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1.4.12

saudades do avô número em reticências

“O tempo só anda de ida
A gente nasce, cresce, envelhece e morre.
Pra não morrer
É só amarrar o tempo no Poste.
Eis a ciência da Poesia:
Amarrar o tempo no Poste!” (Manoel de Barros).


Uma vez nós estávamos sentados no banco de madeira velho (que eu acho que nem existe mais, a tia é cheia de jogar as memórias no antiquário e a casa agora é dela) e a minha vó ficou bastante irritada com uma das brincadeiras que ele fez. Ela disse que estava com muita raiva. Ele, sorrindo um sorriso engasgado, muito dele, disse que não era pra ela ter raiva não. A raiva dá na gente dois trabalhos: o de ficar com raiva, e o de "desficar". Pegou um papelzinho, e como quem ensina uma coisa muito séria disse: "olha, maria, eu vou te explicar uma coisa. A raiva, quando entra na gente, entra muito rápido, tipo um furacãozinho", e desenhou rapidamente um furacãozinho com a caneta que sempre carregava no bolso da camisa. "Mas pra sair, maria, ela tem que dar toda essa volta aqui ó",  disse ele fazendo com a caneta toda a volta que deu no furacãozinho, "e aí, maria, demora muito. Esse troço de raiva dá muito trabalho". Minha vó repreendeu-o dizendo "eta, estevo, deixa de bobice". E ele continuava rindo, porque nunca soube deixar de bobice. 

A vó era a parte prática da casa. Criou cinco filhos como lavadeira e foi quem botou um pouco de juízo na cabeça daquela gente que, se dependesse dele, ia viver de sonho. O vô nunca foi muito dado as racionalidades. Inventava nomes pras coisas. Nomes que não existiam. Viva de fazer piada com a vida dos outros, e mesmo sem ter tido "muito estudo" como ele mesmo dizia, vivia num mundo de livros. Uma vez a mãe tirou o livro do john locke de perto dele porque disse que "esse negócio de ficar se questionando com esse tanto vai acabar fazendo mal pra um homem dessa idade". Com ele eu aprendi o lúdico. Ele cuidava das minhas bonecas com bastante propriedade e ouvia as minhas histórias todas. Virei uma grande contadora de histórias pra ele, e me sentia muita satisfeita como detentora do conhecimento e caixinha de gargalhadas particular do meu avô. Mal sabia eu que ele sabia muito mais histórias do que eu tinha pra contar, mas ele costumava ser bastante generoso. Acho que ele é um desses homens que nunca cresceram, ou que souberam cativar bem a infância. 

Diz minha mãe, que quando as minhas primas eram pequenas, ele intermediava receitas de remédio entre elas. A fernanda era a enfermeira das bonecas da Gisele, então a Gisele informava a ele os sintomas da boneca, ele repassava pra Fernanda que passava uma receita de remédios que ele entregava pra Gisele de volta. Ele gostava muito de inventar histórias também. Vez ou outra vinha com "mentiras"pras minhas amigas, o que me deixava bastante irritada. Agora eu percebo que tinha é sorte de conviver com esse homem que tinha assim tantas histórias pra contar e inventar. Esse mineiro que quando diziam que ele tinha cara de nordestino ele dizia que era sim, de "feira" e que não tinha sotaque porque foi pra minas muito novo trabalhar. O que quando eu era pequena eu chamava de mentiras, hoje eu percebo que era todo um universo fantasioso em que valia a pena entrar. O universo em que ele contava histórias que na realidade não aconteceram pros amigos, e que fingia acreditar em coisas que na verdade não acreditavam. O universo do lúdico, da brincadeira, das travessuras, do jogar água nos gatos e escrever pequenos contos em pedaços de papel. Ele sempre tinha uma caneta no bolso. Eu herdei o costume. 

Sei muito pouco do que ele escrevia nos pequenos papéis logo depois de ler o jornal, ou as revistas, mas sei que ele inventava historietas. Escrevia numa caligrafia perfeita pra quem estudou tão pouco e tinha o humor refinado de quem aprendeu a rir em meio a desgraça. No meio dos sacos de café e no trabalho pesado de quem veio tentar a sorte, nasceu a poesia. A poesia que não era escrita em livros, nem estudada nos cursos de letras, mas essa poesia que nasce da vida. Desse homem que criou filhos que adquiriram gosto pela arte, que guardavam o pouco dinheiro que tinham pra comprar vinis. O homem que me ensinou que a beleza vem da vida. Vem da água com açucar que a gente coloca pros beija-flores pousarem, no arroz que a gente joga pra ver os passarinhos comerem, vem da música que a gente coloca nos toca-discos no domingo, vem de plantar na horta, de ver os antúrios crescerem, vem de fazer bambolê com pedaço de mangueira de jogar água no jardim. Riqueza mesmo é ter tempo de sentar embaixo do pé de limão e observar a rua, é contar histórias que não existiam, é ter o espírito puro de quem responde "boa noite" pro âncora do jornal, é fazer tampinha na laranja pro suco sair melhor.

Ele foi o primeiro poeta que eu conheci, meu primeiro contato com o lúdico, com a história, com a palavra-inventada. Foi vendo que a literatura podia fazer aquele "homem grandão" rir que eu tive vontade de escrever as minhas próprias histórias. Foi com ele que eu aprendi que a palavra tem poder. Foi com ele que eu aprendi a desconstruir, a chamar o que todo mundo chama de "carne de porco" de "porcaria". Ele foi o meu primeiro contato com a imaginação, com o desconexo, com as quatro balas na boca, com o políticamente incorreto de se rir dos tombos dos jogadores nos jogos de domingo que assistíamos juntos. Existe graça no erro, na falta, no chute pra fora. A beleza vem do acaso. A sabedoria vem de desenhar a raiva como um diagrama. Meu vô, assim como manoel de barros deve ter tido três infâncias. Na última (essa que eu conheci) costumava subir em telhados como um moleque, e inventar narrativas fantásticas sobre as coisas que queria ter vivido e não viveu. Se encantava com a beleza de um mundo que não era o nosso pela tela da tv, e aprendeu a esquentar café no microondas. Com ele eu aprendi que as coisas que a gente fala e não existem, nem sempre são mentiras, às vezes são só histórias. Invenção. E o mundo é muito chato se não for feito de invenção.

O mundo é muito chato se a gente não rir do que não pode rir e não fizer piada com a raiva alheia. Talvez seja isso. Talvez exista muita melhor no mundo do que esperar que o furacãozinho da raiva passe. Com ele eu aprendi a ser leve. A deitar na grama em cima da toalha. E a não comer antes do almoço porque "estraga o apetite". Juntos explorávamos a loja de bala e pedíamos pastel com uma coquinha de garrafa. Com ele o mundo era imenso e inusitado. Ele era meu homem inusitado que comia as cabeças dos peixes e os pescoços dos frangos, muito selvagem. O homem selvagem que sabia o nome dos passarinhos, e como cuidar das plantas. O homem que sem nunca ter publicado uma linha me ensinou a poesia e deu a primeira voz a minha literatura. É preciso transver o mundo, Vô. É preciso enxergar um universo paralelo na casinha onde se guardava as tralhas e a minha bicicleta. É preciso ter medo dos monstros onde não existe nada. É preciso enxergar além. É preciso tratar as bonecas como filhas. É preciso sorrir, o tempo todo sorrir com o seu sorriso. 

E agora, vinte três anos depois de termos nos conhecido, eu entendo que por vezes essa literatura malfeita que faço é meu jeito de não te deixar morrer nunca. Eu amarrei nosso tempo num poste, vô. 





(desde que você se foi, você é sempre o poema que eu quero ler e não tenho mais à mão). 



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