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11.4.12

não se afobe não, que nada é pra já.

o dr me olhou sem me dizer nada, há quinze anos que ele age da mesma maneira. me cumprimenta, me senta na cadeira, ouve meus reclames e já minimiza a parte da hipocondria, me coloca na maca, me examina, faz aquela tal de iridologia (é esse o nome?) que eu sei lá se acredito, mas é mais ou menos como astrologia, eu desacredito - só que tá sempre certo. me pergunta das coisas, e dessa vez foi aquilo: eu ando muito sem foco, não sei o que quero da minha vida, fico apática, não tomo decisões, e meu estômago tem estado horroroso. "do estômago a gente sempre soube, larissa", ele responde meio sério. então é isso "tem passado por stress?" e eu respondo que sim, acho que um monte deles. conto toda a trajetória. perdi o emprego, daí fiquei nessas de tentar achar alguma coisa da vida, as portas foram fechando e agora eu vim aqui. tudo isso ele ouve enquanto digita umas coisas no computador, eu sei lá o que ele tanto digita, mas fato é que tem a minha vida ali. a época do vestibular em que ele me receitou vitaminas, a época em que a minha vó ficou de cama e eu não conseguia mais comer, o tcc, a morte do meu vô, a depressão do meu pai. tudo isso tem ali, junto com os fitoterápicos que ele receita dizendo que eu tenho que ficar mais calma, senão você sabe, o estômago ataca, o fígado ataca. você é assim. dessa vez ele falou um pouco mais que o habitual. me disse que era normal, assim, essas crises nessa minha idade. a gente perde um pouco as perspectivas, mas que eu aparentava estar cansada demais. "sente vontade de fazer as coisas?" "não muito", daí eu disse que tenho pouca motivação, tinha inventado de correr, depois uns rompantes, nada deu muito certo, e que ando muito fragilizada. qualquer coisa eu choro, qualquer coisa eu tenho vontade de gritar que não aguento mais. tenho achado a vida pesada, quase não saio de casa, procurar emprego também me deixa meio desmotivada. ele me olha sem dizer nada, como se eu conversasse com o meu pai.

geralmente ele só imprime as receitas, diz que se eu precisar de alguma coisa é só ligar de novo, ele arruma um jeito de me atender. daí me dá a mão e me manda embora, estimando melhoras. dessa vez ele disse que não queria me assustar não, e que provavelmente não era nada de grave, mas que isso tudo era o começo de um quadro depressivo, e que de repente era melhor ver. um psicologo, um psiquiatra, alguém que te dê uma luz. você não é louca nem nada, é só que isso acontece, você vê, a gente tem que escapar por algum lado e esse foi seu escape. você se deprimiu, depois atacou seu estômago. a gente não sabe muito bem o que mais pode acontecer, mas não é hora de você ficar tomando decisões, nem fazendo planos e nem brigando com ninguém, porque tudo vai te frustrar. e tudo isso que você me disse de repente nem era você mesmo, principalmente essa vontade de chorar no canto, fazer as coisas sem saber muito bem o que tava fazendo, não é desconexão com a realidade, é só uma espécie de fuga. você tem andado angustiada, eu imagino. em todo caso, é melhor averiguar, ele dizia. você tem quadros desse tipo na família, te indico uns nomes, se preferir você pode procurar outros, mas é bom que procure. me deu uns nomes no papel, imprimiu as receitas, disse pra eu continuar caminhando que isso vai dar uma melhorada no meu quadro. e disse pra procurar alguém porque a gente nunca sabe, pode ser que piore. não é uma coisa assim que a gente se livra de uma hora pra outra, e pelo que a gente percebeu, o quadro vem de alguns meses já. se despediu, desejou melhoras, disse que eu podia ligar se precisasse.

voltei pra casa, coloquei as roupas de caminhar, os óculos escuros. achei que se de repente eu chorasse enquanto ia ninguém ia perceber. é tão esquisita a sensação de não estar agindo como se deveria agir por algum tipo de distúrbio químico. eu não sabia mais muito bem o que eu era, e o que era por causa do distúrbio, desequilíbrio, sei lá o nome disso. nem conseguia correr direito, a cabeça rodava, o peso na consciência por ter estragado tudo, feito aquele monte de merda. desde o começo do ano fazendo merda, deixando as coisas pra depois, atrasando os boletos da pós, não indo assinar a demissão no trabalho. era isso então? era isso aqueles choros sem motivo no meio da noite, as vontades esquisitas de correr até faltar o fôlego, as semanas inteiras sem tirar o pijama e ver a luz do sol. fluoxetina, prozac, eu ia ser mais uma dessas? procurar um psicólogo, pagar um quarto do meu salário pra ele me ouvir falando dos meus traumas, do meu passado, das coisas mal resolvidas. era o mal da geração, é claro que eu também ia sucumbir um dia. contar pra minha mãe, procurar médicos especialistas, ser tratada como um problema. justo eu, que sempre fui tão forte né. não. justo eu que sempre guardei tudo pra mim esperando ser capaz de resolver todos os problemas do mundo. não sou. falhei. eu também precisava de ajuda. e se eu não quis me dar, o corpo gritou.

voltei, fingi prestar atenção na novela, nos programas sobre looks, esperei dar o horário, fiz a ligação que precisava, acho que falei tudo meio pela metade, não sei falar no telefone, não sei lidar com esse tipo de problema, e ultimamente tenho tido problemas pra sair da minha cama. minha mãe finge que não ouve as conversas enquanto joga o jogo das bolhas no computador, mas a verdade é que ela sabe de tudo, ou pelo menos desconfiava, e esquece, sabe. tem hora que não dá mais, tem que contar logo de uma vez a verdade. e então é isso, mãe. da primeira vez foi assim, depois da segunda foi isso e da terceira era pra ser bonito e foi um desastre. difícil era explicar que o desastre era eu. pelo amor de deus, não foi isso que eu te ensinei, você não ficou morrendo de vergonha, olha o tamanho da sua cara de pau, meu deus você não pode ter uma cara de pau desse tamanho. pra começar você não devia nem ter passado mal, você entende? e agora, com que cara, com que cara? mas é isso mãe, eu ando muito apática e teve isso e o médico e tal e o choro. ela me pegava nos braços e não conseguia entender porque é que ela não me deixou crescer. eu não devia ter limpado tanto assim sua bagunça, porque aí, olha, a gente te joga no mundo e dá nisso. é claro que ninguém tem o direito de ser desrespeitoso com você, e isso acontecer, você sabe, tem mais é que ir embora mesmo. mas é que é isso, né filha, você viveu com gente que você teve que cuidar o tempo todo, depois foi cuidada e ninguém nunca te ensinou a ir pra frente, a dar a cara pra bater. é isso, não dá pra ficar no sofá arrotando papos idealistas de dez anos atrás. um dia a gente tem que trabalhar, viver, se portar, lidar com coisas desse tipo e limpar a própria bagunça. mesmo que não tenha sido nossa culpa. você tem que se mexer, alguém uma hora tem que te botar pra frente. eu sei que agora não é a hora também, você tem que se cuidar. mas depois que se cuidar tem que viver, ai filha, olha a vergonha, você jura que não ficou morrendo de vergonha? fiquei. mas não sabia o que fazer. daí não fiz nada. ai filha, que vontade de te bater, né? mas não é a hora. agora vê se cresce, a gente tem que crescer. dói, mas a gente tem que crescer. que papelão, minha filha, meu deus você nunca mais vai beber. eu chorava, ela me abraçava meio rindo e depois dizia que tudo bem, mas agora pede desculpas, você já pediu desculpas? agora a gente cuida de você pra ver se você toma um pouco de tenência. seus amigos não são ruins, eles só não tem nenhuma ideia muito fixa. e infelizmente, vocês não tem mais tempo pra isso.

lembrei do dia da gelatina. quis morrer dez vezes. aquela mulher não merecia isso. a gente ficou de pesquisar alguém bom pra cuidar de mim, e eu fiquei de crescer. ela me deu colo, chá e bolachas de coco. devia era te dar uns tapas, disse depois. estou preocupada com você, filha. eu também, mãe. mas vai dar tudo certo. logo tudo fica bem de novo. tudo passa. e o que tiver que ser, sempre é. eu me senti leve, ela continuou jogando o jogo das bolhas. tudo deve ter jeito, ainda. o tempo cura tudo, como já diria a minha vó. minha mãe e o dr. agnello também sabem disso.



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