva e rancor, de pedaço de vida jogado da outra pessoa, de suposição sem lógica. meu ano todo ferrado vivendo de lembrança e história de coisa que já foi. ele ali entranhado como se fosse tatuagem que não sai nem em trinta e duas aplicações de laser. tudo isso sem razão de ser, tudo isso e eu aqui, trancada em casa com medo da vida esperando que um dia tudo fosse vingar um telefonema, numa mensagem, num aviso em rede social. nada acontecerá. quando era tempo não resolvi e agora que seja. meu último texto foi a maior bobagem que já escrevi. meu último ano foi a maior bobagem que já vivi. eu espero que você seja feliz. quanto a mim, eu só quero me libertar. não te aguento mais sendo lembrança, idéia, sonho, paranóia, arrependimento; você é aquela mosquinha de dúvida no canto do meu ouvido, é a minha história feliz que acabou em tragédia, é a minha grande culpa. você é a minha memória mais viva e a minha maior loucura. você é a lembrança que não me deixa viver, é o quase amor que eu não esqueci, é a minha tragédia russsa é o meu horror. você já foi a melhor e hoje é a pior parte de mim. e você não tem culpa. e ninguém tem culpa. eu só quero te esquecer. eu só quero te esquecer de vez, I want to break free.

23.12.12

hoje falei pra mim, jurei, até, que essa não seria pra você

(e agora é).

"você não pode se apaixonar por ela", foi a primeira coisa que eu pensei ao ver a solicitação de amizade dele aceitada por ela que, sempre foi, sem saber, um grande fantasma chato na nossa relação que já se foi. Ainda posso lembrar com certa perfeição, ela e toda a sua eloquência, sua mania de não derrubar comida na blusa como eu, lhe dizendo que lia poemas para seu par amoroso da época e que, briga por poesia é um tipo de briga poética. Ele concordava, bastante encantado com o jeito louco dela, que eu ainda não tinha aprendido a ser. Esse jeito louco de falar de sexo abertamente, na mesa de um bar um pouco pra baixo da avenida paulista enquanto nós dois tomávamos uma cerveja que já não me lembro e  no andar de cima tocava linger dos cramberries (canção que sempre tentei imitar e até conseguia, depois de algumas tentativas ridículas e frustradas). Ele falava dela, dos poemas dela, das coisas que tinha descoberto dela e tudo aquilo me deixava insegura. Somos parecidas mas eu tenho de ser melhor pra você, mesmo sem livro publicado, mesmo sendo fracasso em vida, mesmo eu sendo essa pessoa que vomita a sua casa inteira e não consegue nem levantar da cama pra limpar. Olhei pro computador, gritei "menina filha da puta!" meio alto, meio histérica. Saí do Facebook e queria chorar, queria me desesperar, me jogar no chão puxando os cabelos todos da cabeça perguntando pra deus ou pra entidade responsável pelo universo qual é a razão que explica o fato de eu ser assim, tão preterida de vida, tão fracasso, tão ele adicionando minha amiga lunática no Facebook porque ela tem poema publicado no jornal e ele certamente se encanta com esse tipo de coisa.

Ficava pensando nos dois, que moram na mesma cidade, se encontrando para cafés e poesias, ele flertando de um jeito ridículo com ela em chats de rede social, ele lendo os poemas dela e contando pros amigos que aquela poetisa é muito interessante e que ele a conhece e a tem no Facebook. Mais ou menos como eu fiz uma vez com aquele escritor que quase joguei charme, quase fui pra balada junto, quase tive envolvimento por pura admiração besta, dele ser tudo aquilo que eu queria ser e não sou tanto assim. A diferença é que eu nunca trocaria ele por escritor nenhum. Acho que nem hoje, depois da tragédia, eu pensaria nisso. Todo o cenário se formando na minha cabeça enquanto eu andava pelo shopping lotado de gente histérica, segurando sacola e presente de natal, enquanto eu me doía ao som de killers porque toda tragédia ridícula merece uma música correspondente. Já podia imaginar ele puxando assunto, contando que nós dois não demos certo "nossa, mas ela não te contou?" "não, não me contou, faz tempo que não nos falamos" "pois é, terminamos, ela vomitou a minha casa toda, foi péssimo" e ela do outro lado rindo histérica e vai saber se ela também não ia me achar um pouco péssima e não ver problema algum em criar relação com a minha ex relação. "não somos tão amigas assim" - ela pensaria. E aí teria ele, com suas histórias de poesia, seus livros traduzidos, suas roupas bem cortadas e sua beleza de modelo que faz campanha publicitária pro natal da operadora de celular com modelo famosa. Eles dariam bem, eles dariam certo e eu ficaria aqui, andando de bar em bar, bebendo cervejas até não caber nada no meu estômago nem nada na minha cabeça; mas sempre sem vomitar, sempre com esse recente "equilíbrio emocional" que consegui a duras penas com remédio natureba e consulta em médico; com corrida no parque e auto análise em literatura que não merece um livro na editora que edita todo mundo.

Mas quase descontrolei. Cena de filme cult vencedor de oscar, eu sou. A drama queen escritora, perdida e recém saída de uma depressão que vence os traumas um a um ao som de música cafona e dancinha de pijama no quarto. Eu, ali, embaixo do chuveiro, sentada nua enquanto a água caía me perguntando "por que? por que isso? por que agora? será que nunca mais vou ter paz? será que nunca mais?". Isso e a água caindo quente e eu me encolhendo enquanto pensava que se fosse um filme melodramático eu tiraria a lâmina da gilete e tentaria me cortar dizendo alguma frase de efeito como "não consigo aguentar tanto desamor" ou então cantaria um verso de paulinho da viola "desilusão, desilusão, danço eu, dança você, na dança da solidão" e a próxima cena seria sangue escorrendo pelo ralo do box e a minha expressão seria de paz, alívio e êxtase. Talvez um último orgasmo, se quisesse ser assim, meio lars von trier; talvez só o rosto caindo de lado enquanto o sangue continua escorrendo pelo ralo, se for mais existencialista. Se fosse retratar minha vida, aconteceria de modo ridículo e eu me mataria e depois descobririam que eles nunca tiveram nada. Morte em vão, filme dos coen. Uma vida ridícula pra depois morrer em vão, morrer de mal entendido. Na vida de verdade, essa que vivo, nunca teria coragem de me cortar com uma lâmina, então só deitei no chão do box olhando debaixo a água caindo e pensando que, talvez, daria uma boa foto. O chuveiro e a luz, um bom enquadramento; "mas ia molhar a máquina", concluí. Então continuei deitada no chão frio do box, chorando sem sentir as lágrimas, a água caindo em cima de mim e um desespero grande de tudo aquilo que eu um dia tinha imaginado se concretizar.

Eu não aguentaria. Se ele tivesse envolvimento de uma noite que fosse com ela já ia ser demais pra mim. Qualquer outra, cinco de uma vez, mas, ela, não. Uma vez um outro amor quase se envolveu com a única garota que nunca poderia. Ela era ruiva e eu sabia que ela era a minha única ameaça concreta. De fato. Hoje sou ruiva e não temo mais as ruivas, nem as morenas, nem as loiras. Acho que amor é caso de fracasso mesmo, mas ela não. Não ela e seus poemas, suas franjinhas, suas tatuagens, seu sobrepeso, suas sandalinhas melissa e suas referências curiosas. Não ela tentando recitar poema enquanto ele tenta recitar poema também, enquanto ele faz macarrão e tomam vinho (mas ela não vomita). Qualquer uma menos ela. Queria gritar "por favor, tenham alguma compaixão". Compaixão pela minha alma morta, meu medo, pela amizade que um dia existiu, pelo relacionamento que brincava de querer casar. Por favor, alguma dignidade, alguma ética. Não inventem de ser amigos, dividir lanches ou salgados de frango. Não inventem os dois de se encontrar na "cidade onde tudo acontece" e ter noite tórrida de amor, e ter poema compartilhado. Não inventem de fazer minha paranóia virar realidade porque não mereço. Eu acho que não mereço. Dizia um amigo meu que todos os relacionamentos deveriam trazer em si uma questão ética. Lista de três famosos que pode ter noite tórrida de amor se um dia tiver chance; lista de três pessoas com as quais é proibido namorar porque ia ferir. Não assinamos esse tipo de contrato, ou contrato algum, mas deveria ter. Deveria ter mandado de restrição dele à ela, porque ela é uma versão melhorada de mim pra ele, ela é o que ele queria um pouco que eu fosse e eu não fui. Fico pensando nisso e saio e bebo cervejas e caipirinhas e mais cerveja e toda cerveja do mundo. Permaneço sóbria, ajudo uma menina com crise de pânico. Ela me diz que viu sua namorada a traindo com uma menina com quem ela já traiu uma vez. A menina hiperventila e me abraça. Eu digo que entendo o que ela sente e quase conto a minha história também. Ela pega na minha mão com os olhos rodando e diz "amor é assim mesmo". Concordo com ela. Ela sai pela festa e eu volto a beber. Me abraço com um amigo com quem nunca teria nada e me sinto um pouco acolhida. Entre embriaguez e gente não consigo lembrar dele começando amizade com ele e excluo a possibilidade deles estarem conversando. Entre embriaguez e um filme que já vi quatro vezes adormeço no sofá sentada e mantenho a compostura que ganhei com o equilíbrio emocional "veio de brinde", eu penso ao ver que não fiz nada a não ser reclamar um pouco em cento e quarenta caracteres pra ver se ela percebia que pelo amor de deus, nem pense em tentar aproximação. Ele não é um continente à sua escolha.

Penso que toda a narrativa imaginária não podia dar outra coisa que não história impublicável em livro. Eu mesma, sempre uma impublicável. Sempre escrevendo tratados de amor e trauma, tratados de vida errada e depressão e nunca uma história de sucesso. O ano em que minha vida saiu de férias. Férias ruins, casa de praia em cabo frio com parente mal educado e tragédia iminente. Filme barato de tragédia horrorosa, sem redenção. Filme passional de vingadora que quer acabar com o mal causado, sou a noiva e quero matar bill. E quero matar ela. E espero que toda a narrativa criada na minha cabeça seja ficcional. O controle emocional também ensina a diferenciar tragédia real de coisa inventada, e isso pode muito bem ser coisa inventada. E coisa inventada é literatura. Literatura ruim, não sou poetisa publicada em jornal, não tenho um estilo irreverente e me dizem ser parecida com clarice falcão em festas de gente esquisita. Sorrio. Ele gostava bastante da Clarice. A Clarice estaria na nossa lista de pessoa famosa que pode sim ter envolvimento breve se tiver oportunidade. Ela, essa de que falo, está em nossa lista de restrições. Se fosse mandar mensagem diria breve e louca: "ela não, poxa. tanta mulher no mundo". Pareceria louca e partiria numa névoa de descontrole. Em estando bem, transformo a loucura em literatura e apelo: não tenta nada com ela não, não me magoa assim

tanta mulher
no mundo.

10.12.12

entre umas e outras

(ou uma carta depois de um filme para um amor perdido).

Hoje vi um filme que me lembrou você. Tinha essa cara que sabia muito sobre vinhos. Como você. Eu, pessoalmente, nunca entendi coisa alguma sobre vinhos ou uvas ou pinots ou cabernets. Comprava o que parecia melhor. Não sei sentir cheiros, aromas frutados, coisa alguma. Sei do básico: ou gosto, ou não gosto. Quem se perdia nas prateleiras enquanto eu rodopiava pelo mercado era você. Você sempre confundia com impaciência. Na verdade, com você eu estava sempre com pressa. Acho que te encontrei poucas (pra não dizer nenhuma) vezes em que eu não tinha hora pra voltar pra casa. A equação é simples: os amores não podem ser construídos com hora pra voltar pra casa. Nossos encontros sempre tinham um fim em si mesmo. O amor precisa de eternidades. Não fosse assim, não teríamos nos encantado da primeira vez. Foi por poder conversar até o dia amanhecer que eu te conheci. Se fosse uma conversa marcada de duas horas não ia ter nada. Nosso caso tinha hora pra acabar, hora pra voltar pra casa, pressa de ir pro trabalho, de não perder a aula, de encontrar meus amigos. Nosso caso tinha hora pra acabar. Nosso caso tinha sempre uma hora pra ir embora de volta pra casa. E a minha casa sempre foi longe demais da sua.

Das poucas vezes que nos achávamos eternos, perdíamos o ônibus. Eu acabei lembrando daquela vez na padaria, em que a gente tomou duas mini garrafas de vinho e que você me contou umas histórias sobre um tal cachorro seu que a sua mãe tinha dado, daí chorou. Nunca antes eu tinha te visto chorar. Nem uma lagriminha boba, dessas que caem de canto de olho eu tinha visto. Você escrevia poemas e eu te contava sobre o sempre estar inacabado do escritor. Nunca seríamos, enfim, bons demais para sermos publicados. Naquele dia eu te contei sobre as minhas angústias enquanto devorava um brownie em que o sorvete derretia. Naquele dia você me chamava de escritora e eu acreditava em você. Naquele dia eu te disse olhando bem no fundo dos teus olhos, que não são de um castanho tão escuro assim, que você era o meu número. E, enquanto eu parecia eterna nos seus braços, o ônibus passou. Era sempre isso. Quando eu sentia que eu podia ficar com você pra sempre eu lembrava que tinha que voltar pra casa. Nenhum amor pode resistir se não tiver eternidade. O nosso se perdeu entre passagens de ônibus e meus tropeços no metrô. Não podíamos ser porque não tinhamos tempo. É preciso de tempo para amar. É preciso de tempo e o tempo é esse conceito relativo em que tudo pode acabar em um instante. Eu desisti de me desesperar. Era preciso que o tempo curasse as minhas feridas. Era preciso que a gente percebesse que um amor não se constrói correndo em visitas de quinze minutos. Em noites corridas. Em tempo marcado. Era preciso que a gente esperasse. Não ia ser dessa vez. Não no meio da minha loucura iminente porque eu não dei tempo pra curar minhas feridas. Não no meio do seu trabalho louco, dos seus afazeres, da sua mudança, das suas faxinas e das provas pras quais eu não te deixava estudar. A gente já tinha se esperado sem saber antes disso. Talvez a gente esteja em stand by pra se encontrar depois. Eu não sei. Não guardo mágoa, e não foi culpa de ninguém.

No resto dos dias eu fico aqui. Vez ou outra vejo alguma coisa que me lembra você e aí acabo ficando com vontade de escrever uma carta ou mandar um bilhete. Nunca faço. Esses dias meus fones ameaçaram quebrar e quase comprei um igual aos que eu tinha te dado. Desisti. Acho que as lembranças devem ficar na memória. Hoje foi esse filme. Tinha esse cara que queria ser escritor mas ninguém entendia seus livros. Tudo dando errado na vida dele, um sofrimento sem fim. Você nunca leu meus livros inacabados. Lembro de um vez que a gente brigou (nossa primeira briga quase-séria) e você ficou bravo porque não prestei a devida atenção no seu conto escrito na sua cafeteria preferida. Na hora achei bobagem, depois percebi que você é igual a mim. Não sabemos não ser a estrela do espetáculo. Um escritor é muito apegado à sua obra. Eu sou muito apegada às minhas histórias para que alguém não preste a devida atenção. O cara do filme tinha uns problemas de relacionamento, era ainda apegado à mulher de quem já tinha se divorciado fazia dois anos. Acho que a gente também era um pouco apegado às nossas velhas histórias. Não boto nisso a culpa do fracasso. O fracasso só acontece. Ele estava ficando careca, como você vai ficar um dia. Eu espero que você consiga publicar seus livros e que, ao contrário dele, esteja bem sucedido aos quarenta anos. Eu também espero estar. Não sei se estaremos. Pelo menos, se um de nós dois der certo, a gente pode saber um da vida do outro a distância.

Não sei muito de você. Torço pra que esteja bem. Eu ainda não estou. Larguei minha monografia de lado, pego uns trabalhos aqui e ali e me acho uma bagunça. Sou muito diferente daquilo que você conheceu nos meses em que já não estávamos muito bem. Atingi o tão querido equilíbrio. Vez ou outra ainda sei que estou apática. É assim mesmo. Às vezes a vida não tem porquê. Corro religiosamente todos os dias e ganhei um fôlego que eu não tinha. Agora corro sem pressa. Me exercito na academia ao ar-livre e tenho as pernas duras. Fiquei ruiva como você me sugeriu da última vez que nos falamos. Sempre quis ser ruiva, mas nunca dei o braço a torcer. Acho que combino assim e, vez ou outra, penso em fazer uma tatuagem. Quando falo isso lembro de você me rodopiando na cozinha dizendo "quem é que disse que nunca ia fazer uma tatuagem?". Não gosto de eternidades. Era essa a minha justificativa pra nunca selar nada no corpo. Agora queria que algumas coisas fossem eternas. É eterna a saudade dos meus avós. E um dia vai ser eterna a saudade dos meus pais. Fiquei com vontade tatuar qualquer coisa que seja que me lembre eles pra ficar eterno no corpo. Alguma coisa escrita em mim que seja deles e que vai se decompor comigo. Tenho medo do meu pai morrer jovem, antes de ter me visto ser alguma coisa na vida. A única coisa boa de não termos sido eternos pelo tempo que durasse foi que pude ficar aqui sem culpa. Cuidei dele. Estive. Restaurei a nossa relação. Tive medo do que teria sido se eu não estivesse aqui. Percebi que no mundo existem muito poucas eternidades. Eu passei o aniversário dele com você. Não me arrependo, mas depois fiquei pensando que a gente sempre acha que haverão muitos aniversários ainda por vir. Eu não sei quantos serão. Quando ele quase ficou cego tive muito medo de ter perdido o último aniversário onde ele ainda poderia me ver. Ele ainda me vê. E me chama pra tomar cafés. Como você, percebe a diferença entre os pós e os expressos e prefere sua água com gás. Vocês dois roncam alto igual. Enquanto te escrevo ouço os roncos dele e percebo que não me incomodam mais porque eles sinalizam que ele está vivo. Nada é eterno. Mas eu sou tudo o que eu tenho. Estarei comigo pela eternidade. Tudo que estiver em mim também estará. Achei que uma marca física que me lembre eles talvez faria sentido. Pensei num violão, as flores preferidas dos meus avós e a preferida da minha mãe. Nas costas. Uma versão ruiva e tatuada de mim mesma eu não sei se você imaginaria. Acho bom que estejamos em constante mudança. Você não acha?

Às vezes ouço samba sozinha e lembro que nos prometemos um samba que nunca houve. Meu avô gostava muito de tudo aquilo que a gente já ouviu junto. Acho que você ia gostar do meu avô. Ele também ia gostar de você, se te conhecesse. Eu nem sabia que você existia no planeta terra quando ele morreu. Teriam se gostado. Ele gostava muito de contar histórias, e você gosta de ouvi-las. Hoje tudo que eu tenho dele são as histórias que conto sobre ele. Lembro da vez que o seu avô ficou doente e eu estava longe. A gente brigou por nada. Era o começo do fim. Sempre achei bonito que você gostasse tanto assim dos seus avós. Continue cuidando deles e estando perto. Eles não são eternos. Mas, veja, o amor, pre existir, precisa dessa sensação de eternidade. Quando você ama alguém você sente que ela nunca vai acabar. Ela nunca vai ter que ir embora. Um dia elas tem que, mas é melhor que a gente não se lembre disso. A gente sempre lembrava que tinha que se despedir. Eu sentia que a gente ia acabar. Sua avó, se ficou sabendo de nossa horrível história, deve me achar um horror. Espero que a colcha dela permaneça intacta. Não era a minha intenção. Ela parece ser um ser adorável. Todas as avós são e nenhuma delas merece ter a colcha manchada. Ser uma bagunça nunca foi a minha intenção. Pelo menos não desse tipo de bagunça que sai destruindo tudo o que vê pela frente. Às vezes gostar não é o suficiente, sabe? É preciso um pouco mais. Eu acho que eu queria que você me salvasse. E, o paulo coelho, apesar de cafona, está certíssimo em dizer que a cura está dentro da gente. Ele deve ter dito isso em algum desses livros dele. Você gosta do paulo coelho? Eu não gosto. Nunca conversamos sobre isso. Nunca conversamos sobre várias coisas. Certas coisas só podem ser ditas quando as conversas não tem hora marcada pra acabar. As nossas tinham. Era necessário falar do que importava. E, para que o amor se construa, é necessário, vez ou outra, discutir paulo coelho.

De vez em quando penso em você quando ouço Chico ou quando percebo que não gosto mais dos textos do Caio F. Você gostava mesmo? Foi um pouco assim que a gente se conheceu. Éramos tão jovens. Quinta feira vai ter um show de um grupo independente com a ópera do malandro. Vi e pensei que você pudesse gostar. Da peça que eu vi com texto do Caio F. também. Fiquei sabendo por cima que você fez ou gosta de teatro. Acho que eu seria atriz. Acho que eu podia ser qualquer coisa. Talvez por isso tenha optado por escrever. Escrevendo a gente pode ser qualquer coisa. Escrevendo eu posso te escrever essa carta que você não vai ler. Torço para que você esteja bem. Espero que ainda te escrevam outras cartas de amor melhores que as minhas a próprio punho e que te façam a festa com brigadeiro, bolo de chocolate e chapeuzinho de festa que eu queria ter feito ano passado mas não consegui. Espero que alguém um dia também saiba que você tem um sonho secreto de ter uma festa de criança. Espero que nós dois consigamos interlocutores interessados em nossas narrativas fantásticas. Alguém ainda há de ser sua leitora mais dedicada. Alguém que muito provavelmente não vai ser eu. Espero ver seu nome em livros nas estantes da livraria onde tivemos nosso primeiro encontro. Espero que um dia tenha o meu, também. Casaram lá esses tempos, você ficou sabendo? Todo mundo achando brega e eu rindo um pouquinho porque sei que no auge de nosso encantamento nos mandaríamos links dizendo que podíamos casar nós dois lá também. A nova temporada de mulheres ricas parece que vai ser ruim. Logo-logo vem o natal e o ano novo, e chegam as semanas em que me lembro de trocar intermináveis mensagens com você. Na virada do ano nos prometemos nos conhecer. Aconteceu. Deu certo e depois deu errado, igual a tudo na vida (não é esse o nome do seu filme do woody allen preferido?).

Não sei o que o futuro nos reserva. Espero que surpresas melhores. Talvez, algum dia, eu te encontre por aí. Talvez não. Em todo caso saiba que se me ver daqui alguns anos e eu estiver de cabelos ruivos e tatuagens, não estranhe. O mundo é essa coisa em constante mutação. Espero que esteja feliz. Espero que você seja mesmo muito feliz. Hoje, como diz aquela música que ouvimos na sua casa pouco antes do desastre: me sinto mais forte, mais feliz quem-sabe, e só levo a certeza de que muito pouco eu sei, ou nada sei. Acho que o Almir Sater tem lá sua razão quando afirma que é preciso chuva para florir. Às vezes lembro de você em dias como hoje e penso nisso. Penso nessas coisas todas que já se foram. Hoje penso em tudo bem mais leve. A vida é feita também de tragédias. A outra face do sentimento é a tragédia, inevitavelmente. Não quero ser um daqueles escritores geniais que no fim se matam, sabe? A vida não faz nenhum sentido mas pode ser pior sem ela. É também um pouco pior sem amor. Espero que você ame de novo e eu também. Espero sempre o melhor pra nós dois. Te-quero-sempre-bem. E digo assim, com esses hífens que você sempre disse que eu não-sei-parar-de-usar e que a língua portuguesa em sua nova ortografia vem rejeitando. Te desejo o melhor. Os melhores vinhos, o melhor sexo e a melhor literatura. Se possível, os três juntos. Se possível ainda, ser feliz. Se ainda couber um pouco mais, um apartamento bem decorado e um cachorro de pelos curtos. Por você eu lembro de querer ter um cachorro e eu nunca gostei tanto-assim de cachorros. Obrigada por tudo aquilo que você um dia fez nascer em mim. De bom e de ruim. O bom me fez feliz e o ruim me fez crescer. Obrigada por ter sido comigo enquanto deu. O destino de toda história talvez seja o mesmo dos impérios romanos: a  conquista, o apogeu e um declínio com tragédia. Mas sempre sobra alguma coisa de belo, como um coliseu. Espero que de mim também tenha sobrado alguma coisa bela em você. Quem sabe a gente ainda se esbarra por aí, entre umas e outras, enquanto eu tropeço nos astros (e na rua) desastrada; como um dia cantou o Caetano - e você.



2.12.12

o que será que será?

Odeio tudo que eu escrevo. Quero jogar no lixo tudo isso que eu penso e repenso e que não sai texto nem coisa nenhuma que fique perto do aceitável. Sinto sono e não durmo de jeito algum. Descobri que o mundo se divide, primordialmente, em dois grupos de pessoas: as que estão e as que não estão. As pessoas que estão são as que mesmo em meio a loucura da vida arrumam um tempo pra se fazer presentes; as que não estão inventam estranhas desculpas, fazem morrer os cachorros e sempre tem alguma coisa terrível da faculdade pra terminar. Descobri que pra amar é necessário passar sono e se gastar o dinheiro que não tem. Estar só quando dá pra estar é fácil demais. Tenho estado irremediavelmente sozinha. Já nem sei como desabafa. Nunca mais falei de mim e nunca mais escrevi nada que prestasse. Lembro de uma carta de amor (ou quase-amor) que escrevi no começo do ano e fico pensando que essa pessoa morreu. Eu morri. Não sei articular uma frase ou demonstrar emoções. Observo todo mundo com a frieza de quem narra uma história sem se envolver. Sou narrador-observador e não mais um narrador-personagem. A essas alturas acho que a vida pode fazer o que bem entender de mim. Eu me distanciei tanto de tudo e me machuquei tanto por dentro que eu já nem sei o que eu esperava. Não tem porquê acordar de manhã ou comprar roupa cara. A felicidade não é muito mais que conseguir tomar caldo de cana quando se tem vontade de caldo de cana. Nunca mais falei de mim, nunca mais saí sem me sentir bicho do mato. O estrago que tudo isso causou em mim (seja lá o que for "tudo isso"), parece muito mais difícil de curar do que se imaginava. Me sinto sem par no mundo e fico com vontade postar fernando pessoa com seu poema em linha reta. Fico com vontade tatuar fernando pessoa na testa. Tenho vontade de gritar e não grito. Sei que não posso fazer nada a não ser viver o que tenho que fazer agora. Nada dura pra sempre. Nem a felicidade, nem a tristeza. No mais acho que a minha cabeça esvaziou. Não sai nem texto nem trabalho. Nada sai da minha cabeça a não ser essa louca vontade de qua a vida faça um sentido qualquer. Não faz. Não consigo escrever um livro, uma monografia ou chamar alguém pra sair. Nunca mais falei de mim.

Acho que me tornei uma estranha que não sabe mais escrever, ou existir.

25.11.12

uma dedicatória qualquer

hoje acabei lendo todo mundo compartilhando uma tal dedicatória de um tal amor que durou pra sempre e resolvi eternizar minha melhor de dedicatória, de um dos melhores livros, por um dos meus melhores amores. 

(em o "Cheiro do Ralo" em qualquer lugar perdido em  dois mil e dez e em um amor que foi muito bonito e aí passou).  

"A fim de melhor escrever essa dedicatória, dei uma rápida passeada pelo livro e encontrei isso: 'Estive no inferno e lembrei de você'. De certa forma, estive no inferno nesses últimos meses e lembrar de você era quase obrigatório. Esse livro e toda a viagem tenta timidamente representar a alegria que me dá estar contigo, embora eu saiba que nem de longe ela começa a ser desenhada. Tenho uma péssima caligrafia fora de linhas e estou tentando por palavras, então essa com certeza não será a melhor dedicatória do mundo, mas será para a melhor mulher e o maior amor. Espero que seja bom, e qualquer coisa me empresta

Te amo, feliz 21!" 

Todas as cartas de amor são ridículas, mas não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. 


20.11.12

já de saída minha estrada entortou; mas vou até o fim

Eu sempre soube, desde muito criança, que o otimismo não me caia bem. Preferia a melancolia. Nenhuma razão específica a não ser um fatal: tem que ser assim. A vida nunca foi lá muito simpática comigo. Me fez alta demais em comparativo com as minhas coleguinhas, e tivemos alguns acidentes de percurso. Nasci introvertida. Não gostava das outras crianças, dos clubes, das recreações; não tinha amigos de brincar no prédio. Eu só lia. Minha mãe me deu de presente uma assinatura de gibis da turma da mônica e aquele era o melhor presente que eu podia ganhar. Ler pra mim era prêmio. Eu sempre terminava os exercícios antes de todo mundo e aí podia ir na biblioteca escolher o livro que eu bem entendesse. Acabei com a coleção da bruxa onilda e do monteiro lobato. Depois veio a coleção vagalume e os livros do pedro bandeira. Todo um imaginário que era melhor que a vida em si. Toda e qualquer literatura, ainda que trágica, é melhor que a vida em si. A vida açoita sem poesia nem pausa. A vida não tem métrica e esquece de rimar. Soube, desde muito cedo, que o único caminho era a melancolia. Acreditar era confuso demais. Eu me desiludia com facilidade. Minhas amigas me deixaram sozinha na quinta série e eu passei alguns vários recreios chorando na biblioteca. Confiar sempre foi uma coisa rara em mim. Às vezes eu mesma achava que eu tinha algum desvio sério de caráter. Não era normal que eu fosse assim, tão sem querer alguém que soubesse cada linha de mim. Não entendo dos meus traumas de infância e evitei a psicanálise tanto quanto pude. Ainda evito. Não tenho dinheiro nem saco. Nunca fui otimista. Nem no amor nem em nada. Sempre soube que a vida está aí, traiçoeira, pronta pra te dar o bote em qualquer oportunidade.

Dois mil e doze foi meu maior bote da vida. Pareço disco riscado e vitrola velha quando digo isso. Às vezes eu fico pensando como sobrevivi à tudo aquilo. Eu, com tanto medo de viver me enfiando em vans que corriam mais do que deviam em plena dutra sem saber muito bem pra onde eu estava indo e nem onde eu queria chegar. Eu, bicho afugentado sem saber que o nome daquele olhar perdido no horizonte e da minha vontade de chorar era: depressão. Eu quis que alguma coisa fosse minha salvação. Por isso tudo assim, tão louco e rápido. Algo tinha que me salvar daquilo, da minha falta de vontade de sair, da minha vontade de me enfiar debaixo das cobertas e ficar pra sempre. Eu queria que fosse um emprego, ou ele. E é claro que colocar as expectativas da sua vida em qualquer lugar que não seja você tende a um risco enorme, ainda mais quando o problema é você mesma. Depois de estragar tudo a gente acha o problema, cuida do problema e sara de mansinho. Vontade de viver eu ainda não achei tanto assim. Não tenho plano nem meta, nem vontade louca de ser alguma coisa. Não tenho nada. Um bom conselheiro um dia me disse que uma das grandes vantagens de não saber pra onde se vai é que o mundo se torna então cheio de possibilidades. Sorri no meio do caos. Ele tinha um pouco de razão embora eu ainda estivesse bem perdida. Ainda não sei qual dessas possibilidades eu quero (se é que eu quero alguma), mas é, ok, a vida ainda tem possibilidades.

Hoje foi um dia ruim. Tem dia que é. Passei metade dele tentando criar coragem pra mandar um e-mail que já estava escrito e abrir um e-mail que já tinha recebido. Depois disso várias pequenas decepções. Fui correr. Viciei em endorfina porque sim, e só correr salva. Cazuza gritava no meu ouvido que "eu te avisei, vai à luta; marca teu ponto na justa e o resto deixa pra lá". Sorri. Talvez fosse isso. Fazer o que eu tinha que fazer e deixar o resto pra lá. Todo esse resto estranho, essa gente que não me entende, minhas terças feiras frustradas e a falta de fé. Tem que ir de mansinho, o resto vem. Vem mesmo? Deve vir. Cheguei em casa menos mal, e fucei por vício a página dele. Ele parece estar com uma outra que, é claro, não sou eu e nem tem tanto assim a ver comigo exceto pelo fato que ela também corre e ela também curtiu "morangos silvestres" do bergman. Quis chorar. Aquela era a constatação óbvia de que a vida continua, não importa o quanto eu tenha ficado jogada largada no chão enquanto tentava me recuperar. Chorei. Chorei por mim, por ele, pela menina nova dele e por todos nós que queremos tanto ser felizes e não somos. Chorei por todas as conversas que não consigo ter, pela distância, por todos os convites recusados e por todas as cervejas que eu não pude dividir no bar, com outras pessoas. Chorei pelo meu grande amor perdido, que nunca mais atenderá as minhas ligações e pra quem eu nunca mais poderei pedir socorro quando a vida doer que nem doeu hoje, nessa terça feira à noite com gosto de fracasso. Meu grande amor perdido hoje casado, segura pela cintura sua mulher e divide com ela as aquarelas dos desenhos que eu nunca soube fazer. Ficou na caixa nossa ideia revolucionária de escrever quadrinhos juntos. Meu texto e o desenho dele que hoje nem tem mais traço único. Meu grande amor perdido, e exorcizado ao som de death cab for cutie. Meu grande amor perdido que não mais me seguirá dentro da escuridão, caso eu precise. Meu último amor perdido segurando pela cintura uma menina de cabelos curtos e olhos verdes. Parecia feliz, nunca sei dizer quando ele está mesmo feliz. Meu último amor perdido exorcizado ao som de coisa alguma porque vejam, não tinhamos assim uma música-tema. Chorar com shakermaker não tem graça alguma, então resolvi chorar ao som de caetano porque essa vida já tá qualquer-coisa. Meu último amor perdido sem barba e com as roupas bem escolhidas de sempre, já nem deve lembrar de mim de um jeito diferente de: "aquela louca que vomitou minha casa toda". Não é assim com tudo? Viramos umas pessoas de adjetivos simples e piadas prontas. Viramos mais uma foto no hall de relacionamentos. Acho que nunca mais verei nenhum deles, a não ser que a vida se encarregue dessas loucuras. Não espero nada.

Quanto a vida, sabemos que ela é de idas e vindas, mas certas coisas permanecem. Permaneceu meu encontro único de entendimento mágico com o único homem que agora ouso chamar de "melhor amigo". Ele, que segurou as minhas barras e que me diz na cara o que eu devo ou não devo fazer se quiser continuar tendo alguma decência na vida. Minha carência era de palavra. Palavra entendida. Eu queria que alguém me fizesse um acalanto na alma, e ele sabe fazer. Nos entendemos. Sempre nos entendemos. Desde a primeira vez em que ele estava de coroinha que piscava na fila do trote da faculdade. Continuamos nos entendendo, quase seis anos depois. Eu tenho medo da vida, ele tem medo da vida, temos medo de ficar sozinhos. Ele tinha medo que eu fosse infeliz. Eu tinha medo que ele não conseguisse dar conta. Ele esteve comigo nos piores dias da minha vida, e nos melhores também. Foi quem conheceu e deu pitaco em todos esses amores que já perdi. É quem chegou antes e vai embora depois. Uma das únicas pessoas no mundo com quem eu posso falar de tudo. Nós dois sabemos do nosso desencaixe, da nossa desesperança. Nós dois sabemos um sobre o outro coisas que não falamos. Eu sei quando ele mente e ele sabe quando eu falo meia verdade. Eu sei que é por ele, e só com ele que é possível seguir em frente nas terças feiras ruins. A vida não tem jeito. Não vai chegar ninguém virando ela de cabeça pra baixo e fazendo dela um grande acontecimento. Nada de extraordinário acontecerá na maioria dos dias. Tem o que tem. É isso. Todos os dias um nada sem sentido pra de vez em quando haver alguma coisa qualquer que faça sentido.

Quanto ao presente, entendo que depois de ter perdido tudo, só dá pra começar da onde há alguma coisa. Eu faço tudo que eu posso, tento tudo o que tenho. Não dá pra querer o que eu não posso ter, não dá pra desejar o que eu não tenho mais. Meu grande amor perdido casou, meu outro amor perdido arrumou uma menina qualquer pra passar os dias e, quem sabe, namorar e cantar caetano; namorar e discutir Nabokov; namorar e dizer "eu te amo" em russo enquanto ela responde em alemão. Meu grande amor perdido hoje desenha coisas estranhas e não vai mais à orquestras. Não somos as mesmas pessoas. O que ficou pra mim é o que eu imaginava que ficaria. O outro cara que eu gostei desde o primeiro encontro desajeitado. O cara pra quem comprei uma revista que eu nunca tive coragem de dar e nunca dediquei um texto. O cara que me deixa falar sobre teorias estranhas e ouve resignado, mesmo que depois esqueça tudo. O que sobrou pra mim é isso que eu posso ter e que, talvez, seja o mais certo a se ter. E se não for ele será outro, ou não será ninguém. O que sobrou pra mim é uma pilha interminável de questionamentos sobre identidade, pós modernidade, globalização e tudo mais que o cerca. O que sobrou pra mim é uma cabeça confusa e chata, um jeitinho estridente de reclamar, uma amizade completamente perdida no processo e alguma esperança. O que sobrou pra mim é o que eu posso fazer. Não se pode antever a vida. Não sei o que será do meu próximo ano porque não sei nem como vai ser amanhã. Pode bem ser que o mundo acabe dia vinte e um destruindo todos os nossos sonhos. Deixando nossas monografias incompletas, os vestibulares sem resultado, os noivados sem casamento. Pode ser que tudo continue e o fim de tudo é isso: continuar. Porque o fim de tudo é sempre continuar. Continua quando você perde um grande amor; continua quando você perde seu último amor; continua depois de uma depressão; continua depois da doença dos seu pai; continua depois que todos os seus amigos foram morar longe de você e não existe conforto. Continua mesmo depois que você conhece o mutarelli ou o Zeca Baleiro, ou a Paula toller. Continua depois de síndromes do pânico, depois de um show visto de trás de pilastra e de inúmeras decepções. Continua mesmo nas terças feiras quando você chora encolhidinha no banheiro porque seu último amor já seguiu a vida e você ficou caída e atropelada.

Continua, porque tem que. E no meio disso tudo, não tendo outro jeito, resolvi eu continuar também. Meu último amor durou alguns poucos meses, terminou em desastre e foi exorcizado ao som de Caetano. Meu grande amor perdido durou alguns anos e foi exorcizado ao som de mick jagger. Minha decisão de continuar tem mais ou menos uma hora, veio depois de uma conversa e foi animada ao som de deborah blando. Eu soube desde criança que a vida é muito mais melancolia que otimismo, e isso daqui não é uma carta de otimismo. É uma carta de constatação: se tenho que continuar, que seja ao menos pretendendo não ser miserável. Que seja com mais café que preguiça e com mais alegria que choro encolhida no banheiro. Continuo porque, inevitavelmente, descobri que não há outro modo. E vou até o fim.

17.11.12

sempre vai haver uma canção contando tudo de mim



O Rodrigo nunca soube que eu ouvia "Ele quer me conquistar" enquanto sonhava platonicamente que ele era perdidamente apaixonado por mim e não só queria conferir comigo as respostas de matemática no colégio. O andré nunca imaginou que eu entendi aos doze anos - depois de descobrir que ele não era apaixonado por mim, e sim pela menina que eu mais odiava no colégio - o sentido da frase "agora você vai embora, e eu não sei o que fazer; ninguém me explicou na escola, ninguém vai me responder". O Fábio não sabia que eu pensava nele ao ouvir "amanhã é 23; são oito dias para o fim do mês. Faz tanto tempo que eu não te vejo, eu queria o teu beijo outra vez" porque ele fazia aniversário no dia 22 de janeiro (que vem a ser um mês de trinta e um dias, como na música). O fernando não imaginava que, enquanto ele me perseguia pelo colégio, eu ficava cantarolando "porque é que eu não desisto de você?" tentando entender como é que podia alguém que nunca tinha falado comigo me querer tanto assim. 

Perdi as contas das crises de ciúmes que eram entendidas ao som de "Seu Espião", das noites que chorei encolhidinha na cama me perguntando "se existe alguém ou algum motivo importante que justifique a vida ou pelo menos esse instante", de quantos amores eu pensei que, se não tivessem exagerado a dose, podiam ter sido grandes amores. Meu grande amor não soube que eu só entendi exatamente cada palavra de "os outros" quando o perdi. Não soube também minha mais recente decepção amorosa que, depois de anos ouvindo "alice (não me escreva aquela carta de amor)", eu finalmente fui entender que tantos sonhos morrem em poucas palavras; um bilhete curto e já não há nada. Estavam certos em pedir a Alice pra não escrever aquela carta de amor - eu não devia ter escrito também, concluí chorando. Não sei quantas vezes citei sem ninguém entender que "eu tenho pressa e tanta coisa me interessa, mas nada tanto assim" e mal pude explicar a mim mesma o quanto "nada sei" é uma música libertadora porque trouxe em si toda a sensação do não-saber dos meus treze ou catorze anos. Entendi exatamente o que paula me ensinou aos onze, quando eu andava pra lá e pra cá com meu diskman rodando kid abelha, quando dizia que "garotos perdem tempo pensando em brinquedos e proteção; romances de estação, desejos sem paixão: qualquer truque contra emoção" assim que tive minha primeira decepção amorosa. Paula sempre esteve mais certa que o Leoni. Leoni retratava o igenuidade de um garoto perto de uma mulher, mas a Paula sabia que os garotos gostam mesmo é de iludir, sorrisos, planos, promessas demais. Poucos deles não queriam que eu fosse outra, entre outras iguais. 

Além da minha mãe, das novelas da tv, dos livros que eu devorava quase que maníaca; a outra responsável pela minha formação com certeza foi Paula Toller. Não só ela, como todos os meninos do Kid Abelha. Só que ela era mais, porque ela também era uma menina. Fosse um homem cantando aquilo, não faria tanto sentido. É como o Legião Urbana: eu até gostava do renato, mas sabia que certas coisas ele nunca seria capaz de entender. Ele não escreveria "Garotos" porque era um garoto também. Era um pouco isso que eu pensava, de camiseta larga e calça esquisita, ouvindo meu diskman enquanto o mundo passava em volta. Tive todos os cds do Kid Abelha que existiam. Me apaixonei pelo acústico quase que perdidamente e, encontrei em "eu tive um sonho" minha música preferida por meses e meses. "Não deixe de cruzar o seu olhar com o meu; eu vou jogar meu corpo em cima do teu" era a maior declaração de amor que um ser humano podia fazer ao outro. Sonhava em encontrar um amor que não deixasse de cruzar o olhar dele com o meu, e que desejasse nunca deixar de jogar o corpo dele em cima do meu. Não encontrei naquele ano. Pensava num único garoto que nunca me deu bola. "Dizem que sou louca por eu ter um gosto assim, gostar de quem não gosta de mim". Em todo caso aprendi também que o pior de tudo era não amar, e jogava as minhas mãos para o céu porque tinha alguém que eu gostaria que. 

Minha adolescência foi toda embalada pelos inúmeros CDs do Kid Abelha que eu comprei. Fiz as meninas do meu grupo na educação física dançarem "Fixação"ao invés de backstreet boys com doze anos de idade. Eu nem lembro quantas vezes eu ouvi esse tal CD duplo. Tivesse uma last.fm naquela época, Kid Abelha facilmente estaria no topo de execuções. Eu tinha a pose exata pra me fotografar, e aprendi num filme pra um dia usar. Mantinha um ar cruel de quem sabe o que quer. Sabia todas as letras de cor. Eu tinha pressa, tanta coisa me interessava - mas nada tanto assim. Eu, minha franja que não se acertava direito, minhas roupas feias e meu nariz grande demais tinhámos em Paula Toller e seus abóboras selvagens um refúgio contra o horror que é crescer sem saber direito o que era crescer. Era anacrônico ouvir Kid Abelha nos anos 90. Aquele CD era anacrônico, mas as músicas eram minhas. A Paula Toller me entendia. Quando ela entrou no palco eu não soube fazer outra coisa a não ser chorar. Eles diziam que iam fazer uma viagem pelos 30 anos de carreira. Essa viagem era também a viagem pelos meus vinte e três anos de idade. Lembrei de amores, ex-amores, dos meus pais, de amigos que não são mais meus amigos, de boas noites e de noites terríveis. Eu ouvia os barulhos do começo de "Seu espião" e podia me ver de novo encolhida no banco de trás do carro sabendo que eu ia ouvir pela décima vez meu CD preferido. Não tem palavras que digam direito o que é ver de perto a banda que embalou toda a sua formação como pessoa adulta. Eu sabia todas as letras de cor. Todas aquelas frases já tinham sido escritas nas minhas agendas em algum lugar do passado. Todos os meus amores platônicos pelos meninos da sala ao lado tinham como trilha sonora uma música qualquer com a voz doce da Paula Toller. A voz doce da Paula Toller que dias atrás me fez chorar com "uniformes" que eu ouvi encolhidinha debaixo dos lençóis, igualzinho eu fazia quando eu tinha treze anos e não queria que a minha mãe me visse chorar. 

Tanta coisa que não muda. Eu ainda vou errando enquanto o tempo me deixar; eu escolho filmes que eu não vejo no elevador pelas estrelas que eu encontro na crítica o leitor; eu ainda não sei o que fazer quando alguém vai embora porque ninguém me ensinou na escola e ninguém vai me responder; eu ainda não aprendi com a Alice a não escrever aquela carta de amor (por que você precisa ser tão sincera?). Eu queria dizer de algum jeito pra Paula Toller que ela tinha sido minha amiga. Que ela, sem nem saber, me compreendeu durante essa jornada estranha rumo a ficar adulta (ou quase). Eu não ia saber o que dizer a não ser "obrigada". Eu não soube muito bem o que fazer a não ser dançar no meu mundinho particular no meu primeiro show sozinha. Ninguém seria capaz de entender minha íntima relação com aquela banda que é da geração passada. A relação era entre eu e eles, igualzinho era quando eu ouvia mil vezes o mesmo CD deles durante as minhas viagens. Ninguém, além de mim, entenderia o porquê dos meus olhos marejados ao perceber que aquela voz que me entendia nos meus fones de ouvido que sempre quebravam, existe e faz piada. Eles existem fora do meu universo e no universo de várias outras pessoas. Eles embaralam não só a minha vida como também alguma parte da história do casal na minha frente e do menino do meu lado. Eles foram a trilha sonora da vida da minha mãe e da minha. Eles foram a trilha sonora de romances que não existiram, inseguranças que eu não contei pra ninguém e, talvez, de partes da minha vida que ainda nem aconteceram. Eu redescubro identificações que não sabia aos dez anos quando roubei o CD duplo da minha mãe. Eu entendo coisas que não entendia na época. Certas coisas eu ainda sinto exatamente do mesmo jeito, e volto a ter doze, treze, catorze, quinze anos. Certas coisas sempre vão ser iguais. Perder um grande amor vai trazer sempre consigo a ideia de que "depois de você, os outros são os outros e só"; novos sonhos ainda vão morrer em poucas palavras e, eu ainda quero alguém não deixe de cruzar o seu olhar com o meu pra eu poder jogar meu corpo em cima do seu. 

O que eu entendi é que certas coisas continuam inalteradas. Eu cresci e continuo sentindo certas coisas exatamente iguais. A Paula envelheceu e continua tendo a mesma voz que tinha quando tocava no meu diskman da philips que funcionava com pilha. Amor dói e faz feliz; às vezes nada nisso tudo faz sentido; eu ainda vou errar muitas vezes e pouco vou saber dessa vida. O que fica é isso. O que fica é isso que tem dentro. O que fica é saber que sempre existe algo que você gostaria que estivesse sempre com você na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê. E esse algo pode ser qualquer coisa, desde que faça sentido; até mesmo um CD velho de uma banda dos anos 80. Afinal, sempre vai haver uma canção contando tudo de mim; sempre vai haver uma voz contando tudo de nós. 

12.11.12

acho que eu sou um palhaço triste

devia ter feito mil coisas. até ia. me deitei no sofá e fiquei ali estirada pensando numa vida toda que poderia ter sido mais e não foi. meus pais brigavam e resolviam não se falar. em cima da casa jazia uma imensa nuvem cinza de tristeza e pesar que só podia (se podia) ser dissipada com algum paleativo desses que não cura nada, mas alivia a dor. brownie de chocolate. acertar o ponto do brownie é tipo conseguir ser feliz na vida. um equilíbrio frágil. nem sempre vai dar certo. cinco minutos a menos deixam uma massa mole demais, cinco minutos a mais deixam a massa um bolo de merendeira de colégio estadual. uma massa pesada e estranha, com uns craquelados que são açucar puro. as instruções são claras: começou a craquelar, tira do forno. aquela massa desforme e mole vai se tornar um belo bolo. não dá pra acreditar. é mais ou menos como dizer que sua cara errada e desforme vai ficar bem quando chegar a vida adulta. mas funciona. uma hora de descanso, um pouco de geladeira: temos um brownie no ponto perfeito. uma coisa meio bolo, meio massa-mole. gosto de chocolate, serotonina em estado puro. quietura no coração. era isso: eu precisava de um pouco de quietura no coração porque carregar o mundo dói.

gosto de fotos. uma época, na faculdade, queria ser fotógrafa de comida. gosto muito pouco de gente, não acredito em casamentos, subvalorizo formaturas. grande coisa ser fotógrafa de um album que vai ficar dentro da gaveta. comida não, comida dá gana. queria ser fotógrafa de algo que inspirasse desejo. acho que se não fosse comida seria gente nua. arrisco isso, mas ainda prefiro a comida. tem toda uma magia nas fotos de comida que faz delas puro simulacro. boa parte das fotos de comida que dá vontade de comer são de comidas incomíveis. feijão meio cru, linguiça corada com katchup, costela num ponto em que nem o ser humano com os dentes mais fortes seria capaz de devorar. queijo frio. coisas do tipo. o segredo todo da foto da comida é fazer com quem alguém tenha vontade de comer. desperta luxúria, gana, vontade, desejo. querer pular na tela e comer a coisa. e nem dá pra bater uma punheta pra comida, o que torna a coisa toda ainda mais fetichista. tirar foto de comida é, por vezes, tirar foto do inatingível. do lanche que nunca existirá. gosto da magia. sempre fotografo os pratos que faço. mas não assim, pra dizer: "olha a massa desse cookie aqui que eu prometo que vai ficar maravilhoso". nem pra dizer que sei cozinhar. foda-se. quem tem que saber sabe, quem tem que provar provará. não faço comida em troca de amor mais. faço pra quem já amo. tiro foto da comida porque gosto da estética. monto os pratos. gosto de comer em pratos bonitos. o instagram me irrita porque a questão não é o prato, é o momento. é o vender a felicidade: vejam, olha aqui, estou sendo muito feliz com meu bolo de chocolate; olha, vejam, sei cozinhar. eu só quero a estética. como se o brownie fosse uma modelo. eu não estava sendo feliz. era um paleativo. o pedaço de brownie pra dissipar um pouco o ar pesado. todo o horror de um dia estranho dentro de um ano terrível. queria mostrar pra alguém que eu conseguia também um desses brownies craquelados de revista. me orgulhei da foto, do brownie, de tudo o mais que o cercava. me orgulhei do poder de poder fazer algo no meio da apatia toda. se não der pra ser mais nada, que me sobre a culinária. e a foto. gosto da foto. e da mágica da cozinha. e do desejo da comida. todo esse imaginário é interessante.

comi. precisava fazer umas outras coisas. tudo nesse meu ano se torna uma batalha. até terminar o meu trabalho. ou o mais simples: levantar da cama. às vezes não quero. deixei a foto, chequei. bons comentários, curtir de gente que amo. gente que amo amando o brownie que eu sempra faço. pequenos pedaços de imaginário. meu primeiro brownie que deu certo fiz no aniversário de uma amiga minha. bonitos os elogios. a comida tem isso de agregar pro outro, e não pra gente, que eu admiro muito. até que o mundo veio e deu indigestão de novo. as pessoas tem direito de dizer o que elas bem entendem. eu digo o que eu bem enetendo o tempo-todo. por vezes dá errado, as coisas saem trocadas, acontece uns desamores. no mais das vezes a gente é só mais uma postagem correndo na timeline. eu já passei por tudo que podia e que não podia esse ano. boa parte das coisas aguentei sozinha, outras nem lembro. achei que ia morrer de gripe uma vez e chorei por dois minutos sentada no box do banheiro. eu gritava pra deus (se houver um deus) que eu não aguentava mais. chorei do mesmo jeito quando achei que meu pai ia ficar cego. aguentei. tudo passou a ser meio irrelevante, daí. problema amoroso, desavença com os amigos, opinião divergente. o que vale mesmo é o que importa: se a pessoa é capaz de estar com você quando seu mundo está desabando, todo o resto é perfumaria. recebi ajuda da onde nem esperava. uma das mensagens me disse pra eu ter mais paciência com meu pai. eu repetia isso como um mantra. deu certo. nunca agradeci. um dia ainda vou. todos os dias eu tento ter paciência porque preciso amar e preciso lidar com a vida. todos os dias eu tento sobreviver. ser feliz é luxo.

aparentemente as pessoas esperam um pouco mais do que isso. esperam uma espécie de perfeição. eu faço o que eu posso. esse ano eu fiz mais do que eu podia. é muito fácil chegar e delegar funções. algo como "nunca vai dar certo enquanto você não se tratar". é bastante fácil esperar sem dar nada em troca. e esse ano, eu juro, eu não pedia muita coisa. tudo que eu precisava era de alguém que no fim da noite me perguntasse se tudo estava bem. eu precisava disso e do meu espaço preservado. essa doença maldita dá medo de sair de casa, medo das pessoas, medo da gente mesmo, medo de morrer. tudo que eu precisava era de alguém que entendesse quando eu quisesse dormir até as quatro da tarde, quando eu quisesse falar sem ouvir julgamento de valores, quando eu não queria sair. tudo que eu precisava era de alguém que me fizesse sentir segura. tem muito poucas dessas pessoas no mundo. a maioria das pessoas espera que você esteja aí pra tudo. "ela é do tipo de amiga que topa qualquer coisa". só que o qualquer coisa das pessoas é sempre o que elas querem. a festa que elas querem ir, os shows que elas gostam, o bar preferido delas. "topar qualquer coisa" quase nunca inclui ouvir você dizendo que você queria mesmo é que o mundo acabasse, porque olha, tá tudo errado. é tudo uma porcaria. nessas horas a gente se apercebe que na hora da dor mesmo a gente aguenta sozinho. dói na gente. o punhal é no coração da gente. o resto das pessoas continua vivendo, bebendo as suas cervejas, sendo feliz. o resto das pessoas sai muito pouco da sua zona de conforto pra tentar entender o outro quando o outro não é ele. eu não era ela. a constatação foi um pouco essa: eu era eu demais pra que ela pudesse me entender. daí eu me afastei. quando a vida da gente dói demais sobra muito pouco espaço pra ficar reparando as coisas que, no fundo, não querem ser reparadas. quando a gente sente saudade a gente diz. quando a gente se preocupa a gente pergunta como vai a vida. a minha vida desmoronou e várias pessoas que eu achei que estariam comigo segurando os pedacinhos de mundo que caíram, continuaram vivendo as suas vidas. existem viagens mais interessantes, gente mais legal, outras companhias que dá pra botar no lugar. ninguém quer alguém que não tope qualquer parada. ninguém quer alguém que precise consertar antes de usar. ou nada disso e as pessoas só tem dificuldade pra entender tudo aquilo que não são elas, que não se parecem com elas, que são outra coisa. talvez a paula toller sempre tenha a frase certa pra minha vida e eu repita mais uma vez que "os heróis na minha blusa não são os que você usa, e eu não te entendo bem".

talvez isso, talvez nada disso. talvez todas as relações humanas estejam mesmo fadadas a acabar num ódio destilado em menos de 140 caracteres que acaba com o seu brownie, com a sua foto, que deixa um gosto amargo na boca. talvez seja só o curso estranho que a vida segue. eu nunca escondi meus erros. sei que estou longe de ser uma pessoa fácil de lidar. sei, também, que me contradigo o tempo todo. talvez seja essa tal de consciência pós moderna. ninguém é capaz de acreditar em nada por mais de duas horas, disse um filósofo aí. eu acredito nos relacionamentos. eles deviam perdurar as convicções, passar por cima de certezas e de outros compromissos. eles deviam continuar firmes mesmo em meio a pior das tempestades e mesmo no meio da pior das condutas. amar exige relevar. eu relevei demais. tudo que pude. daí cansei porque a vida já me pesou demais pra que eu consiga, além de tudo, levar tapa na cara e dar a outra face. fácil demais querer amar só com o bônus. fãcil demais querer ter sempre consigo quando precisa e a recíproca não ser verdadeira. fácil demais exigir ser amado e não amar tanto assim de volta. fácil demais falar qualquer coisa que seja achando que a gente não sente mais nada. algumas coisas ferem. eu já aguentei demais e meu coração é um pote até aqui de mágoa. ando frágil, fraca, relevante e amando muito quem me ama de volta. mesmo quando eles erram. de uniteralidades eu cansei. o mundo é uma porcaria. só funciona quando a gente tem alguém pra caminhar junto. esse ano me deu várias pessoas e tirou. colocou holofote em gente que eu achei que ia me esquecer pra sempre. me ensinou a ter paciência, mas me ensinou também que, talvez, eu tenha esperado demais de onde já não vinha mais nada. ou nada disso e tem coisa que não dá certo por pura incompatibilidade. ela esperava coerência, e eu esperava apoio. ambas fomos desiludidas. eu também não devo ter feito a minha parte, mas a minha parte foi o que eu menos fiz esse ano. sobreviver sorrindo já é demais. tentar um brownie e uma foto já é o bastante. acertar o brownie e me orgulhar da foto já pode ser considerada uma imensa conquista. eu me exponho por aí, eu espero afago como todo mundo. no fundo eu sou, também, mais um palhaço triste.

1.11.12

e quantas frases feitas vão me explicar?

você se espanta com o meu cabelo/ é que eu saí de outra história/ os heróis da minha blusa não são os que você usa/ e eu não te entendo bem. 

- para se ler ao som de "Uniformes - Kid Abelha"

Quando ele trancou a porta de casa e me levou pra comer, eu sabia que era pra sempre o abandono. Eu me segurava numa espécie de fantasia de alguém que podia ser eu, mas não era exatamente. O vestido xadrez roxo não combinava tão bem assim com aquele oxford vazado azul, mas era tudo o que eu tinha. Eu carregava a minha mochila de zebra que sempre caía uma alça e me sentia extremamente inadequada. É claro que a mochila que eu comprei teria que vir com uma alça com defeito. Eu combino com uma mochila capenga, cheia de repartições que eu não consigo manejar bem. Em uma das vezes deixei vinte reais com a moça do metrô e não peguei o troco. Enquanto isso minha mochila caia e uma legião de paulistanos tentava me alertar dos dezessete reais que eu tinha deixado no guichê. Não por compaixão; não existe com-paixão em SP, mas sim porque quanto mais eu demorasse pra pegar meu troco, mais eu atrasaria a fila. A linha amarela tem tanta escada quanto tem gente apressada pra chegar em algum lugar. Eram nove ou dez horas de uma quinta feira terrivelmente quente e eu me espremia chorando na frente de um cara que ouvia maroon five meio alto e não me percebia chorar atrás dos meus óculos marrons. Minha mochila capenga de um lado não combinava com um dos hotéis mais caros da avenida paulista, todo mundo podia ver, mas acho que eles não se importavam tanto assim. Eu, menos ainda. Tudo que eu queria era deitar naquela cama que cheirava a mofo e esquecer a noite passada em que eu tinha entrado num ônibus sem saber onde parar e tido uma noite estranha onde eu me dei muito mais por apatia do que por vontade. Eu soube na hora em que eu olhava pra minha janela que não abria e enxergava o prédio cinza: não existe amor em SP. Só que eu não quis acreditar. Continuei tentando arrumar do mesmo jeito que eu tentei arrumar a maldita alça da bolsa de zebra que sempre acabava caindo de novo. Tem certas coisas que a gente sabe que não tem conserto, mas também não consegue jogar fora.

Nesse dia foi ainda pior que essa sucessão de desastres. Eu estava do lado dele, e eu não sabia o que sentia por ele, e do lado desse outro que nunca foi nada na minha vida - mas me ofereceu soro caseiro. Minha mochila ainda caia, meus cabelos estavam errados, ele soltava da minha mão e tudo que eu não tinha conseguido fazer me passava como um filme. Eu era de novo aquela adolescente maltrapilha que não pertencia ao lugar onde estava. De vez em quando eu olhava pra ele e lembrava de tudo "ela vomitou em mim" "pra quê existe lei maria da penha?" "não se fazem mais mulheres como (insira aqui o nome de qualquer idealização que não seja eu)". Corta pra mim, com uma camiseta molhada de água de tanque berrando fluorescent adolescent. Os heróis na minha blusa não são os que você usa, porque ele preferia o brandon flowers. Mas o brandon flowers, imagino eu, é mormón demais pra entender gente depressiva. O alex turner não. Pisa na ferida da adolescência igualzinho a Paula Toller. "Landed in a very common crisis" não é lá muito diferente de "eu ouço sempre os mesmos discos, repenso as mesmas idéias". Ele um dia me disse que eu era bem esquisitinha. Ele disse isso e eu já lembrei de mim segurando aquele maldito livro do Drummond aos doze anos enquanto todo mundo se degladiava pelo Harry Potter. Concordei. Preferia assim. Antes óculos de aro grosso que "normalidade". "Normalidade é superestimada", eu quase retruquei. Só que não pra ele. Ele preferia que eu fosse mais normal.

Por várias vezes eu preferi que ele tivesse me batido. Doiria menos, apagaria o trauma mais fácil. Ninguém remói a história com alguém que te bateu. Agora, dar culpa pra alguém que já é ancestralmente culpada, daí sim era problema. Fiquei lá. Conseguia lembrar até das manchetes de vôlei que não conseguia acertar na educação física. De quando eu perdi o (até então) amor da minha vida pra aquela outra menina porque não soube falar o que eu sentia. Eu vestia uma camiseta do surfista prateado, na ocasião. Eu nem sei o que o surfista prateado faz, mas usava mesmo assim. Os heróis na blusa dele não eram os que eu usava, só que ele me entendia bem. Ao contrário dessa vez em que eu só ficava me perguntando se ainda podia doer mais do que estava doendo. Mais do que a adolescência. Mais do que quando me chamavam de esquisita e eu saia chorando. Bem, podia. Minha mochila de zebra quase derrubou um vinho caro da adega da padaria cara e de repente eu me sentia com treze anos tropeçando e levando a rede de vôlei junto comigo. Eu sempre sou aquela menina que era a penúltima a ser escolhida na educação física, antes só da menina claramente retardada que não falava. Naquele dia o mundo todo parecia que não era o meu lugar. Eu sabia que ele ia desistir de mim. Não adiantava eu pedir desculpas, ajoelhar no meio da paulista. Não adiantava que o relógio do itaú mostrasse uma mensagem de amor. Já tinha sido tudo. Éramos incompatíveis. Estávamos, ao menos. Minha depressão não me deixava fazer nada além de sentir culpa e reviver todos os momentos em que eu tinha estragado tudo. Eu, apática, no pátio do shopping relembrando todos os dias em que eu tinha feito alguma coisa inadequada e, enquanto isso, tentando arrumar pela décima vez a alça da minha bolsa de zebra. 

Eu não lembrava dessa tal canção da Paula Toller enquanto me arrumava pra sair e tentar esquecer. Tentava me animar com meu coturno "eu limpo as minhas botas, não sou ninguém sem elas". Foram elas que me acompanharam em boa parte desse desastre. No dia em si eu usava o oxford porque fazia parte da fantasia. Claro que nem as minhas botas me salvavam do desastre. Tropecei na rua, e tive que tirá-las no aeroporto porque elas tinham metal demais. De algum modo, essa canção tocou na minha cabeça durante todo esse episódio. A canção da inadequação. Tudo aquilo, desde eu errando tudo o que ele esperava de mim, até o fato de eu não saber que ele, como fernando pessoa, não gosta que lhe peguem no braço podia ser resumido nessa frase que permeou toda a minha adolescência: "os heróis na minha blusa não são os que você usa, e eu não te entendo bem". Eu sempre volto a ser a menina de franja feia, camisa larga e calça de gorgurão que tropeçou na própria calça e saiu rolando a arquibancada toda acabando assim por quebrar o dente da frente inteiro. Algumas quedas da vida nos quebram os dentes, outras nos quebram a alma (essa, impossível de consertar com resina). Minha alma já estava rachada em mil pedaços. Tão quebrada como a minha bolsa de zebra. Ele só terminou de rasgar a alça e aí não teve mais onde me segurar. Caí. Meu coração caiu no meio da estação da sé as seis da tarde e ficou. Pisoteado. Estou quase boa. Daí ouvi essa canção de novo e chorei. Eu ouço sempre os mesmos discos, repenso as mesmas idéias. Não sei quantos uniformes ainda vou usar, não sei quantas frases feitas vão me explicar. Aí fico pensando se um dia a gente vai se encontrar quando os soldados tiram a farda pra brincar. Não obtenho resposta. Talvez não - é que eu saí de outra história. 

23.10.12

a idade de nenhuma razão

fico sentada aqui, esperando que as coisas façam algum sentido. Nunca fazem. Prometo todos os dias, sem faltar nenhum, que dormirei mais cedo, que acordarei mais cedo, que finalmente conseguirei tomar café no horário cedo e, quem sabe, comer um pedaço de bolo. Olho pra minha cara cheia de sono no espelho e concluo: as olheiras estão cada vez mais funda e a apatia, embora mais amena, ainda é visível.    A tinta do meu cabelo sempre desbota; faz dias que eu não sei direito o que é me arrumar pra sair. Quase não vejo a luz do sol, exceto quando olho pela janela um pouquinho antes de sentar na mesa em que costumo desempenhar minhas atividades corriqueiras que consistem em fingir que eu faço tudo aquilo que eu deveria estar fazendo de fato. Talvez devesse ter rotina, como todo mundo; sair todo dia às sete da manhã de casa, encarar aquelas pessoas de olhares tristes que nunca sequer souberam o que era querer ter alguma coisa a mais do que uma casa com tv pra ver o jornal e a novela. No meio disso tudo, desejar ser uma dessas pessoas; desejar ter uma casa, uma quitenete que seja e eletrodomésticos financiados em doze vezes sem juros no cartão. Uma geladeira, uma tv, um computador, um sofá mais ou menos, uma poltrona, um microondas. Depois um carro, uma fruteira bonita, qualquer parafernalha dessas de decoração de casa. Mas não saio, não quero nada. Minha existência se resume à duas novelas e alguns programas sobre culinária. O de sempre.

Nesses mesmos dias imagino ligar pra ele, convidar pra uma cerveja. Fico sempre pensando nele tentando me aconselhar de um jeito meio torto, depois me perguntando de uns livros; livros que nem li inteiros, mas gostava de fingir. Às vezes eu tinha que explicar alguma coisa usando minhas figuras estranhas de linguagem, minhas metáforas cheias de cultura pop. Ele ria. Ser mais equilibrado que eu era um pouco fácil, e mesmo quando eu chegava bufando ele tinha um jeito de dizer que "não era bem assim que as coisas eram, tem de ter paciência". Quase nunca soube agradecer. Ali na estante tem uma revista que comprei faz mais de um mês pra dar pra ele. Já imaginei todos os cenários possíveis. Convidar pra uma cerveja sem contar da revista; contar da revista com um pretexto pra sair; deixar na portaria do prédio dele com algum bilhete engraçadinho e esperar a resposta. Em qualquer uma das possibilidades me sinto inadequada. Aí fica a revista e eu esperando pelo dia em que estaremos nos braços dele de novo. Se é que um dia estaremos. Minha hipocondria heróica já antevê até essa dor de coração. Tenho medo de morrer empalada nessa montanha russa de sentimento que não sei como lidar. É como uma crise de pânico. Tenho medo de ter medo. Tenho medo de tudo que posso fazer de errado e aí não faço nada. Sou eu naquela última cena do alfie dizendo que todos eles fizeram muito por mim e eu não fiz nada por ele. Eu nunca fiz nada por ele. 

Meu rosto no espelho fatigado de tanta besteira & mágoa. As olheiras de quem passou um ano terrível. Corta o filme e eu faço meu cafuné desajeitado no cabelo dele. Três ou quatro vezes até conseguir encostar a mão. Aí encostava e girava os dedos do jeito errado. Nem sei se sei fazer cafuné. Das coisas que aprendi por amor, anteriormente, acho que só me sobrou o café. De resto, sei pouco. Acho que ele me ouviria falar sobre essas coisas que agora me interessam mas não interessam ninguém mais tanto assim. Não sei, também. Olho pros meus livros do Sartre na estante e quase consigo ouvir ele me dizer em sotaque francês que vai ser sempre assim: a gente sempre vai ter essa angústia pré escolha. Porque a angústia da escolha é sempre essa: a da coisa escolhida e a da coisa deixada. Fico pensando se seria capaz de largar um pedaço da minha liberdade por ele, e ao mesmo tempo penso no revés: quero largar ele por um tico de liberdade? Não sei responder. O sartre me olharia com aqueles olhos vesguinhos dele e talvez me entendesse. Talvez. A vida é sempre isso, afinal: um eterno não saber. 

Enquanto escrevo tudo isso o relógio marca que, mais uma vez, não conseguirei tomar café, tomar bolo, estar em pé antes do jornal da hora do almoço. De novo as olheiras cansadas de quem não consegue sair de casa pra comer uma coxinha, tomar um sorvete, ver se a rua continua do mesmo jeito ou se, quem sabe, construíram uma loja de alguma coisa qualquer no trajeto de sempre. As ruas são sempre assim: cheias de coisas que a gente nem queria pra invejar. Dei de andar sozinha e invejar os casais, as mulheres vendedoras em suas rotinas desgastantes, as meninas ricas que compram na arezzo às três da tarde. E eu ali, tendo que tirar dinheiro no caixa eletrônico pra comer uma coxinha, os cabelos desgrenhados, sem um propósito. Dia desses estive tão assim-assim que quase entrei na catedral. Depois fiquei pensando que estar na catedral seria mais ou menos como estar num daqueles shows que não conheço as músicas, mas todo mundo a minha volta conhece: o total despertencimento. Talvez seja isso a vida também, esse eterno show onde todo mundo conhece as músicas, menos eu. Fico querendo sumir; não sumo. Quero mandar uma mensagem pra ele; deixo pra amanhã. Ontem cantei uma dessas músicas que sempre canto e achei que ele entenderia. Sinto falta dele quando faço coisas que são exclusivamente minhas, e não sei o que significa porque não sei de nada. Enquanto escrevo tudo isso um bicho chato pousa na tela do meu computador. Canso de escrever do mesmo jeito que canso da vida; sinto muito sono e não durmo. Sei que amanhã vou desligar o despertador no momento em que ele tocar e deixar na estante. Na estante também está aquela revista que comprei pra dar pra ele e finjo pra mim mesma que agora é uma decoração pro meu quarto. Às vezes até acredito que comprei pra mim mesma. A cidade em que eu moro não faz barulho às quatro da manhã. A cidade em que eu moro é a cidade em que ele mora também. Meu coração faz um barulho estranho. Às vezes olho pra foto dele e não gosto da sensação; meu coração faz um barulho estranho. O barulho do não saber. Me olho no espelho e meus olhos estão vermelhos de sono. Prometo pra mim mesma que um dia lhe dou a tal revista. Nem eu acredito em mim. Vejo uma foto qualquer dele que surge por aí e penso envergonhada "ai de mim se ele ler esse texto". Agora sou simone de beauvoir segurando uma arma e Sartre me tendo pela cintura diz: "vai, atira!". Eu não faço nada e digo "o problema de escolher soltar a bala é a angústia de não saber o que aconteceria caso a bala tivesse ficado na espingarda". Ele me fita de olhos vesgos e sorri com os dentes podres: "a vida é a eterna angústia de não saber o que teria sido se a bala tivesse ficado na espingarda. E ao ficar, a angústia de não saber o que aconteceria se tivesse atirado". "A vida é uma merda, então", concluo. 

22.10.12

sonata do desassossego

Quando eu ligo pra ele, ele sabe, é porque as coisas entornaram o caldo de vez. "Entornar o caldo", expressão típica da minha mãe que eu uso muito porque fui criada com gente velha. O telefone tocou uma vez só, mas dessa vez nem foi tanto por mim; eu tava preocupada porque ele me disse que tava doente, vomitou no trabalho, sentia febre. Ele diz do outro lado da linha com uma tranquilidade inquietante "É princípio de pneumonia, mas não precisa se preocupar não, não é como se fosse pneumonia de fato, é só, bem, um princípio". Eu louca do outro lado da linha pensando "como pode, a pessoa quase perdendo os pulmões, vai que vira pneumonia de verdade e ele morre, vou viver sem ele como? Vou ter que pegar um avião e, imagina que trágico, pegar um avião pra ir pra cidade dele justamente quando ele já está morto e estirado num caixão. Nosso primeiro encontro na cidade dele seria um encontro-morte". Melhor nem pensar. Fato é que eu acabaria nem indo em enterro nenhum caso ele morresse. Capaz da mãe dele, ainda mais neurótica do que eu sequer sonhei ser, me dizer que a culpa foi minha, que ele morreu de tristeza porque eu sou uma asna. E eu ia bem concordar. Ia concordar porque concordo com qualquer um que me bote a culpa. Vivo até hoje sonhando em acordar  maravilhosa do "mal estar da noite passada" e limpar com esfregão e veja multi-uso todo e qualquer vestígio de sujeira que fiz naquele apartamento de pintura rosa por fora e carpete no elevador. Mil pessoas já me disseram "olha, a culpa não foi sua". Até meu médico. Segundo ele, naquelas condições, eu não teria nem forças pra me salvar de um desastre, de um caminhão que fosse. Eu ri e suspirei aliviada. Nem tão aliviada assim, entretanto. Fico com essa culpa aí. "Se fosse um caminhão e eu não tivesse corrido eu tinha morrido pelo menos. Não limpei uma merda de uma casa e lá se vai quase um ano da mais pura e genuína culpa. Mil vezes o caminhão".

Ele me atendeu solicito como sempre, me deixou contar de tudo aquilo que não importa a mais ninguém. Me disse umas coisas sobre a mãe dele, que ela chega lá no médico e fica dizendo que é isso, ele não se cuida, toma três litros de coca-cola por dia, fuma, não se cuida. Ele ali me dizendo bravíssimo que nunca mais tomou coca-cola e nem fumou. Tudo culpa minha. Sinto vontade esfregar na cara da neurótica que todo o progresso do filho dela teve um pouco de mim. Tenho mais vontade esfregar na cara dele que tudo que eu sou de bom hoje tem um pouco dele, mas acabo deixando pra lá. Eu ria no telefone, ele sempre diz umas coisas que me faz pensar que a gente podia ser um casal tipo esses do "before sunset, before sunshine" e tal, qualquer coisa dessas assim. Daí penso que não fomos, esqueço os reais motivos de porque não fomos e boto na minha conta de novo. Culpa minha que fui inventar de amar outro cara sendo que ele sim era o real amor da minha vida. Tenho uma porrada de culpas. Se fosse num bom analista acho que eu acabaria por vomitar no fim de toda sessão, de tanta angústia. Não indo em analista me resta ligar pra essas pessoas que nem fazem mais tão parte assim da minha vida por preguiça de explicar tudo isso p'ras novas. Ninguém entende. Até entendem, mas deixa quieto tudo isso. Mas fácil ligar pra alguém que diferencia a risada-nervosa da risada-risada. Ele me acalmou, fez as piadas de sempre, me disse que sábados eram os piores dias da semana pra quem não sai-cai-bebe-morre e pra quem não tem namorado, daí eu concordei. Fiquei pensando em como seriam horríveis os sábados depois do fim da minha novela preferida. Ia ter que ficar chamando gente pra sair, eu odeio chamar gente pra sair. Pensei "quando a gente namorava era mais fácil". Depois des-pensei. Do jeito que eu ando, se volto com um relacionamento desses é capaz de nada acabar antes que haja um homicídio, sangue espalhado por toda a sala, tipo filme do tarantino. Não dá, né. Gente destrutiva não pode fazer nada. Também é querer demais. No começo do ano eu não conseguia "nem se salvar de um desastre, nem se viesse um caminhão atrás de você" e agora fico aí, querendo resolver a vida. Não vai ser assim.

Fico falando pra ele sobre as minhas teorias sobre pós modernidade, e ele gosta de ouvir. Gosta de ouvir tudo que eu falo. Acho que foi ele que um dia me disse que poderia ficar me escutando pelo resto da vida. Ou não foi e eu inventei. Bem capaz de eu ter inventado. Eu inventei algumas coisas na nossa relação depois que ela acabou. Algumas aconteceram de verdade. Em um dos nossos primeiros encontros eu vomitei na minha blusa. Era isso. Na blusa. Vomitei na blusa e escondi. Ele não ligou. Não me mandou limpar, jogar a blusa fora. Só aceitou. Intolerantes a lactose por vezes vomitam na blusa e é isso. Acho que ele até me beijou antes mesmo de eu passar água na boca. Esqueceu o ocorrido. Amor é um pouco isso, creio eu. Um pouco de escatologia. Sorver os fluídos do outro. Sorver  (quase) qualquer coisa que o outro tenha a oferecer. Foi depois desse dia que eu resolvi deixar de ter vergonha dele. Hoje é assim, falo qualquer coisa que eu pensar. É por isso que se eu ligo pra alguém tem de ser pra ele. Não, não tem nada de "amor da minha vida", nem nada disso. Desprendi. O último cara que eu resolvi botar no patamar de "amor da minha vida" me estragou a vida, o universo e tudo o mais de um jeito que eu não gosto nem de lembrar. Coloco a culpa em mim de novo. Não sei fazer de outro jeito.

Mas de repente era aquilo. Eu olhando meu ano em que nada deu certo, tendo que admitir fracassos e depressões, tendo que saber que mesmo eu sendo uma louca control-freak "nem se um caminhão ameaçasse te atropelar você fugiria", e seguindo a vida. Fico com inveja (e medo) de todo mundo que tem um plano traçado, muitas certezas. "Ano que vem eu vou ser uma profissional". Fico eu aqui pensando que não sei nem se amanhã vou estar viva e todo mundo aí se gabando de coisas que ainda não conquistou. Me dá raiva. Eu tinha raiva dos planos bem traçadinhos de todo mundo, desse pertencimento louco. Todo mundo curtindo as bandas que vão pro festival e eu sem saber o nome delas. Todo mundo querendo trabalhar numa grande empresa e clamando por rotina e eu querendo, se possível, não ter nem uma casa com o meu nome pra não ter obrigação de me fixar. Os carros na minha rua bradando Gagnam Style e eu morrendo por dentro a cada acorde: não gosto. Remoo coisas também. Fico pensando como teria sido se tivesse dado tudo certo do jeito que eu planejei. Estaria eu feliz na minha cidade nova, com rotina, apartamento alugado, conta pra pagar e saudades dos pais? Não sei dizer. Dia desses me veio um telefonema de DDD 19 e eu fiquei pensando "e se fosse ele?". Não quis ligar pra confirmar. Fiquei dessas loucas que põe a vida na mão do destino e vão vivendo. "Se for pra ser". Maior das bobagens que eu consigo proferir na vida, mas profiro. Meus planos deram errado, meus amores da vida hoje têm um par pra comprar chicken nuggets no mercado e eu fico aqui, pedindo boa noite pra ex-amor no telefone quando tenho medo de dormir.

Tenho umas saudades reticentes que vêm toda vez que eu penso em coisas esparsas como a narcisa tamborindeguy, músicas do raça negra, cervejas artesanais, frutos do mar e o jean paul sartre. Daí penso que todas essas pessoas que eu coloco na minha vida são um jeitinho torto de não admitir que eu não queria nenhum deles, e sim, talvez: ele. Só que não sei também. Gente assim, desastrosa como eu tem mais é que ficar quieta. Talvez dois não-pertencentes como nós tenham mais é que permanecer sozinhos, sem sorver nada um do outro. Daí vejo a foto do Sartre com a Simone e repenso: "nem sempre". Depois não sei de mais nada. Corta pro médico dizendo que "nem se um caminhão viesse você escaparia" e eu sinto menos culpa de não ter limpado as paredes com veja ou de não ter tirado dos dedos aquela mensagem que dizia "e aí, e a minha coxinha?". Só que pouca culpa não é nenhuma culpa. Do mesmo jeito que, acredito, não saber direito o que quer é meio que não querer coisa alguma. Fico assim. Não ato nem desato os nós, vivo ridiculamente um dia de cada vez, e ligo pra ele (sempre ele) quando o caldo entorna. Gente despertencida precisa ter ao menos alguém que lhe conheça pela risada. Eu tenho ele, uns livros, outros bons amigos. Eu tenho isso e nenhum plano A, B, C, nenhum plano sequer. Não sei de nada. Nunca soube de nada. De pouco em pouco me livro da apatia e concluo: a vida é mais difícil pra aqueles que não têm certeza. Depois reitero: esse é o único jeito que sei. Pelo menos agora se um caminhão vier atrás de mim eu acho que fujo. Já tento sobreviver. Quem sabe um dia eu prove esse negócio aí, esse tal de "ser feliz". Quem sabe, um dia. Quem sabe.

7.10.12

sobre atravessar ruas e se apaixonar.

Faz mais ou menos uma semana que eu tenho tido que atravessar as ruas com meu pai. Ele não enxerga direito e cabe a mim a função de dizer pra ele quando é ou não é seguro ir pro outro lado da calçada. Faço bem a atividade, até. Vez ou outra corremos riscos, mas muito mais por causa de motoristas imprudentes do que por eu não ter visto direito. Antes disso eu sempre achei que não soubesse atravessar as ruas. Perdi a conta do tanto de vezes que quase fui atropelada. Eu sou muito desligada, não sei olhar dos dois lados, vez ou outra ando sem óculos, vez ou outra meu iPod está alto demais pra que eu ouça as buzinas. Toda vez que eu vejo um carro tirar uma fina em mim, quase posso ouvir minha mãe dizendo: "Deus protege"; e quase acredito, porque é a única explicação possível pra eu sobreviver a tanta desatenção.

Nesses dias andando com meu pai eu pude perceber que se a gente precisa fazer alguma coisa, a gente consegue. No caso do meu pai a equação é simples. Amo ele demais e qualquer coisa que acontecesse comigo me machucaria também. Cuido das ruas melhor do que eu cuido de mim. Sozinha eu corro em sinais pra fechar, atravesso no meio da rua, evito as faixas, não olho os dois lados. Com ele até me excedo. Brigo com carros que fazem qualquer coisa errada, espero os sinais abrirem, evito atravessar fora das faixas. Sei lidar. É fácil, de certa forma. Era mais difícil quando ele se recusava a ir comigo, ou não prestava atenção nas minhas coordenadas. Pra que algo aconteça entre duas pessoas, a outra tem de querer. Se uma não quiser, nada acontece. Por mais que a outra queira. Por mais que eu quisesse proteger meu pai dos perigos do mundo, eu só consegui protegê-lo quando ele deixou. Quando ele não quis, não deu. Ele resmungava, saia por aí brigando comigo, me chamava de pequena ditadora.

O amor não é muito diferente de atravessar as ruas com alguém.

Sempre me achei inapta pro amor, assim como sempre me achei incapaz de atravessar as ruas sozinha sem correr riscos. E estive certa, nas duas ocasiões. Quase fui atropelada vezes infinitas, e estraguei tantas histórias de quase amor (e de amor também) quanto pude. Não nasci com o chip. Tem gente que sabe amar. Gente que sabe mandar mensagem, dizer que ficou com saudades, escrever belos textos, galantear. Eu não sei. Todos as pessoas que conseguiram coisas de mim me quiseram muito em primeira instância. Meu primeiro namorado me venceu pelo cansaço. Não via graça nele. Ele era lindo, mas muito estranho. Eu não sabia muito bem o que aquele menino de coturno e bandana do axl rose queria comigo. Ele me disse que me amava anos luz antes de eu sequer cogitar dizer que gostava de conversar com ele, assim, de madrugada, contando as coisas que eu queria fazer quando tivesse dinheiro. Ele me chamava de "amor" e eu respondia com um apelido engraçadinho qualquer. Depois de um tempo me rendi. Ele me amava, eu amava ele de volta, e tudo que a gente queria era casar igual o axl e a namorada do axl em "november rain". Ele me prometia uma república com cinco caras numa cidade longe da minha e eu aceitava. E era isso.

Depois dele veio o segundo cara, o melhor namorado da minha vida, que me disse que me amava na segunda conversa. Era isso. Ele disse "te amo" e desligou o msn. Eu demorei três meses pra dizer que amava ele de volta de verdade, porque antes eu achava que era brincadeira. Quando ele fez planos de casar, e juntava dinheiro pra isso, eu me abstinha a achar engraçado. Depois eu vi que era verdade. 300 reais do estágio dele eram desviados do vício dele por coca pra quando a gente pudesse morar junto. Com ele eu escrevia cartas, bilhetes, presentes, mensagens de texto. Com ele eu aprendi a ser assim, explícita, porque ele também era. É como atravessar a rua. Eu atravessava com ele, porque ele me deixava ir.

Depois que eu terminei com ele teve um outro amor que nem aconteceu direito porque a gente não sabia se falar. Era como se os dois quisessem atravessar a rua, mas ninguém desse o primeiro passo, porque a gente achava que o outro não queria. Depois disso alguns caras que não queriam atravessar a rua comigo. Até que eu estava fazendo cappucino e pensando nisso daí que é o amor. Dia desses, nem faz muito tempo, alguém me disse que "eu não dei valor p'ras coisas que eu tinha porque eu não sei amar ninguém". O negócio ficou tilintando na minha cabeça, tipo música do raça negra, tipo pagode que diz que você jogou tudo fota e agora é tarde demais. Sempre me identifiquei com o eu-lírico masculino que diz pra mulher que ela foi cachorra e que agora ele está partindo pra alguém que lhe dê valor de verdade. Já aconteceu algumas vezes, teve gente que quis me cuspir na cara, e eu até tenho um sonho recorrente terrível em que todos os meus ex namorados se juntam numa mesa pra dizer pro meu namorado novo todos os porquês de não me namorar nunca-em-hipótese-alguma. Antes eu achava tudo muito pertinente, depois descobri que tenho uma tendência a me culpar. A inquisição de ex namorados é só um reflexo do fato de que eu acho mais fácil (bem mais fácil) colocar a culpa em mim e seguir vivendo. Tenho dificuldades em listar os erros dos outros porque bem, porque é chato você descobrir que o cara nem te amava tanto assim, que ele foi um retardado e tal, tudo isso.

Dessa vez em especial eu pensei sobre o lance das ruas. Ok, eventualmente eu não ligo. Eu não sei mandar mensagem dizendo que estou com saudades. Minha voz falha antes de eu ligar pra alguém pra convidar pra qualquer lugar. Meu jeito de demonstrar afeição sempre está ligado a comida ou a mostrar um vídeo que me lembra a pessoa no YouTube. Ou seja: sei demonstrar amor tanto quanto sei atravessar as ruas. Nas duas atividades sou desatenta e posso ser atropelada por um carro desgovernado a qualquer instante. Acontece que, no amor, assim como quando vou atravessar as ruas, se a pessoa me dá abertura eu consigo ir também. Eu sou capaz de prestar atenção. Eu sou capaz de retribuir gestos bonitos. Eu sou capaz de escrever textos, e-mails, mensagens bem boladas no celular. Só que fica difícil fazer tudo isso quando a outra pessoa esquece até os compromissos que tinha com você. Nunca te mandou uma mensagem de bom dia, nunca nem sequer disse de um jeito torto que se preocupa com você mais do que com qualquer fato corriqueiro da vida dela. Fica difícil descobrir se ela quer ou não que você seja aquilo que você podia ser. Fica a gente ali, parado na calçada tentando descobrir se o outro quer ou não atravessar também. Eu nunca soube se ele quis. Eu nunca tentei perguntar também porque eu não sei dar o primeiro passo. Todas as vezes em que me relacionei com alguém, a outra pessoa abriu um buraco nisso que chamam de coração e entrou. Entrou do jeito que dava, pulando de cabeça e eu só retribuia quando tinha certeza. Estraguei vários relacionamentos por causa da dúvida. Principalmente quando estive doente. Mas isso passa. Se a outra pessoa quer-mesmo estar com você, ela acaba arrumando um jeito.

Eu colocava água no pó de cappucino e, pela primeira vez, me eximi da culpa que me colocaram no ombro. Eu quis, eu sempre quis andar de mão dada na rua, ir no cinema, continuar, tentar, provar outros pratos, qualquer coisa que seja. Eu sempre quis, mas não dá pra querer sozinha. Não dá pra entender o monte de sinal ambíguo no meio da história toda. Não dá pra querer atravessar a rua com alguém quando você não sabe se ela te quer junto com ela ou se vai te xingar e dizer que prefere ir sozinha. Eu nunca soube. Daí entendi duas coisas: a primeira é que eu até sei lidar com esses troços de amor se a outra pessoa me deixar; a segunda é amor é igual tentar ajudar alguém que precisa: você só consegue se a outra pessoa também quiser.

E olha, a verdade é que não tem estrago nem tarde-demais quando você nunca soube se teve ou não teve algo pra jogar fora de verdade. Amor é que nem atravessar a rua, a gente só chega do outro lado se as duas pessoas quiserem. E se eu não fiz a minha parte, pode ser porque a outra pessoa também não tenha feito a dela.

26.9.12

Sobre caiaques e perdas

(pedacinho daquilo que um dia espero, quem sabe, chamar de livro).


(...)Foi nesse ano que elas tiveram a fantástica ideia que eu me declarasse pra minha primeira paixão platônica e, por consequência, levasse o meu primeiro fora. Fernando era um menino loiro e de olhos claros que se sentava na minha frente e torcia pelo grêmio. Conversávamos muito. Eu queria que ele fosse meu namorado, embora pouco soubesse sobre o que é "namorar" e soubesse menos ainda o que é esse tal de "amor". Um dia essas amigas me disseram que se você mandasse seu endereço e telefone pro homem amado, chegaria uma carta de amor. Coloquei meu endereço e telefone na agenda do Fernando que abriu o papel na minha frente e mal pôde disfarçar sua cara de susto. Após o incidente, Fernando nunca mais me dirigiu a palavra. Fiquei pensando se toda vez que alguém ama alguém, mas essa pessoa não o ama de volta, é necessário cortar o contato por completo. Cheguei à conclusão que sim. Eu também não conseguia olhar direito pra cara do Fernando. 

Um dia eu machuquei meu pescoço. Um incidente trágico. Corria por entre barracas recém montadas pra festa junina do colégio e enrosquei o pescoço no arame. Caí de cabeça no chão. Umas pessoas mais velhas me levaram pra enfermaria onde eu só queria que a minha mãe chegasse logo. Quem chegou foi o Fernando, trazendo em mãos uma cartinha que me dizia que eu tinha passado de ano já no terceiro bimestre. Eu agradeci. Nunca descobri se a professora obrigou ele a levar a tal carta lá embaixo, e ele foi, achando cada passo mais perto da enfermaria um passo pro inferno; ou se ele mesmo tinha levantado a mão e se oferecido pra levar a cartinha pra mim, num sinal de compaixão, caridade ou amor reprimido. Seja o que for, esse foi um dos últimos encontros com o Fernando. Ele se mudou pra uma outra cidade que nunca descobri qual era, mas preferi fantasiar que ele tinha voltado pra Porto Alegre e estava torcendo pelo grêmio. "Pelo Fernando eu torceria pelo grêmio". Esse foi o meu primeiro contato com o amor tangível. Pelo Fernando, eu torceria pelo grêmio.


25.9.12

e o que ela quer da gente é: coragem.

Abri o livro do bauman na mesma página umas quinhentas vezes desde o mês passado. Já até decorei. Ele diz que a gente não pode comparar a identidade com um quebra-cabeças. O motivo completo eu não lembro, porque não li. Ando avoada. Leio um parágrafo e paro. Dá vontade de chorar. Uma vontade horrorosa de chorar e sair andando e chorando na rua. Eu quero dizer pra mim mesma, de uma vez por todas que, não, eu não vou conseguir, não vou ser capaz. Não vou terminar pós nenhuma, monografia nenhuma e vou deixar a vida em stand by. Não tenho coragem. Não sei desistir. Nunca tinha descoberto isso sobre mim. Achei que desistia fácil, no primeiro problema. Não sei desistir. Só quando não dá mais. Daí sim, eu levanto com a cara ensanguentada e vou. Eu achei que sabia muito sobre sofrer. Percebo, cada vez mais, que sei muito pouco.

Eu ainda não passei pelas piores coisas da vida, embora tenha passado por muitas delas. Ter visto as escaras da minha vó foi triste, assim como foi a morte dela e a morte do vô. Ter visto meu pai deprimido de cama, quase internado, também foi difícil, mas passou. Passa. O inevitável passa. Ver ele perdendo a visão sim, tem sido uma dessas provas de fogo. Assim como tem sido complicado segurar a barra de ver a minha mãe lidando com todos os problemas do mundo, como se todo mundo sempre achasse que ela é capaz de aguentar mais um pouco. Tem sido difícil. Meu começo do ano foi difícil, também. Foi doído ser despedida. Foi doído depois de achar que tudo tinha dado certo, perceber que não, nã era bem assim. Foi chato deprimir, cair no sofá, foi chato ter vontade de chorar antes de sair de casa de um medo que não era meu. Chupar balas pra disfarçar a ansiedade. Ter crises de pânico no banheiro da pós graduação. Foi difícil ser deixado pelo erro que eu cometi. Foi difícil ser espezinhada pessoalmente, pelo telefone, pelas redes sociais. Tudo isso é difícil e deixou marcas indeléveis em mim. É cada dia mais difícil levantar da cama e lutar por alguma coisa sendo que a vida é, irremediavelmente, injusta. Vai piorar. Esse é só o começo das perdas. Vai ter um dia que meu pai vai ficar mais doente. Vai ter um dia em que a minha mãe vai adoecer também. Tudo isso vai chegar. Outras decepções amorosas, talvez mais cruéis que essa anterior, também chegarão. Eu ainda sei muito pouco sobre sofrer, embora saiba mais do que boa parte das pessoas.

Depois de um tempo a gente anestesia. Anestesia porque tem que ser forte por todo mundo que você ama. Se meu pai chega com os papéis pra fazer uma cirurgia, eu ajo como se fosse parte do processo. O rosto tem que estar limpo pra abraçar a minha mãe e dizer que vai ficar tudo bem, ainda que a gente tenha dúvidas. Hoje minha mãe disse que não sabe o que seria da vida dela sem mim. Foi a prova cabal de que eu deveria estar aqui nesse momento. Sem carreira promissora e perto, porque a barra da vida tá pesada demais pra gente. Evito desabafar. Vez ou outra tenho vontade puxar assunto com uma pessoa qualquer no facebook, mas evito o ato. O problema é meu, a vida é minha, o pai é meu e o inevitável é o inevitável. Há as coisas que eu posso mudar e as que não. Faço o que posso. O que não posso, não faço. Sofro, justamente porque não há nada que se possa fazer. Os médicos fazem o que podem, a gente tenta segurar a barra do jeito que dá e vive. A vida continua a aventura mais injusta que eu já tive notícia.

Hoje um amigo meu me mandou não me abalar tanto, e fazer o que eu posso. Não adiantará, segundo ele, me exigir demais. Se der pra fazer deu, e se não der, que eu descanse no sofá. Acho difícil lidar com as coisas que não posso controlar. Tenho uma mania meio besta de controlar tudo. Estou cercada de gente maravilhosa, mas não aprendi a chorar no colo de ninguém. Segurei as minhas barras, que não foram poucas, todas sozinha e de cabeça erguida. É o que eu sei fazer. Sempre corto a conversa pela metade, me lembro de uma ou duas vezes que eu quase chorei enquanto falava da minha vida, mas me sinto pouco confortável. Eu lembro que eu comia um brownie, e ele me dizia coisas sobre o nosso futuro, daí eu olhava a banquinha na avenida paulista e tinha vontade de chorar. Eu me sentia perdida, mas eu não sabia que eu ainda ia me perder mais, que ainda ia ser pior, que a vida ainda ia ser de mais açoite. Sempre pode piorar. Essa é a grande verdade. Sempre pode piorar, e vai. Morrer a gente não morre, mas olha, não passa. Esse ano ferida nenhuma cicatrizou, tudo continua aí, cheirando sangue velho pra quem quiser ver. Ferida purulenta mesmo, infeccionada, e eu queria poder botar a culpa em alguém, até em mim, mas não é culpa de ninguém.

Às vezes eu fico pedindo baixinho pra deixar de ser resiliente. Ser resiliente significa que você já passou por tanta coisa que aprendeu a se reerguer. Bate na cara e você levanta. A vida te deixa de quatro e você deixa. Tem dia que eu nem choro mais. Tem vez que nem nada. Eu descobri que eu já não faço questão. O amor, se não vier não veio. Eu me dou do jeito que dá. Torta e de corpo nu, mas o coração que caiu no meio da avenida paulista virou carne moída. Não quero mais. É só isso. A vida é injusta demais pra que eu corra o risco de. Eu vou vivendo. Já não espero mais a melhor monografia do ano. Faço o melhor que posso, entretanto. Se eu continuo viva é porque precisam de mim inteira. Eu, eu meu amigo, não preciso de nada. De vez em quando uma cerveja, umas boas risadas, dinheiro pra gastar 50 reais por mês no brechó. Pra mim tá bom. Eu não espero nada.

Eu só sei que eu vou sofrer mais. Na vida, ainda, muito mais. Isso é só o começo de tudo. Ainda vai ser muito pior. Terão outros 2012. Eu sei que um dia ainda vou achar esse ano fácil. Eu sei que ainda vou arrastar a minha cara no asfalto quente. Eu não sei de nada, eu não sei de nada, ainda vai ser muito pior. O pior é saber: eu vou aguentar. Porque eu aprendi.

E agora todas as vezes que me chamam de amarga eu concordo baixinho, resiliente: eles tem razão. Eu fiz o que deu, meu amor. Eu fiz sempre o que pude. Mesmo que doesse, mesmo que eu chorasse sozinha debaixo da minha coberta, dentro do metrô, na rua debaixo dos óculos de sol. Eu fiz o que deu. Eu fiz tudo o que pude. E sofri. Eu me machuquei de agulinha entrando embaixo da unha devagarinho. Às vezes eu reclamo, mas sei que é assim. É a vida, carajos. É a merda da vida. E só.

23.9.12

para depois da arrumação de um quarto

O quarto arrumado
As lembranças do passado bem guardadas
em caixas,
sacos de lixo
e embalagens para reciclagem.

O que será que farão com os restos
das cartas de amor que eu não te enviei?

Novos papéis de carta
Para novas cartas de amor?

Ou uma caixinha de lenços kleenex
para enxugar as lágrimas que lavam
tudo aquilo
que poderia ter sido

e não foi?